Reconstrução do Passado – Teoria da História II: os princípios da pesquisa histórica | Jörn Rüsen
É inconteste que o grosso calibre do arsenal historiográfico estrangeiro importado pelo mercado editorial brasileiro é constituído por pesquisas oriundas da historiografia francesa, nossa maior referência em se tratando de estudos históricos. Entretanto, as reflexões historiográficas originárias na atmosfera intelectual alemã também encontram grande receptividade dentre os historiadores brasileiros, prova disso é a retumbante proliferação dos trabalhos de Jörn Rüsen no Brasil. Nos últimos anos, a editora da Universidade de Brasília, através do professor Estevão de Rezende Martins, propiciou à nossa comunidade acadêmica a tradução, para a língua portuguesa, da vigorosa trilogia de Jörn Rüsen, denominada de Grundzüge einer Historik (Esboço de uma teoria da história), composta pelas obras: Historische Vernunft (Razão Histórica)1 , publicada no Brasil em 2001; além de Rekonstruktion der Vergangenheit (Reconstrução do Passado)2 e Lebendige Geschichte (História Viva)3 , estas derradeiras oferecidas ao público brasileiro em 2007.
Tencionando atualizar a tradição intelectual da Historik e desenvolvendo profundos estudos sobre os trabalhos teóricos de Droysen, Rüsen vem dedicando-se à reflexão sobre os princípios que fundamentam o pensamento histórico, dando ênfase aos processos históricos de formação da moderna ciência da história e à apropriação do conhecimento histórico no contexto da vida social, naquilo que cunhou como “função didática da história”. Por intermédio do construto teórico denominado de “matriz disciplinar”, Rüsen apresenta um sistema de teoria da história, cuja amplitude reside na análise dos complexos problemas que envolvem a prática profissional dos historiadores: desde o polêmico vínculo entre conhecimento histórico e vida humana prática, até a complexa relação entre pesquisa e escrita da história.
A atualidade desse sistema de teoria da história repousa na forma como ele repulsa posições teóricas extremas e absolutizantes que emperram o desenvolvimento da história enquanto disciplina especializada. Como sabemos, por um grande período, a objetividade da história tinha como referência os padrões científicos produzidos no seio das ciências da natureza. Nesse modelo de ciência buscado pela história, o enfoque nos métodos de pesquisa ofuscava as dimensões valorativa e estética do conhecimento histórico. Em oposição a essa herança estritamente objetivista, Rüsen lança um novo olhar sobre a complexa relação entre ciência da história e vida humana prática, assumindo o papel preponderante que vida prática, tanto dos historiadores, quanto do público interessado em história, apresenta para a constituição do conhecimento histórico.
A contemporaneidade da teoria de Jörn Rüsen se traduz, igualmente, no modo como aborda a problemática relação entre pesquisa e escrita da história. Relação esta que, desde meados do século XIX até por volta de 1960, evidenciou o destaque da dimensão da pesquisa em detrimento das operações narrativas na construção do conhecimento histórico. Revestidos do conceito de ciência edificado na modernidade, primordialmente no século XIX, os historiadores acabaram relegando a escrita da história a uma posição secundária, elegendo a pesquisa como operação determinante para a compleição da história como ciência. Em Rüsen, a importância da metodização é reforçada, mas os pressupostos narrativistas não são “demonizados” e sim, em certa medida, incorporados à teoria da história. A preocupação em refletir sobre as especificidades narrativas do texto historiográfico não o conduziu à perspectiva de reduzir o discurso histórico a aspectos literários, mas a de reabilitar à idéia de narratividade conectada aos procedimentos metódicos da pesquisa.
O núcleo desse arcabouço teórico arquitetado por Jörn Rüsen, exibido em sua tríade historiográfica, concentra-se no conceito de “matriz disciplinar”, que consiste no conjunto sistemático de fatores ou princípios do pensamento histórico determinantes da história como disciplina especializada (RÜSEN, 2001:29). Por meio desse construto conceitual, Jörn Rüsen caracteriza as condições em meio às quais os historiadores produzem conhecimento histórico, articulando operações inerentes à vida humana com procedimentos típicos da ciência especializada: carências de orientação, perspectivas orientadoras da experiência do passado, métodos de pesquisa, formas de apresentação e funções orientadoras (RÜSEN, 2001:35). O espaço de tensão entre esses princípios é o que caracteriza a matriz disciplinar da ciência histórica, síntese do que, para Rüsen, constitui o objeto da teoria da história. Ancorado neste conceito, ele ressalta que os historiadores elaboram narrativas definidas como produtos cognitivos híbridos, portadores de propriedades normativas (carências de orientação e funções orientadoras), empíricas (perspectivas orientadoras e métodos de pesquisa) e estéticas (formas de apresentação).
Nas pesquisas de Rüsen, esses princípios da ciência da história, consistente na matriz disciplinar, foram desenvolvidos com as seguintes bifurcações: em “Razão Histórica”, o historiador alemão examina a relação entre conhecimento histórico e carências de orientação; em “Reconstrução do Passado”, ele analisa as perspectivas orientadoras da experiência do passado e métodos de pesquisa; e, finalmente, em “História Viva”, dedica-se ao estudo das formas de apresentação e das funções de orientação do pensamento histórico, na ciência da história.
A obra “Reconstrução do Passado”, especificamente, apresenta o esforço de Jörn Rüsen em refletir sobre os princípios que distinguem a ciência da história das outras formas de pensamento histórico, ou seja, teoria e método. Em geral, as operações narrativas do pensamento histórico revestem-se da necessidade de garantir a verdade de cada história narrada, isto é, a verdade daquilo que se diz sobre o passado a que se referem. Contudo, a narrativa histórica, em sua versão científica, exibe como singularidade, não o fato de pretender à verdade, mas sim o modo como reivindica a verdade. Além disso, a modalidade científica do pensamento histórico comporta uma pretensão comunicativa através da fundamentação de um conjunto de regras metódicas aglutinadas na idéia de pesquisa histórica. Cientificidade na história, para Rüsen, não diz respeito a uma adequação do pensamento histórico a uma concepção a priori e geral do que seja ciência, mas ao ajustamento a um padrão intersubjetivo das formas de dirigir a pesquisa histórica e de empreender a fundamentação da narrativa sobre seus resultados. Ciência da história entendida no sentido amplo do termo, como síntese das operações intelectuais reguladas metodicamente, mediante as quais se podem obter conhecimento com pretensões seguras de validade. Logo, em Rüsen, é o princípio da metodização que torna o pensamento histórico especificamente científico.
Do ponto de vista estrutural, a obra em questão se mostra dividida em dois densos capítulos: o primeiro, intitulado de “Sistemática – Estrutura e Funções das Teorias Históricas”, em que discute, em termos gerais, sobre a importância das teorias na constituição do conhecimento histórico e sua intrínseca relação com os outros princípios da “matriz disciplinar”; o segundo, denominado de “Metodologia – As Regras da Pesquisa Histórica”, no qual analisa, minuciosamente, as complexas operações que constituem o exercício de investigação da experiência concreta do passado, que se realiza através do trato com as fontes.
Observando a obra sob o espectro da concepção de matriz disciplinar, percebe-se a profundidade que reveste o título dessa publicação. Esse estudo trata-se da análise do segundo e terceiro princípios da matriz disciplinar, ou seja, as “perspectivas orientadoras” e os “métodos de pesquisa”. De acordo com o postulado teórico de Rüsen, esses dois princípios são os que, na história como ciência, conferem à experiência humana do passado o status de histórica. Isso porque as perspectivas orientadoras têm a capacidade de “historizar” a experiência do passado, que em si não está investida de propriedades históricas, pois essa experiência torna-se histórica à medida que se estabelece uma relação com o quadro de valores atuais de uma sociedade em uma determinada época. Enquanto esses modelos de interpretação, em que consistem as perspectivas orientadoras, dirigem o olhar sobre o passado, tornando a experiência humana histórica, os métodos de pesquisa mediam a investigação do que foi e como foi o caso no passado, de forma que alguns critérios de cientificidade, no pensamento histórico, sejam alcançados. Considerando, então, que é através dessas duas operações que a experiência humana do passado é, efetivamente, abordada pelos historiadores, fica nítido o alcance metafórico e representativo que o título dessa obra apresenta: “Reconstrução do Passado”.
Verticalizando essa investida pelos pressupostos “rüsenianos” presentes na obra em tela, verifica-se que, no primeiro capítulo, embora dedique ao exame das estruturas e funções das teorias históricas, Rüsen demonstra a tenaz ligação entre teoria e método, que são primordiais para a constituição do conhecimento histórico:
Os pontos de vista do pensamento histórico, que põem e servem de suposições na abordagem das fontes, não são extrínsecos a ele, mas alcançam-lhe o cerne da regulação metódica: que métodos vêm a ser empregados na pesquisa depende de que conhecimentos se quer obter com ela, e isso é decidido pelos pontos de vista que o pesquisador aplica à matéria. O conhecimento histórico não é construído apenas com informações das fontes, mas as informações das fontes só são incorporadas nas conexões que dão o sentido à história com a ajuda do modelo de interpretação, que por sua vez não é encontrado nas fontes (RÜSEN, 2007a:25).
Prosseguindo essa empreitada sobre o primeiro capítulo, depois de apresentar a discussão acerca de sua “sistemática”, ou seja, sobre os modelos de interpretação que o historiador aplica às fontes para extrair o conteúdo dos fatos, Rüsen analisa o papel das explicações e o uso de teorias na ciência da história, tocando em um ponto nevrálgico para a história da ciência histórica: o problema das leis na história. Primeiramente, retoma a clássica distinção neokantiana entre o conhecimento típico das ciências naturais e das ciências do espírito. Todavia, ao se debruçar sobre as especificidades da explicação nomológica acaba se distanciando da concepção clássica de que esse tipo de explicação seja aplicado apenas pelas ciências naturais, pois, em seu ponto de vista, o conhecimento nomológico pode desempenhar, em determinados casos, um importante papel na ciência da história.
Não em contraposição, mas em complemento à explicação nomológica, Rüsen examina as singularidades da explicação intencional e assume que, por investigar a intencionalidade da ação humana, o esquema da explicação intencional parece muito mais apropriado para caracterizar a maneira de pensar da ciência da história do que o da explicação nomológica (RÜSEN, 2007a: 38). E, como típico de sua postura sempre equânime diante de oposições já sedimentadas, Jörn Rüsen afirma a importância da conexão entre regularidade e intenção, mais precisamente, entre conhecimento nomológico e intencional, a partir de uma concepção de explicação histórica que agregue ambas as abordagens, a explicação narrativa:
Como determinar as formas de explicação e de teoria específicas à ciência da história? (…) Ela mostrou que a ciência da história serve-se de explicações nomológicas e intencionais, e das teorias aplicadas por elas, sem que qualquer dos esquemas de explicações utilizados devesse ser reconhecido como genuinamente histórico. Ao analisar mais de perto o processo, vê-se que a ciência da história procede mediante explicações narrativas (RÜSEN, 2007a: 43).
No que tange à explanação acerca das funções das teorias históricas, o debate subjacente consiste na relação, mediada pela teoria, entre pensamento histórico e orientação da vida humana. Uma vez que essas perspectivas teóricas se originam de interesses (advindos da vida prática) no conhecimento histórico, novas carências de orientação acarretam novas perspectivas orientadoras referentes ao passado, interferindo, assim, na forma como a experiência humana, contida nas fontes, é interpelada através da pesquisa. Em suma, “a última instância para a plausibilidade empírica de uma teoria histórica é sua função de orientação da vida prática (empírica) do historiador e dos destinatários e receptores de suas histórias (RÜSEN, 2007a:82). Neste tópico, a sistematicidade da elaboração teórica de Rüsen se apresenta no que tem de mais pujante e original: suas tipologias, classificações e definições peculiares. Ainda no primeiro capítulo, essa característica teórica de Rüsen se apresenta na elucidação das funções das teorias históricas (funções explicativa, heurística, descritiva, de periodização, explanatória, individualizante, comparativa, diferenciadora, crítica e didática); e no esclarecimento acerca da definição e distinção entre nomes próprios, categorias históricas, conceitos históricos e não-históricos. Findando o capítulo, Rüsen dedica-se a discutir o problema do objetivismo e do subjetivismo na ciência da história, principalmente no que toca à formação histórica dos conceitos. Como típico de sua postura teórica, o historiador alemão se afasta dessa oposição entre objetivismo e subjetivismo, advogando a importância não só da orientação temporal da vida prática contemporânea, mas também da linguagem empírica das fontes, para a formação histórica dos conceitos.
No segundo capítulo, embora debruce sobre as regras de pesquisa histórica, Jörn Rüsen continua escavando a profunda interdependência entre o trabalho interpretativo das perspectivas orientadoras (teorias históricas) e os procedimentos da pesquisa empírica, abduzindo-se da antiga percepção de apartar reflexão teórica da prática histórica. Sua definição de pesquisa histórica atesta esse posicionamento: pesquisa histórica é um processo cognitivo, no qual os dados das fontes são apreendidos e elaborados para concretizar ou modificar empiricamente perspectivas (teóricas) referentes ao passado humano (RÜSEN, 2007a:104). Os métodos de pesquisa empírica consistem no exercício de investigação da experiência concreta do tempo passado. É esse processo de efetivação metódica que constitui o que se entende por história enquanto especialidade científica. A pesquisa (como processo de obtenção de fatos sobre o passado) não pode ser pensada sem as carências de orientação, mas produz resultados que vão bem além delas. Os fatos obtidos pela pesquisa seriam, todavia, pura e simplesmente sem sentido e significado se não fossem obtidos como fatos destinados à transformação em histórias, isto é, em rememorações indispensáveis à vida.
Além disso, os resultados da pesquisa histórica, também, nunca são tomados por si sós, mas sempre como produto das fontes em determinados contextos historiográficos. As histórias que se baseiam em pesquisa apresentam o passado humano como um construto de fatos que pode ser superado, a todo instante, por novas pesquisas. Essas histórias são provisórias, ou seja, podem ser superadas por novas pesquisas que trazem outros resultados sobre aquele construto de fatos. Embora o senso comum espere um saber definitivo quando é a ciência que fala, para Rüsen, isso é um “belo sonho”, pois as histórias não são contadas de uma vez por todas, para toda eternidade, mas surgem sempre em função de determinados problemas de orientação temporal, de certas épocas e seres humanos.
Apesar dessa pluralidade de leituras acerca do passado que a história propicia, a regulação metódica possibilita uma relação intersubjetiva entre os historiadores, que buscam uma argumentação formadora de consenso. Por isso, a metodização, no trato da experiência do passado, é um componente da ciência da história a qual nenhum historiador pode negligenciar. Assim, é perfeitamente possível, na perspectiva de Rüsen, falar em unidade de método quando se considera algumas etapas primordiais na construção do conhecimento histórico e se identifica a pesquisa como uma dessas etapas. Primeiramente, a elaboração da pergunta histórica, realizada a partir de carências de orientação oriundas da vida prática; posteriormente, a formulação de uma pergunta histórica dirigida às fontes, das quais se extraem os conteúdos necessários para a resposta; e, finalmente, a lapidação dos conteúdos extraídos das fontes, de forma que respondam à pergunta histórica, a qual, por estar vinculada às carências de orientação, pode ser útil para orientar a vida humana. Por meio dessa distinção, verifica-se que a pesquisa constitui-se numa etapa do processo de construção do conhecimento histórico que parte de uma indagação histórica e chega à formulação da resposta histórica. Logo, a metodização, encarada como síntese das operações destinadas a validar o conhecimento histórico a ser exarado pela historiografia, é que intermedia a relação entre subjetividade conhecedora e a experiência humana do passado, legada pelas fontes. Mas, para a exploração do material experiencial contido nas fontes, Rüsen apresenta as operações metódicas fundamentais, que se interagem, nesse trabalho prático do historiador: as operações processuais (Heurística, Crítica e Interpretação) e as substanciais (Hermenêutica, Analítica e Dialética).
De acordo com Rüsen, a heurística é o primeiro procedimento a ser realizado durante a pesquisa histórica. Nessa fase, o historiador opera, de forma sistemática, a coleta, junção e classificação das fontes significativas, além de analisar o manancial de informações que essas fontes podem ofertar. A exploração desse potencial informativo das fontes está relacionada à pergunta histórica e à formulação de hipótese sobre esse material legado pelo passado. Por isso, a heurística não consiste somente no ato de buscar as fontes, mas o de avaliar se as mesmas oferecem informações satisfatórias para a resposta ao questionamento histórico realizado e para a solução do problema histórico que está posto.
A segunda operação processual é a crítica. A crítica das fontes trata-se do procedimento da pesquisa histórica no qual se garimpam as informações sobre o passado. Segundo Rüsen, é a operação metódica que extrai, intersubjetivamente e controlavelmente, informações das manifestações do passado humano acerca do que foi o caso. O conteúdo dessas informações são fatos ou dados: algo foi o caso em determinado lugar e tempo (RÜSEN, 2007a:123). Em suma, é nessa operação que se realiza uma análise dos dados históricos sobre a facticidade da ação humana no passado, orientando-se por critérios de plausibilidade do potencial informativo das fontes.
Já na interpretação, busca-se o exame das informações levantadas sobre as experiências do passado através da crítica das fontes. À medida que essas informações vão sendo retiradas das fontes e rearranjadas, a interpretação possibilita a formação de produtos narrativos que servem de fios condutores do trabalho de representação histórica. Nesses fios condutores interpretativos são produzidas as perspectivas heuristicamente direcionadas sobre a experiência do passado na forma de questionamentos históricos. Sendo assim, a interpretação constitui-se no primeiro passo para se elevar os dados passados à condição de fatos históricos, pois rearranja os fatos conforme as perspectivas orientadoras sobre o passado.
Conforme a metódica de Rüsen, as operações processuais da pesquisa (heurística, crítica e interpretação) consistem em regras que são, sobretudo, procedimentais, no entanto, para ele, o que é e pode ser obtido das experiências do passado como história não é, originalmente, um problema de regras da pesquisa, mas das perspectivas acerca do passado humano (RÜSEN, 2007a: 134). Assim, o trabalho das operações processuais, na pesquisa histórica, é complementado pela intervenção das operações substanciais (hermenêutica, analítica e dialética), que decidem sobre o conteúdo material da pesquisa, referindo-se a diferentes dimensões de autointerpretação dos sujeitos e que estão sistematicamente interligadas. Na hermenêutica, o questionamento é dirigido às nuances do universo de sentido das experiências do passado, isto é, ao conjunto de manifestações que exteriorizam as intenções dos homens do passado. Nessa operação, cuida-se das intenções e interpretações situadas na essência do agir humano, para arrancar delas a factualidade na qual se realizaram. Na analítica, abordam-se as experiências nas quais o tempo é experimentado como limite definidor das possibilidades do agir. Essa operação refere-se às circunstâncias que, mesmo estabelecendo fronteiras entre as quais a capacidade interpretativa da subjetividade humana deve obedecer, são externas a ela. As fontes são indagadas não naquilo que dizem sobre as ações a que se referem, mas para que sejam levadas a desvelar algo sobre os fatores de determinação do agir (contexto, circunstâncias) que, direta ou indiretamente, influenciaram as ações por ela referidas. E, finalmente, na dialética, as estratégias hermenêutica e analítica seriam combinadas para que se possa perceber, na justaposição entre as experiências do tempo humano e do tempo natural, experiências propriamente históricas. Nesta operação, a unilateralidade da hermenêutica ou da analítica é atenuada de forma que se extraia das fontes, tanto a intencionalidade da ação humana quanto o fator de mudanças no tempo inerentes à experiência humana do passado.
Rüsen encerra reafirmando a importância da pesquisa histórica enquanto etapa primordial para a constituição do conhecimento histórico. No entanto, pesquisa histórica encarada não como um fim em si mesmo, mas interligada a critérios de constituição histórica de sentido que orientam e conduzem a pesquisa para além do trabalho com as fontes. Embora metodicamente regulada, o que assegura que a experiência humana seja controlável, a pesquisa histórica transpõe esse mero trato do passado através das fontes, e relaciona-se com perspectivas orientadoras do passado que provêm das carências de orientação da vida atual e, portanto, possibilita a construção de um saber lingüístico, a historiografia, que abre possibilidades para o futuro. A contribuição do autor reside, portanto, no tratamento do método não como etapa estanque da elaboração teórica e, muito menos, como investigação transplantada para a historiografia, isto é, Jörn Rüsen apresenta a interdependência entre o trabalho interpretativo das perspectivas orientadoras (teorias históricas) e a natureza das operações e procedimentos que caracterizam a pesquisa empírica, da mesma forma, nega a concepção clássica da autotranscendência da pesquisa em historiografia, como se o saber histórico construído fosse uma mera transposição dos resultados da pesquisa.
Notas
1 RÜSEN, Jörn. Razão Histórica – Teoria da História I: os fundamentos da ciência histórica. Trad. Estevão de Rezende Martins. Brasília: Ed. da UNB, 2001.
2 RÜSEN, Jörn. Reconstrução do Passado – Teoria da História II: os princípios da pesquisa histórica. Trad. Asta-Rose Alcaide e Estevão de Rezende Martins. Brasília: Ed. da UNB, 2007a.
3 RÜSEN, Jörn. História Viva – Teoria da História III: formas e funções do conhecimento histórico. Trad. Estevão de Rezende Martins. Brasília: Ed. da UNB, 2007b.
Resenhista
Rogério Chaves da Silva – Mestre em História pela Universidade Federal de Goiás.
Referências desta Resenha
RÜSEN, Jörn. Reconstrução do Passado – Teoria da História II: os princípios da pesquisa histórica. Trad. Asta-Rose Alcaide e Estevão de Rezende Martins. Brasília: Editora da UNB, 2007. Resenha de: SILVA, Rogério Chaves da. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v. 3, n. 5, jan./jun. 2009. Acessar publicação original [DR]