Razão Africana: Breve História do Pensamento Africano Contemporâneo | Muryatan Barbosa

No ano de 2021 saudamos a maioridade da Lei 10.639/03 (seus dezoito anos), conquistada através de uma luta histórica do Movimento Negro Brasileiro, pela inclusão dos conteúdos das histórias e culturas das/os afrobrasileiras/os, das/os africanas/os e de África. O livro “Razão Africana: Breve História do Pensamento Africano Contemporâneo” de Muryatan Barbosa, sem dúvida faz parte deste legado. Publicado em 2020 pela Editora Todavia em São Paulo, teve o lançamento feito online por conta do atual momento de orientação para o isolamento social, devido à pandemia da Covid-19. Foram feitas três lives com o autor para o seu lançamento no Youtube nos canais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP, da Todavia e no Programa de Pós-Graduação em Economia Política Mundial da UFABC; juntas contabilizam até a escrita desta resenha mais de 1400 visualizações.

O pesquisador Muryatan Santana Barbosa atualmente ocupa a cadeira de professor adjunto da Universidade Federal do ABC (SP) nos bacharelados de Ciências e Humanidades e de Relações Internacionais, foi pesquisador visitante na Universidade de Harvard e consultor técnico da UNESCO/Brasil. A obra “Guerreiro Ramos e personalismo negro” (2015) foi de sua autoria e suas pesquisas giram em torno de temáticas que envolvem o pan-africanismo, o sul global e as relações étnicorraciais no Brasil. Participou como revisor técnico da Síntese da Coleção História Geral da África (2013), parte integrante da coleção de oito volumes editada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO/1945), elaborada a partir de seminários que aconteceram nos anos 1960 e elaborados entre 1970- 1980. Em 2010, o governo brasileiro realizou uma parceria com a UNESCO quando foi feita a tradução dos oito volumes, sendo foi possível o material ter uma ampla divulgação para o campo dos estudos africanos nacional democratizando o acesso. Visto que, até então a leitura era restrita para as pessoas que liam em inglês, francês ou árabe, bem como da distribuição para bibliotecas públicas garantida pelo governo para universidades e projetos educacionais para escolas. A produção da coleção foi marcada pela conjuntura política da fase das independências africanas conforme pesquisa de Mônica Lima e Souza no artigo “A África tem uma história” de 2012, período que fortaleceu o combate ao eurocentrismo presente nas academias, devido a rastros de incompreensões herdados da visão inferiorizante colonialista, marcada pelo racismo epistemológico, na qual essa população seria subjugada às heranças do tráfico infame e da escravização.

Nesse sentido, identificamos que a abordagem presente em “A Razão Africana: Breve História do Pensamento Africano Contemporâneo”, possui uma conexão nesta coleção, possuindo uma marca característica ao analisar diversos eixos temáticos numa visão continental, a partir de inspirações presentes nas diversas regiões do continente numa perspectiva panafricanista, ou seja, não necessariamente os debates estiveram localizados em uma região específica, determinada pelas fronteiras dos estados independentes da segunda metade do século XX. A obra possui uma vasta bibliografia de diversas regiões de África e de sua diáspora, numa perspectiva antirracista e anticolonialista ao criticar as tensões e as camadas de complexidades presentes nas relações entre africanos e europeus. Podemos observar que este livro pode ser lido como um manual para as pessoas interessadas nos estudos sobre África num geral, numa perspectiva transdisciplinar, direcionamos essa leitura para o campo das ciências humanas de conjunto – História, Antropologia, Ciência Política, Sociologia, Filosofia, Economia, Relações Internacionais, Geografia, Literatura e Artes.

Os três capítulos foram batizados de forma abrangente, instigando e trazendo curiosidade sobre o conteúdo, apresentarei aqui quais foram os subcapítulos que não estiveram presentes no índice, tecendo a coluna espinhal da obra. O primeiro capítulo – A personalidade africana: Edward Blyden e as origens do nacionalismo africano; Entreguerras (1917-1939): o nacionalismo africano e o papel da Diáspora; Negritude, personalidade africana, descolonização; A inseparabilidade entre política e cultura. O segundo capítulo – O reino político: O fator Nkrumah; O “socialismo africano”; O marxismo africano; Da crítica às alternativas e vice-versa. Por fim, o terceiro capítulo – O autodesenvolvimento: A economia política africana; A contribuição das ciências humanas e sociais; Democratização social e capitalismo contemporâneo. Uma das ideias centrais dessa publicação reside em oferecer para o Brasil, uma orientação dos principais nomes da intelectualidade africana tal qual, temas relacionados à nação, racismo, identidade, autonomia cultural, política e econômica. Uma obra que já nasce como um ícone para o público interessado sobre os estudos africanos e que brota como uma semente forte numa história de resistência. Analisando a razão própria do pensamento africano contemporâneo, a partir da centralidade dos intelectuais modernos, em detrimento ao problema do caráter eurocêntrico das universidades, expandindo as relações Brasil-África, avançando para além dos debates solidificados sobre cultura popular, tradição e ancestralidade.

Edward Byden (1832-1912) foi escolhido para dar início ao pensamento contemporâneo, nasceu no Caribe e viveu na Libéria, Serra Leoa e Nigéria. Muryatan Barbosa delimitou como abre alas do livro os conceitos de Byden sobre valores civilizatórios da personalidade africana que se imbricam na modernidade do continente. Tais preceitos estiveram entrelaçados à família, à vida coletiva, ao uso comum da terra e da água e a regulação das funções sociais (p. 23); em defesa das instituições africanas como caminho para o progresso, contudo, para ele, o caminho deste autogoverno não contaria com uma desvinculação total externa e europeia, neste caso britânica. Ao longo deste livro foram apresentadas diversas perspectivas, desde aquelas que tratam rupturas irreconciliáveis até as que falam de possibilidades de integração.

Como foi o caso da polarização panafricanista do Grupo de Brazaville/Monróvia e o Grupo de Casablanca, desenhada tal configuração após o assassinato de Patrice Lumumba (p.83) em 1960. Por outro lado, a Declaração de Arusha de 1967 na Tanzânia, foi um marco político, pois trouxe consigo um aprofundamento do socialismo africano, ao trazer o conceito de self-reliance para a política internacional, que segundo declaração de C.L.R. James foi “o mais alto estágio de resistência jamais alcançado por revoltosos negros na história mundial” (p. 96).

As lutas por libertação do colonialismo imperialista em busca de soberania e autodeterminação tem seu espírito presente na Conferência de Bandung (p. 75) que ocorreu na Indonésia em 1955, reunindo 29 países africanos e asiáticos, sob motivações panafricanistas e panarabistas, com destaque para o primeiro presidente egípcio Gamal Abdel Nasser (1918- 1970). O caso de Kwame Nkrumah (1909-1972), político e revolucionário, recebeu atenção especial ao longo da obra, que foi primeiro-ministro e primeiro presidente do Gana, nome chave da divulgação e construção do panafricanismo. Assim como foi intensamente exposto o pensamento de Frantz Fanon (1925-1961) da Martinica/Argélia e de Amilcar Cabral (1924- 1973) da Guiné Bissau. Outras lideranças políticas que serão fruto de calorosos debates e críticas sobre os rumos no pós-independência, com questões que envolvem cultura, tradição, resistências, negritude, política, economia foram: Leopold Senghor do Senegal, Nnamdi Azikiwe da Nigéria, Jomo Kenyatta do Quênia e Julius Nyerere da Tanzânia.

Como principais centros universitários que ecoaram os ideais de emancipação colonial, autodeterminação e autodesenvolvimento em território africano, contamos com as escolas de pensamento historiográfico da Universidade de Dakar no Senegal, a Universidade de Ibadan na Nigéria e a Universidade de Dar es Salam na Tanzânia. No Brasil, tais questões se entrelaçam a partir do Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO), da Universidade Federal da Bahia (UFBA), de 1959; o Centro de Estudos Africanos (CEA), da Universidade de São Paulo (USP), de 1968; o Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA), da Universidade Cândido Mendes (UCAM), de 1973. Em especial, a trajetória do CEAA foi analisada recentemente por Jorge Lucas Maia em sua dissertação que percorre a construção deste campo de estudo e ativismo da cultura negra no Brasil.

Um ponto conclusivo e chave que identifico no livro, foi a atenção às mulheres que estiveram presentes nos debates, historicamente percebemos uma omissão delas na literatura sobre o tema. A maior parte dos referenciais da razão africana contemporânea estiveram associadas às personalidades masculinas. Apesar da articulação das discussões acadêmicas serem androcêntricas, há um esforço do autor em dar visibilidade e reconhecer figuras de destaque femininas, argumento chave para a questão do autodesenvolvimento presente no capítulo 3. Nele foram mencionadas as seguintes mulheres que começaram a ter maior destaque nas pesquisas e que servem de estímulo para o interesse do público, são os nomes de Nzinga Mbandi, Kimpa Vita, Ndaté Yalla Mbodj, Sarraounia Mangou, Taytu Betul, Yaa Asantewaa, Charlotte Maxeke, Lilian Masediba Ngoyi, Alda Espírito Santo, Alimotou Pelewura, Aline Sitoe Diatta Gisèle Rabehasala, Aoua Keita, Funmilayo Ransome Kuti, Ernestina Silà, Jeanne Martin Cassé, Angie Elisabeth Brooks, Deolinda Rodrigues de Almeida, Winnie Mandela e Miriam Makeba (p. 159-160).

Recomendamos este livro para jovens pesquisadoras/es que buscam se localizar nos debates do passado recente e também para quem é jovem há mais tempo nos trabalhos acerca da vasta e complexa epistemologia. Essa obra foi feita numa perspectiva de articular o que a intelectualidade africana vem produzindo sobre África e sobre o mundo, com enfoque nas tradições intelectuais acadêmicas, mas vale ressaltar que a origem dessa razão esteve calcada em tradições milenares, como o exemplo dos núbios e da filosofia Kemética, chamando atenção ao historiador e filósofo Ibn Khaldun (p. 9) de Tunis do século XIV. Mais do que trazer respostas, Barbosa nos forneceu um manual orientador de escolas intelectuais, de campos de compreensão, de choques e de consensos, de rupturas e continuidades, de elasticidade dos conceitos e dos fenômenos.

Referências

BARBOSA, Muryatan. Razão Africana: Breve História do Pensamento Africano Contemporâneo. São Paulo: Todavia, 2020.

MAIA, Jorge Lucas. Trânsitos sul-atlânticos: o Centro de Estudos Afro-Asiáticos e a circulação de referenciais de cultura negra na diáspora africana. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2020.

SOUZA, Mônica Lima. A África tem uma história. Afro-Ásia, v. 46, p. 279-288, 2012.


Resenhista

Priscilla Marques Campos – Mestranda no PPGH UNIFESP. E-mail: priscilla.marques@unifesp.br


Referências desta Resenha

BARBOSA, Muryatan. Razão Africana: Breve História do Pensamento Africano Contemporâneo. São Paulo: Todavia, 2020. Resenha de: CAMPOS, Priscilla Marques. Inspirações para o pensamento africano contemporâneo. Kwanissa – Revista de Estudos Africanos e Afro-Brasileiros. São Luís, v. 4, n. 8, p. 404-408, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR]

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