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Raúl Prebisch (1901-1986): A Construção da América Latina e do Terceiro Mundo – DOSMAN (NE-C)

DOSMAN, Edgar JUNIOR. Raúl Prebisch (1901-1986): A Construção da América Latina e do Terceiro Mundo. Trad. Teresa Dias Carneiro; César Benjamin. Rio de Janeiro: Contraponto/Centro Internacional Celso Furtado, 2011. Resenha de: BARBOSA, Alexandre de Freitas. O anti-herói desenvolvimentista. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.94, Nov, 2012.

Raúl Prebisch e Ernesto Che Guevara, antípodas em quase tudo, foram as duas maiores contribuições argentinas para a política internacional do século XX. A tal ponto se tornaram cidadãos do mundo que o apodo argentino vem apenas como local de origem. Mas enquanto Che possui várias biografias, figura como símbolo pop e é perseguido por estudiosos em cada uma de suas facetas, don Raúl parecia relegado ao esquecimento.

O leitor latino-americano tem agora acesso à bela e rigorosa biografia escrita por Edgar Dosman – professor de ciência política da Universidade de York, no Canadá – publicada em inglês em 2009, lançada em espanhol em 2010 e em português em 2011. Sim, um autor canadense produziu a obra que nenhum latino-americano se dispôs a escrever como forma de erguer trincheiras contra a avalanche livre-cambista que tomou a região no último quarto do século XX.

PREBISCH, O OUTSIDER

Prebisch foi o primeiro grande pensador econômico latino-americano, tendo iluminado as trilhas próprias percorridas por Celso Furtado e Aníbal Pinto, “formados” na escola da CEPAL , e que o superariam em vários aspectos.

Seu papel foi o de um ousado abridor de caminhos, não o de um economista acadêmico. Interpretou a realidade argentina e, depois, latino-americana, porque a conhecia a partir da perspectiva privilegiada de servidor público e de construtor de instituições nacionais (Banco Central argentino), regionais (cepal e ilpes) e globais (UNCTAD ). Antidogmático por essência, o escrutínio do real lhe permitira romper os diques das teorias consagradas, avançando a sua reflexão à medida que propunha novas políticas e instrumentos de ação.

Economista que possuía tão somente um diploma de contador, Prebisch revolucionaria a forma de pensar a economia latino-americana e seria o primeiro a cunhar teórica e politicamente a ideia de uma “nova ordem econômica internacional”1. De livre-cambista com ressalvas nos anos 1920, se tornaria nos anos 1930 defensor de um papel ativo do Estado na vida social e econômica. Nos anos 1940, ainda de maneira solitária, e nos anos 1950 e 1960 com maior contundência, formularia com rigor teórico os conceitos de “centro” e “periferia”, “desenvolvimento para dentro”, “insuficiência dinâmica”, ao mesmo tempo que apostava na integração latino-americana e na “alteração das relações de dependência” entre os países do Sul e do Norte.

Ao contrário da versão tão difundida de que fora um conservador, um financista e um funcionário pró-eua, Prebisch acionou políticas anticíclicas nos anos 1930, fez a reforma do imposto de renda na Argentina, tornando-o mais progressivo, e defendeu a industrialização latino-americana com reforma agrária. Se não relutava em negociar com os Estados Unidos – no governo argentino, durante a CEPAL e a UNCTAD – era porque este país aparecia como a principal, e talvez única, potência efetiva de sua época; por outro lado, talvez tenha sido quem mais sofreu na pele o poder do império norte-americano, que sempre podou seus esforços por uma distribuição mais justa do poder econômico em escala regional e global. Muito do que se escreveu sobre Prebisch em artigos acadêmicos nas revistas da economia convencional ou foi publicado na imprensa dos países latino-americanos pelos novos policy-makers dos anos 1980 e 1990 não resiste à pesquisa cuidadosa realizada por Dosman.

Prebisch era um outsider em todos os aspectos. Filho de imigrante alemão, nascido em Tucumán, longe do brilho de Buenos Aires, o funcionário acusado de “entreguista” na sua terra natal criou uma burocracia econômica com sentimento de dever ao Estado e à nação. O poder curvara-se a ele, não o contrário. Depois daria fôlego inusitado às duas instituições rebeldes do sistema internacional – CEPAL e UNCTAD – não para estilhaçá-lo, mas na pretensão de corrigi-lo.

Dosman procura revelar a personalidade por trás do mito, de modo a desmontá-lo. Em vez de autoritário, pretensioso e europeizado, vemos um homem reservado, sem arroubos, dedicado ao serviço público e contemporizador. Orgulhava-se dos “quatrocentos anos de história argentina que correm nas suas veias”2 e da tarefa que se impôs numa quadra histórica que permitiu a ascensão de um pensamento latino-americano original. Enfim, um anti-herói, pois jamais posou de mártir.

O livro nos conta de maneira romanceada a trajetória quixotesca desse homem abnegado, “movido por uma busca de momentos históricos”3, mas que encontraria sempre, a cada esquina, a história – ou as artimanhas do poder, do qual se aproximara como a única forma de mudar o mundo – pregando-lhe peças, impedindo que a sua missão fosse concluída. De derrota em derrota, ele mudaria a história da América Latina, embora não no sentido que almejara.

A CONSTRUÇÃO DO ESTADO ARGENTINO E O EXÍLIO FORÇADO

O jovem Prebisch chega a Buenos Aires em 1918, aos dezessete anos. A capital exibia o fausto da prosperidade econômica gerada pelas exportações de cereais e de carne. Os sistemas de ensino, de transportes e eleitoral estavam anos-luz à frente dos demais países da região. Parecia uma nova Europa gerada pela pampa humeda.

Estudaria economia na primeira universidade a criar este curso na região. Logo se desanima, entretanto, com a retórica fastidiosa de seus professores, que repetiam os tratados ingleses sem qualquer originalidade. Em 1920, antes de se formar, já trava debate com Alejandro Bunge, o Roberto Simonsen argentino. Discorda então o jovem de dezenove anos da industrialização como alternativa para o desenvolvimento de seu país. Chega a tentar uma filiação ao Partido Socialista argentino, mas desiste depois que um artigo seu contra a volta da Argentina ao padrão-ouro rende-lhe uma censura por parte de nada menos que Juan Justo, o famoso líder socialista.

Influenciado pela leitura de Vilfredo Pareto, decepcionado com a tradição bacharelesca da vida acadêmica, avessa à pesquisa empírica, e sentindo-se não contemplado por nenhuma das facções políticas argentinas, decide servir ao seu país, dotando-o de uma nova elite administrativa. Trabalha para a poderosa Sociedade Rural argentina por duas vezes, nos anos 1920, sendo em ambas demitido pela independência dos seus relatórios. Como consultor do Ministério da Fazenda visita a Austrália e o Canadá, onde percebe as vastas diferenças com sua terra natal, que sofria os efeitos da concentração da propriedade fundiária e a da lenta modernização do Estado. Vira assessor do Ministério da Agricultura e depois se torna diretor-adjunto do Departamento Nacional de Estatísticas.

Em 1927, dá o primeiro salto de sua carreira. É nomeado, aos 26 anos, para o cargo de diretor do Banco de la Nación, tornando-se responsável pelo novo departamento de pesquisas econômicas. Procura trazer para o Sul a experiência do fed norte-americano, que tanto o impressionara. Em 1930, logo após o golpe de Uriburu, é convidado para assumir a subsecretaria da Fazenda. Prebisch toma então as rédeas da economia argentina. Procura inovar, abandonando as teorias sem serventia num momento de crise.

A saída do presidente leva à sua queda. Faltavam então as bases institucionais para uma gestão econômica eficiente. Do contrário, pensava, teria que depender sempre do beneplácito dos poderosos de ocasião. Ao final de 1932, é escolhido como membro da Comissão Preparatória da Conferência Econômica Mundial da Liga das Nações. É então que percebe a irrelevância dos países periféricos: tratava-se de “uma briga de cachorro grande”. No início do ano seguinte, é convocado para fazer parte das negociações do famigerado Pacto Roca-Runciman, quando a Argentina é forçada a aceitar as concessões exigidas pelos ingleses. Estava morta a teoria neoclássica e, junto com ela, o multilateralismo. É então que lê entusiasmado, na Inglaterra, o artigo “Road to prosperity”, de Keynes.

Na volta à Argentina, a sorte – ou a mudança na administração – lhe presenteia com a dupla assessoria dos ministérios da Fazenda e da Agricultura, acumulando tais cargos com o que ainda ocupava no Banco de la Nación. Formula o Plano de Recuperação Econômica, que tira a Argentina da crise antes dos países industrializados. Acusado de participar de um governo autoritário, Prebisch aproveita as brechas do poder para modernizar o Estado. Acredita-se um “economista nacionalista e profissional que escolhera participar em vez de ficar de fora”4. No íntimo, percebe a mediocridade dos militares e das elites tradicionais que dão sustentação aos governos da Concordancia.

O próximo salto se daria quando assume o cargo de gerente-geral do Banco Central argentino, criado em 1935. Ele e seu “cartel de cérebros” implantam um novo estilo de gestão na máquina pública, caracterizado pela sobriedade, dedicação abnegada e capacidade técnica. Prebisch redige de próprio punho os relatórios anuais da instituição. O Banco Central exerce o papel de garantidor da estabilidade ao mesmo tempo em que apoia a expansão econômica, modulando os ciclos.

Em 1940, Prebisch elabora o Plan Pinedo, não aprovado em virtude da crescente oposição ao governo, enfraquecido e sem base de sustentação. Procura reduzir a dependência da Inglaterra, aproximando-se dos Estados Unidos – para quem quer vender produtos industrializados – e da América do Sul. Em 1943, é demitido com a ascensão de Perón à estrutura de poder. Passa a sofrer vigilância policial e tem que fugir para Mar del Plata. Tem seu salário suspenso, o que faz com que volte a ministrar aulas na Faculdade de Ciências Econômicas.

Entretanto, convites não lhe faltam. Assessora o Banco Central mexicano e os governos da Venezuela, Paraguai, República Dominicana e Guatemala, dentre outros. Rejeita todos os convites para ensinar em universidades norte-americanas. Prepara-se para voltar ao governo, na expectativa de que “o peronismo acabaria um dia”5.

O homem que ditara os rumos da economia argentina por quinze anos entra em depressão, o que faz com que se lance numa tentativa árdua de processar teoricamente a sua experiência. Não consegue publicar o que escreve – à exceção de Introducción a Keynes, de 1947, lançado pela Fondo de Cultura Económica -, apesar da recepção que seu trabalho tem nos Estados Unidos e na América Latina, inclusive no Brasil, onde tem em Eugenio Gudin um grande admirador, embora este conhecesse tão somente o gerente financeiro. O teórico iconoclasta estava, àquela altura, ainda lapidando seu novo sistema de ideias.

A CEPAL E A INVENÇÃO DA AMÉRICA LATINA

Pouca gente sabe que, ao fim de 1948, Prebisch parte para Washington para assumir o cargo de assessor do diretor-geral do FMI. E que graças às vicissitudes da política norte-americana – bem como à oposição dos governos brasileiro e argentino – lhe sobra como última opção a de consultor da CEPAL , recém-criada, e que ele imaginara como uma instituição de fachada. Depara-se desde logo com o desafio de torná-la efetiva: a depender dos Estados Unidos, a CEPAL nasceria moribunda.

Santiago era a última opção para o obstinado construtor de instituições econômicas. Tinha um desafio: elaborar em três meses o documento Investigación Económica de América Latina para a sessão da CEPAL , a se realizar em maio de 1949, em Havana. Além de tecer um panorama geral da região, deveria oferecer uma direção para a instituição, que contava com a oposição cerrada dos Estados Unidos, que pareciam determinados a extingui-la em 1951. Com uma equipe pequena, enfrentando o ceticismo dos norte-americanos, do Banco Mundial e do FMI, e contando apenas com algum apoio da onu, o documento é elaborado.

Mas Prebisch queria também apresentar algo menos técnico, que refletisse o seu acúmulo teórico nos tempos de exílio do governo argentino – já em 1945, os conceitos centro e periferia aparecem nos seus textos e correspondências – e apontasse para uma nova estratégia de desenvolvimento na região. Algo que juntasse teoria, política e utopia.

A primeira versão do que viria a ser o “manifesto latino-americano”, de abril de 1949, era bastante rebuscada. Celso Furtado, já então na CEPAL , a lera, tendo achado o texto muito acadêmico e defensivo. Prebisch, também insatisfeito, reescreve-o completamente, em três dias e três noites, tornando-o mais acessível. Introduzia assim um novo vocabulário no debate sobre desenvolvimento em escala internacional, partindo da especificidade latino-americana. E o diagnóstico convidava à ação.

A apresentação em Havana foi acontecimento inesquecível para os que ali estavam. O documento recebeu o apoio dos governos latino-americanos e foi recebido com frieza pela delegação de baixo perfil do governo norte-americano. Acadêmicos do mainstream da época, como o professor Jacob Viner, de Princeton, sentiram calafrios. O documento continha no seu entender “fantasias desvairadas, conjecturas históricas distorcidas e hipóteses simplistas”6. Não era para menos: o texto batia de frente com a ortodoxia das vantagens comparativas. Ainda pior para os seus detratores, não era comunista nem protecionista. Defendia o comércio, apostava na industrialização, sem menosprezo pela agricultura, e propugnava uma ação reformadora e inteligente do Estado.

Inventava-se assim a América Latina, uma região com especificidade histórica, decorrente da sua inserção no sistema internacional, mas agora dotada de ferramentas de reflexão próprias e de um conjunto de novos instrumentos de política econômica adequados à sua realidade. Ao voltar-se sobre si mesma, a América Latina oferecia uma nova interpretação sobre o universal. O véu que protegia o mundo ocidental era descoberto pelo olhar periférico. As ideias encontravam, nesta quadra histórica, o seu lugar7. Para Prebisch, não se tratava de separar a periferia do centro, ou de negar os aportes científicos da teoria econômica – o próprio manifesto não continha uma teoria acabada, antes prometia mais pesquisa e reflexão -, mas de destacar a dinâmica e estrutura da desigualdade global. Diferenciava-se, inclusive, do marxismo dominante, refutando as análises acerca do imperialismo como simples manifestação do capitalismo monopolista.

De regresso ao Chile, Prebisch possuía agora um novo “cartel de cérebros”, que contava com economistas de vários países da região e formações teóricas bem diversas, como Celso Furtado, o cubano Regino Boti, o mexicano Juan Noyola (que chegaria apenas em 1951) e o chileno Jorge Ahumada. Este último, de Harvard, chefiava a Divisão de Treinamento, enquanto Furtado ficara com a de Desenvolvimento, chamada de “divisão vermelha”.

A ameaça contínua à própria existência da CEPAL criava um vínculo especial entre os seus “combatentes”. Prebisch estimulava o debate entre os quadros, exigindo-lhes maior rigor na exposição dos argumentos. Chamava para si a responsabilidade política e dava autonomia para os seus jovens tocarem o barco, inclusive resistindo às perseguições ideológicas durante a maré montante do macartismo norte-americano.

A segunda grande batalha foi a Conferência do México de 1951. A CEPAL passava agora a ter um mandato por tempo indeterminado, com plena independência, e novas funções além da produção de relatórios de pesquisa. Na sua nova fase, a organização latino-americana atuaria como centro de treinamento para quadros governamentais da região e de assistência técnica para as políticas de desenvolvimento de cada país.

As expectativas eram elevadas. A CEPAL assumia o papel de “usina de ideias” para a América Latina. Aproveitando o cenário positivo, Prebisch, secretário-executivo da CEPAL desde 1950, amplia e reestrutura a equipe da organização, que contaria ao final de 1953 com um corpo técnico de 130 funcionários em regime de tempo integral. É quando clama por cooperação internacional, reforço do planejamento econômico, estabilidade de preços para as exportações de matérias-primas, necessidade de um banco regional de desenvolvimento, mudança tributária e reforma agrária.

Entretanto, na segunda metade dos anos 1950, Prebisch vê o seu raio de manobra se estreitar. O cenário internacional não é favorável. A instituição, agora consolidada, está atolada de projetos. A reflexão teórica fica em segundo plano, contra os anseios de Furtado e Noyola, que passam inclusive a se ressentir da visão mais “ortodoxa” de Prebisch, que vira uma espécie de representante político de alto nível, priorizando as relações com os governos da região.

Na sua nova fase, a CEPAL concentra-se na defesa da integração latino-americana. Seria a solução para a expansão do comércio e para o prosseguimento da industrialização, rumo aos setores intensivos em capital nos países maiores, e abrindo novas possibilidades de especialização para os menores. Mas o projeto de mercado comum transforma-se na proposta tímida da alalc, lançada em 1960. Os Estados Unidos recusam qualquer perspectiva de colaboração mais ativa com a região.

O quadro aparentemente mudaria com a Revolução Cubana e a eleição de Kennedy. Em março de 1961, os Estados Unidos lançam de maneira retumbante a Aliança para o Progresso, com a presença aclamada de Prebisch, seu arquiteto intelectual. O Império assimila todo o vocabulário cepalino e o oferece de volta para a região: capitalismo progressista, reformas estruturais, cooperação para o desenvolvimento.

Prebisch sente-se desnorteado. Desconfia da adesão dos governos da região às reformas (fiscal e agrária) e do compromisso estadunidense com o desenvolvimento. A liberação de recursos da Aliança para o Progresso deveria estar subordinada, no seu entender, a uma comissão de sete especialistas, com a responsabilidade de aprovar os planos nacionais. A comissão de sete transforma-se no painel dos nove, de perfil apenas consultivo, facilitando a vida dos governos latino-americanos e dos Estados Unidos, que poderiam distribuir os recursos de acordo com suas prioridades políticas. Nosso anti-herói entrega os pontos. O triunfo dos Estados Unidos na guerra dos mísseis joga a penúltima pá de cal, justamente no momento em que a ala econômica mais conservadora do governo Kennedy assume a dianteira. A última seria o desembarque das ditaduras militares no Cone Sul.

Prebisch volta a Santiago em 1962, e enquanto espera a transição na secretaria-executiva, cria, com apoio do Fundo Especial da onu e do bid, o ilpes (Instituto Latino-Americano de Planejamento Econômico e Social). Quer voltar à reflexão teórica, deixando à CEPAL o trabalho mais aplicado.

O DESPERTAR DO TERCEIRO MUNDO

Se os ventos cepalinos se haviam abrandado na América Latina, eles voltariam a soprar pelos mares revoltos do Terceiro Mundo com a descolonização africana e asiática. Na Conferência do Cairo, de 1962, com a participação de 36 países não alinhados, Prebisch percebe que um novo mundo podia emergir, ou seja, que as ideias cepalinas podiam ser “globalizadas”. O G-77 seria criado, naquele ano, com a aprovação, na Assembleia Geral da onu, da realização da Conferência sobre Comércio e Desenvolvimento, a futura UNCTAD , em 1964. Prebisch, com seu prestígio junto aos países do Terceiro Mundo, assume o cargo de secretário-geral até a conferência. A oposição dos países desenvolvidos, especialmente dos Estados Unidos, mostrava-se forte. E o gatt, composto majoritariamente pelo “clube dos ricos”, não queria concorrente. Trabalhando em Nova York, Prebisch organizaria mais uma vez uma equipe só de craques, provenientes de todas as partes do mundo, para viabilizar o maior evento internacional da história das Nações Unidas até o momento.

Diferentemente de hoje, quando dispomos de voos diretos para a Europa de todas as partes, acesso a internet e blackberries, os representantes dos 119 países ficariam “isolados” em Genebra durante três meses. Tratava-se de uma nova aventura para Prebisch: o mesmo script da CEPAL , mas em escala ampliada. O documento por ele produzido lançava o conceito de desequilíbrio comercial. Se este se mantivesse entre países do Norte e do Sul, fluxos financeiros equivalentes a US$ 20 bilhões anuais teriam que ser acionados pelos primeiros para manter as contas externas dos últimos em ordem, caso estes lograssem um ritmo de crescimento anual de 5%.

A solução seria uma “nova ordem econômica internacional”, que estabilizasse os preços dos produtos primários, criasse um sistema de preferências para os manufaturados dos países do Sul e ampliasse o financiamento para o desenvolvimento. O burocrata global viajaria o mundo inteiro antes da UNCTAD I, desembarcando em várias capitais do mundo rico e pobre para apresentar seu novo evangelho.

Prebisch seria aplaudido de pé após seu discurso inaugural em Genebra. Nele, afirmara que a cooperação internacional não poderia ser vista como substituta do desenvolvimento. Cada país deveria fazer sua parte. Ele sabia da oposição que encontraria da parte dos Estados Unidos e das demais potências.

O desastre era iminente. Para impedi-lo, nosso anti-herói reúne em seu apartamento, em Genebra, representantes de oito países. A pauta não avança na direção das ações concretas reivindicadas pelo G-77. Prebisch, entretanto, consegue parir a UNCTAD , garantindo sua autonomia e independência. A entidade atuaria como espaço de pesquisa e fórum de negociação não neutro, ou seja, a serviço dos países em desenvolvimento, mas sem oposição aberta ao Norte, essencial para que qualquer acordo vingasse. Apesar da recepção hostil da plateia do G-77, que lamentava os ganhos retóricos, Prebisch vencera, e a UNCTAD está aí até hoje8, com menos poder do que ele gostaria, mas assumindo o papel que ele imaginara.

Durante a UNCTAD II, realizada em Nova Delhi, os mesmos choques de posições se sucederiam. O prazo para o término da conferência seria prorrogado duas vezes. Os países desenvolvidos comemoravam o sucesso da inércia, enquanto o G-77 via o novo vocabulário do desenvolvimento em escala ampliada ser soterrado. Prebisch aparecia como algoz dos países desenvolvidos e traidor do Terceiro Mundo. Mas o sgp9 seria aprovado, novos conceitos introduzidos, propostas concretas elaboradas (mesmo que engavetadas), com relatórios de qualidade produzidos a serviço dos países mais pobres.

Acertada a sua demissão da UNCTAD para março de 1969, Prebisch iria para Washington trabalhar no novo relatório sobre o desenvolvimento latino-americano a convite do bid. Nele, apontaria para a “crise do desenvolvimentismo”, contrapondo a região aos países do Sudeste Asiático, capazes de realizar reforma agrária, transformações institucionais e em sua estrutura econômica. Com o golpe de Pinochet, a CEPAL torna-se uma organização sitiada. Apenas com a crise do petróleo, Prebisch voltaria a ser saudado, por ricos e pobres, como um “visionário global”10.

Prebisch ainda teria tempo para criticar o endividamento excessivo dos países latino-americanos no final dos anos 1970, contra os prognósticos das entidades tradicionais que o louvava; e participar do governo Alfonsín na Argentina, defendendo o Consenso de Cartagena, em prol de uma posição comum para os países devedores, trazendo calafrios para o FMI, o Banco Mundial e o governo norte-americano. Não obstante, mais uma vez seria visto em casa como “entreguista”. Os peronistas já se encontravam na antessala do poder, como se a história dos anos 1940 tivesse que se repetir, mas dessa vez como farsa.

PREBISCH, FURTADO E O ESTRUTURALISMO

Seguimos acima a trajetória de Prebisch a partir da câmera lenta de nosso cineasta-biógrafo. Por mais que procure integrar as ideias de Prebisch e o seu estilo de liderança, iluminando as restrições e potencialidades das organizações em que nosso anti-herói trabalhara em cada momento histórico, nem sempre Dosman abarca essas várias dimensões em toda a sua complexidade.

Joseph Hodara11 ressalta a importância de um paradigma triangular entre ideias, estilo de liderança e entorno organizacional para entender a contribuição de Prebisch. No seu entender, a CEPAL alçou voo em virtude da “ética de seita” instaurada pelo argentino. Depois ela teria se enrijecido, alcançando o “estágio eclesiástico”, na qual a rotina burocrática acaba por vencer, inclusive se amoldando às novas modas do pensamento econômico, no máximo temperadas por adjetivos desenvolvimentistas.

Em vez de um típico tecnocrata, o economista argentino destacava-se pelo estilo argumentativo, nada neutro, brindando novas mensagens políticas e uma clara preocupação pedagógica. Adicionalmente, se o vocabulário prebischiano caracterizava-se pela polissemia, de modo a permitir-lhe maior margem de negociação, ele encontrava pouca receptividade nos ambientes acadêmicos, onde neoclássicos e marxistas ressentiam-se ao ver seus conceitos sofrer interpretações por demais arejadas12. Não à toa, Furtado o descrevera como o “grande heresiarca”13.

Outro aspecto digno de menção refere-se à história do estruturalismo. Prebisch aparece na biografia de Dosman como o primeiro praticante de um novo método de reflexão sobre as economias e sociedades latino-americanas. O próprio Dosman afirma que, depois da Conferência da CEPAL de Cuba, em 1949, Prebisch “teria criado o estruturalismo”14. Os estudos clássicos apontam para a mesma interpretação. É o caso de Rodríguez15, para quem, nos anos 1950, o estruturalismo parte do enfoque econômico, para depois, nos anos 1960, incorporar as dimensões social e política. Ou de Bielschowsky16, que percebe uma “teoria ‘estruturalista’ do subdesenvolvimento periférico” já no manifesto de Prebisch.

A origem está em Prebisch, é certo. No entanto, ele não era nem “estruturalista” nem havia formulado nenhuma “teoria do subdesenvolvimento” nos anos 1950. O “manifesto latino-americano”17 sequer continha a palavra “subdesenvolvimento”. Prebisch refere-se quando muito aos países da América Latina como “novos”, que não seguem – e nem há por que imaginar que devessem fazê-lo – os mesmos estágios e dinâmicas dos países centrais, até porque não contam com as mesmas premissas.

A segunda ruptura que levaria ao que se convencionou chamar de “teoria do subdesenvolvimento” é furtadiana até a medula. Não se trata aqui de discutir paternidade teórica, mas de ressaltar que a primeira CEPAL apenas lançara a semente do que seria chamado de pensamento econômico estruturalista latino-americano. Depois de um esforço inaudito durante a segunda metade dos anos 1950, Furtado vai explicitar as características do método histórico-estruturalista, conferindo-lhe um enfoque teórico específico, tal como apresentado em Desenvolvimento e subdesenvolvimento18. Essa hipótese é lançada por Mallorquín19.

Para além de se comportarem de maneira distinta nos ciclos, em Furtado, centro e periferia fazem parte de uma mesma totalidade histórica, que se manifesta com dinâmicas estruturais distintas que extravasam o econômico. O mais interessante é que o mestre Prebisch se transforma em discípulo, com O capitalismo periférico, publicado em 1981, mas escrito ao final da década de 1970, quando não se encontra mais preso às artimanhas organizacionais e ao peso da ação política.

O próprio Prebish o admite nos agradecimentos ao livro: “ante todo, Celso Furtado”, “nadie ha penetrado com más profundidad en la interpretación del desarrollo”20 – antes de entrar de cheio na dinâmica do “capitalismo periférico”, da sua estrutura social e de suas travas políticas. Prebisch não deixa de assinalar as mudanças do “capitalismo central” – até porque ambos fazem parte de um todo integrado – mas concentra o seu olhar na assincronia das estruturas latino-americanas.

A heterogeneidade estrutural – o mestre também aprendeu com Aníbal Pinto21 – é antes reforçada pela industrialização, pois este capitalismo, por ser imitativo, está baseado fundamentalmente na desigualdade. Isto porque parcela expressiva do excedente é esterilizada internamente ou drenada para fora, desperdiçando o potencial de acumulação de capital, que poderia atender às demandas sociais e revigorar os processos de democratização22.

Nesse último exercício teórico, Prebisch argumenta que o esquema centro-periferia pode e deve ser enriquecido, de acordo com as mudanças históricas, mas desde que tenha como objetivo a elaboração de uma teoria global do desenvolvimento23, que capte as dinâmicas internas e articulações externas entre os “capitalismos” central e periférico.

PREBISCH REDIVIVO

O Prebisch que podemos herdar, mantendo a sua embocadura analítica, é este que fala do “meu pensamento cepalino”, como se um mar metodológico desaguasse em vários rios interpretativos; bem diverso da CEPAL no seu estágio “pós-eclesiástico”, que inclusive endossou o credo neoliberal, antepondo-lhe algumas vírgulas nos anos 1990. Um Prebish em diálogo profundo com Celso Furtado e Aníbal Pinto e com outras correntes de interpretação, como a “teoria da dependência”, o pensamento histórico-institucionalista e as contribuições neo-schumpeterianas, dentre outras. Mas também um autor que casa embasamento empírico com generalizações teóricas e formulações políticas de longo prazo – o que só é possível quando se assume uma perspectiva metodológica que associa o “intervencionismo decidido do Estado”, num contexto social e histórico específico, onde o “não reducionismo econômico deriva de um não determinismo definido”, nos termos de Rodríguez24, sempre levando em consideração os impactos das conformações cambiantes da totalidade capitalista.

Nesse sentido, a compreensão da realidade histórica latino-americana, ontem, hoje e amanhã, pode ser feita a partir dessa metodologia de análise que parte de tendências gerais, como, por exemplo, a dinâmica do sistema centro-periferia, sempre reciclada de modo a concentrar os frutos do progresso técnico em áreas privilegiadas da economia-mundo capitalista, reforçando por sua vez a heterogeneidade estrutural que permite a recriação do subdesenvolvimento sob novas formas.

A pergunta que se coloca então é sobre o papel da ciência econômica e das ciências sociais em geral. Tal como no passado, a marca da cepal está no ecletismo em assimilar e reprocessar as contribuições do pensamento clássico, marxista e keynesiano, a partir de uma experiência histórica peculiar. Neste sentido, o vigor de um programa científico do estruturalismo estriba justamente na capacidade de acompanhar os avanços teóricos das várias formulações heterodoxas, de modo a fornecer os “fundamentos” para uma “teoria especial” do acontecer econômico25 nos diversos países latino-americanos no contexto histórico atual. A própria evolução do pensamento cepalino propriamente dito esteve sempre relacionada não somente à história real do objeto de análise, como com o próprio contexto ideológico, relacionando inserção internacional, tendências e contradições internas do crescimento da periferia e ação do Estado26.

Dessa forma, associar o estruturalismo, a teoria do subdesenvolvimento ou a economia política cepalina à “teoria da deterioração dos termos de troca”, atitude hoje muito em voga, é tomar a parte pelo todo. Ora, aquela tendência apenas indicava que, num contexto específico, o do novo centro global protagonizado pela economia norte-americana nos albores do pós-Segunda Guerra Mundial, levaria inexoravelmente ao processo de industrialização, que deveria ser planejado, de modo a não internalizar as características concentradoras da dinâmica do sistema capitalista, as quais encontravam solo fértil em virtude das peculiaridades estruturais da região.

Num contexto de ascensão chinesa, crise das economias ditas centrais e reorganização da divisão internacional do trabalho, ou seja, em que mais uma vez o centro de gravidade da economia-mundo capitalista passa por deslocamentos que alteram de maneira sistêmica a sua dinâmica de funcionamento 27, Prebisch e seus “companheiros de seita” parecem mais bem aparelhados com suas categorias28 para enfrentar o real do que os economistas com instrumental estático ou os catastrofistas de plantão.

Notas

1 DOSMAN, Edgar JUNIOR. Raúl Prebisch (1901-1986): a construção da América Latina e do Terceiro Mundo. Rio de Janeiro: Contraponto/Centro Internacional Celso Furtado, 2011, p. 489.
2 Ibid., p. 246.
3 Ibid., p. 27.
4 Ibid., p. 121.
5 Ibid., p. 261.
6 Ibid., p. 285.
7 CARDOSO, F. H. As ideias e seu lugar: ensaios sobre as teorias do desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1993, pp. 29, 59, 70-4. Nesse texto, dialogando com os conceitos de Roberto Schwarz, o sociólogo aponta para a “originalidade da cópia cepalina”.
8 Ver a reedição dos “mesmos conflitos” na recente UNCTAD XIII, realizada na cidade de Doha em 2012. “UNCTAD expõe racha entre ricos e emergentes”. Valor Econômico, 27, 28 e 29 de abril de 2012, p. A13.
9 Trata-se da sigla de Sistema Geral de Preferências (gps, em inglês), que até hoje responde por parcela importante das exportações de manufaturados da periferia capitalista para os países do Norte.
10 Edgar Dosman, op. cit., pp. 537-8.
11 HODARA, J. Prebisch y la CEPAL : sustancia, trayectoria y contexto institucional. Mexico: El Colegio de Mexico, 1987, pp. 12-4, 16-23, 38-9.
12 O’HIRSCHMAN, A. A economia como ciência moral e política. São Paulo: Brasiliense, 1986, pp. 66-7, 75. O autor menciona a “estranha coalizão entre marxismo e monoeconomismo”.
13 FURTADO, C. A fantasia organizada. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985, 5. ed., cap. vii.
14 DOSMAN, op. cit., p. 314.
15 RODRÍGUEZ, O. O estruturalismo latino-americano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, pp. 27 e 41.
16 BIELSCHOWSKY, R. “Cincuenta años del pensamiento de la CEPAL : una reseña”. InCincuenta años de pensamiento en la CEPAL : textos seleccionados. vol. 1. Santiago: Fondo de Cultura Económica/cepal, 1998, pp. 14 e 17.
17 PREBISCH, Raúl. “El desarrollo econômico de la América Latina y algunos de sus principales problemas”. In: Cincuenta años de pensamiento en la CEPAL , op. cit. Trata-se do texto original de 1949.
18 FURTADO, Celso. Desenvolvimento e subdesenvolvimento. 3. ed. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1965. A primeira edição é de 1961.
19 MALLORQUÍN, Carlos. Celso Furtado: um retrato intelectual. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Xamã, 2005, pp. 16, 122-31, 261 e 328.
20 PREBISCH, Raúl. Capitalismo periférico: crisis y transformación. México: Fondo de Cultura Económica, 1981, p. 9.
21 PINTO, A. “Naturaleza e implicaciones de la ‘heterogeneidad estructural’ de la América Latina”. In: Cincuenta años de pensamiento en la CEPAL : textos seleccionados, vol. 2, op. cit. Esse texto foi publicado pela primeira vez em 1970 e significou uma ruptura com as teses dualistas.
22 PREBISCH, R., Capitalismo periférico, op. cit., pp. 14-15, 37-45.
23 Ibid., pp. 26 e 30.
24 RODRÍGUEZ, op. cit., pp. 46-8.
25 Ibid., pp. 42-4 e 61.
26 BIELSCHOWSKY, op. cit., pp. 11 e 17.
27 CASTRO, Antonio Barros de. No espelho da China, 2009 (mimeo).
28 Para um intento de aplicar as categorias cepalinas de modo a compreender os impactos da ascensão chinesa sobre a América Latina, ver Barbosa, Alexandre de Freitas. “China e América Latina na Nova Divisão Internacional do Trabalho”. In: Leão, Rodrigo Pimentel Ferreira, Pinto, Eduardo Costa e Acioly, Luciana (orgs.). A China na nova configuração global: impactos políticos e econômicos. Brasília: ipea, 2011.

Alexandre de Freitas Barbosa – Professor de História Econômica e Economia Brasileira do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP) e pesquisador associado do Cebrap.

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