Originalmente escrita como dissertação de mestrado na Universidade Federal de Uberlândia, Rap e política é resultado de intensa pesquisa, que mereceu mais de um prêmio antes mesmo de ser publicado. Seu autor, Roberto Camargos, é, atualmente, doutorando na Universidade Federal de Uberlândia, a mesma universidade em que fez a graduação e o mestrado. Para a pesquisa que resultou nesta publicação, pesquisou centenas de músicas daquele gênero, gravadas entre 1990 e 2005, num trabalho que demandou muita pesquisa e apuro crítico.
O autor começa discordando das posições críticas que desautorizam o rap como arte, expressão cultural, comportamento etc., afirmando que é necessário
(…) ir ao rap com um olhar mais amplo, o que não implica renunciar às questões estéticas (…), tampouco desprezar as articulações que os sujeitos, por meio do rap, constroem entre cultura, vida cotidiana e política. O ideal é pensá-lo em sua totalidade: como música, como composição textual, como um produto e como uma prática de tempo e contexto específicos1.
Além disso, segundo o autor, a análise de parte da produção do rap no Brasil de fins do século XX e começo do XXI revela um “intenso diálogo da música com a vida social”2, objeto de estudo do autor neste livro, independente dos valores estéticos que essa produção possa ou não ter, já que, no sentido aqui colocado,
a importância dessa cultura/música para os debates em torno da sociedade contemporânea está, em termos gerais, no fato de que parte considerável dela constitui meios de expressão associados às classes populares e, sob seu prisma (de pessoas comuns, de trabalhadores) ganha corpo uma intrigante interface entre história, cultura, sociedade, protesto social e vida cotidiana3.
Roberto Camargos lembra que, nas últimas décadas, o capitalismo teve grande impacto sobre a sociedade, agudizando os problemas sociais, fatos que estão presentes nas letras dos rappers, cujas canções podem representar “a construção de memórias de uma época”, já que incorporam “a diversidade, a tensão, a oposição, a conformidade e a negação entre diferentes sujeitos”4. Daí a intenção deste livro de
pensar a vida social lançando mão das canções de rap, centrando a atenção nos indícios de experiências históricas comuns, das quais provêm ideias, sentimentos, decepções e aspirações que permeiam a vida das pessoas *…+ Suas músicas, compreendidas como representações, elucidam, mesmo que parcialmente, relações de poder estabelecidas, sendo indícios de práticas, ações e valores em negociação e, no limite, em dissonância com a ordem social do capital. 5
Desse modo, olhar para as relações rap-sociedade supõe o estudo de certas formas de tensão social presentes no Brasil, já que o rap permite a “construção de representações sobre a sociedade brasileira”6, na medida em que ele é
uma importante via para adentrarmos no terreno dos conflitos, das tensões e do poder que opera desigualmente na vida social, conduzindo-nos a repensar os processos sócio-históricos no Brasil atual (que, não raro é visto, com pessimismo pelos rappers) e as contradições que os cercam, mesmo quando a difusão do rap está associada, em alguma medida, à indústria cultural (particularmente a do entretenimento) e, por isso, seja tachado de alienante. 7
Buscando apresentar, entre outras coisas, a origem do rap, o autor lembra que sua genealogia não é muito precisa, até por ter surgido “à margem de esquemas formais de regulação e documentação da cultura”8 . De qualquer maneira, há algumas constantes que são consenso em relação à sua origem, como o fato de ele estar ligado à presença de imigrantes negros e latino-americanos (sobretudo os jamaicanos), com forte base cultural africana; resultado de múltiplas experiências culturais, o rap não é um produto acabado e cristalizado, interagindo com diversos estilos musicais, carregando uma reconhecida bagagem cultural e social e instituindo uma espécie de poética. No Brasil, essa manifestação cultural-musical chega em meados dos anos 1980, embora já tivesse se manifestado antes, nos bailes blacks (quando ainda se confundia com o funk); nos anos 1990, as diferenças aumentam, e o rap ganha mais autonomia, configurando-se como uma estética do problema, representando as questões sociais mais agudas das periferias, priorizando temas do cotidiano e ligados à marginalização. Em resumo:
O rap foi ativamente incorporado ao expediente cultural brasileiro, e os sujeitos que a ele se vincularam e se projetam, inclusive por intermédio dele, em meio aos debates acerca da sociedade de seu tempo, atestaram, assim, sua participação na vida pública e, em particular, nos meandros da política. Construíram uma prática cultural que verbalizou as dissonâncias, assinalou a contestação social no espaço da cidade e alimentou um novo ambiente de reflexão e denúncia. O rap operou com uma dupla função no cotidiano de seus produtores e fruidores: a um só tempo foi discurso de revolta e denúncia da deplorável condição a que um sem-número de brasileiros é relegado e também veículo de catarse perante situações de opressão e controle social. Ao aderir a essa prática, homens e mulheres criaram um espaço no qual puderam reaver e construir sua identidade, reconfigurar sua autoestima e propagar valores alternativos. 9
O autor trata, ainda, das críticas feitas ao rap, desconstruindo algumas delas (como aquelas que consideram o rap brasileiro como uma mera cópia/imitação do americano), refletindo sobre questões mais pontuais (forma, conteúdo, aspectos musicais etc.) e discutindo aspectos ideológicos (como a crítica de que o rap seria alienante). O autor defende a ideia, entre outras, de que os rappers brasileiros souberam recriar a linguagem vinda do exterior, adaptando-a ao contexto nacional; destaca, contudo, a marca recorrente da experiência social presente em suas letras: “as memórias erigidas pelos rappers desembocaram numa espécie de memória-experiência. Uma memória, diga-se de passagem, urdida em narrativas complexas e ricas.” 10
Outro elemento estudado pelo autor é a trajetória de alguns dos sujeitos que constituem o cenário do rap no Brasil, levando em conta “a representação que elaboram acerca deles mesmos e da prática cultural com a qual se envolveram.” 11 Nesse contexto, destaca “a construção de uma atitude engajada, de um posicionamento crítico e de uma postura de protesto em suas [dos rappers] ações, músicas e comportamentos.” 12 Torna-se relevante, nesse cenário, o papel de sujeito engajado que os rappers adotam para si, enfatizando assim a relação entre música e política.
É sobretudo este aspecto das canções de rap estudadas que o autor irá destacar em suas análises, a começar pelo fato de detectar, nas letras das músicas, uma concepção ampla de política, numa virada conceitual que traz a política para o cotidiano, isto é, fora dos espaços convencionais e fora do âmbito de seus agentes instituídos (os políticos). É nesse sentido que os sujeitos do cenário do rap trazem para suas canções uma maior complexidade social e cultural, questionando valores e conceitos. Relegando, assim, a política tradicional a algumas letras que a condenam numa espécie de tribunal de opinião, os rappers optam por retratar em suas letras as experiências vividas no dia a dia das grandes cidades, uma experiência marcada pela dramaticidade da vida social:
As tensões das relações sociais se encarnam na linguagem rap e projetam a produção cultural como uma memória seletiva de aspectos do trabalho, da política, dos costumes, dos símbolos e valores do emaranhado que é a sociedade contemporânea. É possível pensar essas músicas como portadoras de elementos constituintes das constantes mudanças sociais, como um campo de luta em que as disputas de domínio e afirmação social se fazem presentes. São representações que reconstroem (ou constroem em articulação com) elementos/acontecimentos socialmente vividos. Em suma, um processo de reconfiguração da experiência que estreita os laços entre cultura e vida social. 13
Em outros termos:
A cultura musical rap é amplamente diversificada, respondendo por uma variedade de perspectivas e modos de ver o mundo. Entretanto, a despeito de todas as diferenças, está conectada às experiências de sujeitos socialmente ativos e permite, pelo ‘filtro’ colocado por essas pessoas, apreendê-las, analisá-las e qualificá-las. Suas músicas tratam de situações que implicam a delimitação de grupos sociais, colocando-se como pertencentes a estratos marginalizados, pobres, discriminados, oprimidos. 14
Assim, analisando a letras de várias canções do rap, o autor destaca aspectos políticos, sociais, pessoais etc., sempre enfatizando a “inter-relação realidade e ficção”15, além de sua atuação com instrumento pedagógico nesse contexto. São, portanto, essas poéticas do vivido que dão o tom crítico às letras das músicas, que vai além do entretenimento, chocando-se com padrões hegemônicos de interpretação da realidade.
Seu livro, por fim, dialoga não apenas com outras obras do gênero – uma vez que, há algum tempo, o rap tem sido objeto de pesquisa acadêmica –, mas também com o contexto político em que ele é produzido e no qual se insere como contraponto crítico. Nesse sentido, insere-se numa tradição que tem estudado esse fenômeno artístico seja do ponto de vista cultural, como manifestação estético-social da periferia, a exemplo do livro de Andréia Moassab16; seja do ponto de vista sonoro, como fenômeno musical de nosso tempo, a exemplo do livro de Ricardo Teperman17; seja ainda como expressão literária, presente no livro de Ecio Salles. 18
Ler o livro de Roberto Camargos é percorrer os meandros de um “sistema” cultural altamente dinâmico e produtivo, e que, embora tenha seu centro geopolítico nas periferias das grandes cidades, dissipou-se, rapidamente, por todas as regiões.
Notas
1 CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015. p.16.
2 CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 17.
3 CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 18.
4 CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 20.
5 CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 21.
6 CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 27.
7 CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 27.
8 CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015, p.33.
9 CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015. p.51.
10 CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 75.
11 CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 77.
12 CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 77.
13 CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 130.
14 CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015, p. 133.
15 CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 140.
16 MOASSAB, Andréia. Brasil periferia(s): a comunicação insurgente do hip-hop. São Paulo: Educ, 2011.
17 TEPERMAN, Ricardo. Se liga no som. As transformações do rap no Brasil. São Paulo: Claro Enigma, 2015.
18 SALLES, Ecio. Poesia Revoltada. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2007.
Resenhista
Maurício Silva – Doutor em Letras Clássicas e Vernáculas pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do Programa de Mestrado e Doutorado em Educação na Universidade Nove de Julho (UNINOVE – São Paulo).
Referências desta Resenha
CAMARGOS, Roberto. Rap e política. Percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015. Resenha de: SILVA, Maurício. Escrita da História, v.5, n.9, p.287-291, jan./jun. 2018. Acessar publicação original [DR]
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