RANCIÈRE, Jacques. O inconsciente estético. São Paulo: Ed.34, 2009. Resenha de: SOARES, Ednei. Artefilosofia, Ouro Preto, n.14, julho, 2013.
É sabido que Freud recorreu à arte para encontrar nela algo que lhe fornecesse material analítico a fim de expor e discutir suas descobertas.
Ora, a obra de Freud é repleta de referências às obras de arte advindas ora da literatura, ora da pintura e da escultura. Os textos das primeiras décadas do século XX o com provam: “ Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen ” (1907), “ Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância ” (19 10), “ O Moisés de Michelangelo ” (1913), “O Estranho” (1919) e “ Dostoievski e o parricídio ” (1928).
Sabe-se também que existem outras maneiras de reconhecer o recurso psicanalítico às artes.
Desde Lacan, vimos a produção de uma inversão em relação àquela primeira perspectiva freudiana. Ao invés de aplicar a psicanálise à leitura das obras de arte, veremos psicanalistas e estudiosos d o campo aplicar a arte à psicanálise, isto é, a arte enquanto aquela que permite avançar a teoria psicanalítica.
É por meio deste debate que o filósofo Jacques Rancière, em “ O Inconsciente Estético” (2009), trata das relações entre a teoria freudiana e o domínio da estética.
Filósofo, Jacques Rancière é Professor Emérito de Estética e Política na Universidade de Paris VIII, onde lecionou de 1969 a 2000. Apesar de seu lançamento em 2009, o texto de “O Inconsciente Estético” foi extraído das conferências que Jacques Rancière realizou nove anos antes na École de Psychanalyse em Bruxelas durante janeiro de 2000. Entre os campos da E sté tica e da Política, Jacques Rancière ainda não tem toda sua obra publicada em língua portuguesa. Desde a década de 1970 temos “Sobre a Teoria da Ideologia” (1971) e mais adiante, por editoras brasileiras, “A Noite dos Proletários” (1988), “Os Nomes da História” (1994), “Políticas da escrita” (1995), “O desentendimento” (1996), “O Mestre Ignorante” (2004) e “A Partilha do Sensível” (2005), “O espectador emancipado”, “O destino das imagens”, “As distâncias do cinema” (2012).
Debatendo o tema do Inconsciente Estético para além da visada psicanálise da arte e fora do continente analítico, o filósofo vivifica ainda mais a discussão em jogo, pois fala a partir do domínio da estética, sua especialidade: “Não tenho nenhuma competência para falar do ponto de vista da teoria psicanalítica”. (RANCIÈRE, 2009, p.9).
Vemos que o autor parece colocar em tensão esses dois regimes de uso da arte pela psicanálise. Se por um lado, a interpretação das obras “ocupam um lugar estratégico na demonstração da pertinência dos conceito s e das formas de interpretação analíticas” (RANCIÈRE, 2009, p.9), por outro lado, Rancière resguarda a tradição, a autonomia e a potencialidade do pensamento estético nas obras de arte:
“Elas são os testemunhos da existência de certa relação do pensamento com o não-pensamento, de certa presença do pensamento na materialidade sensível, do involuntário no pensamento consciente e do sentido no insignificante”. (RANCIÈRE, 2009, p.10-11).
Isto é, este domínio do pensamento que não pensa não é um território e m que Freud busca apenas companheiros e aliados. Para o esteta, “É um território já ocupado” (RANCIÈRE, 2009, p. 45).
É então, a partir da “ revolução silenciosa denominada estética” (RANCIÈRE, 2009, p.33-34) que o questionamento principal do filósofo se constrói.
Segundo ele mesmo foi no terreno da estética que a teoria freudiana se ancorou, quer dizer, “ nessa configuração já existente do ‘pensamento inconsciente’, nessa idéia da relação do pensamento e do não-pensamento ”. (RANCIÈRE, 2009, p.11) “O Inconsciente Estético” (2009) propõe, portanto, pensar o campo estético como um dos fundamentos de inscrição do pensamento analítico (RANCIÈRE, 2009). Assim, a hipótese de Rancière é de que “o pensamento freudiano do inconsciente só é possível com base nesse regime do pensamento da arte e da idéia do pensamento que lhe é imanente”. (RANCIÈRE, 2009, p.13-14.) Para sustentar tal empreitada, são diversas as referências artísticas utilizadas por Rancière. De “Os Miseráveis” de Victor Hugo, a Balzac com suas “La Maison d u chat qui pelote” e “A pele de onagro”, passando pelo belga Maurice Maeterlinck, até chegar às referências propriamente freudianas: Leonardo, Michelangelo, Jensen, Hoffmann, Ibsen, entre outros.
Para Rancière, a revolução estética não se dá, por exemplo, via a rebeldia britânica de Lord Byron contra a moral civilizada ou denunciando a s desordens da alma.
Trata-se antes de uma nova idéia de artista. Daquele que sabe freqüentar os subsolos, como o geólogo e naturalista francês, Georges Cuvier. De um artista que saiba encontrar a palavra muda através dos diversos usos do detalhe.
Diante disso, Rancière irá aliar a revolução estética ao advento da psicanálise: “O novo poeta, o poeta geólogo ou arqueólogo, num certo sentido, faz o que fará o cientista de A interpretação dos sonhos ”.
(RANCIÈRE, 2009, p. 37). Isto é, “A grande regra freudiana de que não existem ‘ detalhes ’ desprezíveis, de que, ao contrário, são esses detalhes que nos colocam no caminho da verdade, se inscreve na continuidade direta da revolução estética”. (RANCIÈRE, 2009, p.36).
Se nosso autor põe em relação pensamento estético e psicanálise, ele o faz preservando um cuidado histórico e epistemológico. A o estabelecer tal relação, Rancière não se esquece d o contexto médico-cientifico no qual a psicanálise foi criada e nem corre o risco de dissolve r o conceito de inconsciente freudiano. O filósofo não está inclinado em afirmar que o inconsciente freudiano depende da literatura e da arte, cujos segredos ele pretende desvendar (RANCIÈRE, 2009).
Segundo el e, “ Trata-se, antes de mais nada, de assinalar as relações de cumplicidade e de conflito que se estabelecem entre o inconsciente estético e o inconsciente freudiano ” (RANCIÈRE, 2009, p. 43-44).
Mais do que contrapor à autoridade da ciência a dos grandes no mes da cultura – os quais lhe servem de guias na viagem pelo Aqueronte explorada por seu método de tratamento-, Freud o faz porque essa lacuna entre ciência positiva e acervo cultural não está vazia (RANCIÈRE, 2009).
É justamente nesta brecha que o filósofo situa o Inconsciente Estético: Tal espaço é o domínio desse inconsciente estético que redefiniu as coisas da arte como modos específicos de união entre o pensamento que pensa e o pensamento que não pensa. Ele é ocupado pela literatura da viagem pelas profundezas, da explicitação dos signos mudos e da transcrição das palavras surdas (RANCIÈRE, 2009, p. 44).
Conforme nos lembra o autor, em Freud não há o insignificante, e os detalhes prosaicos que o positivismo desprezou e lançou à racionalidade fisiológica são signos que cifram uma história (RANCIÈRE, 2009).
Dito de outro modo: “Não existe episódio, descrição ou frase que não carregue em si a potência da obra”. (RANCIÈRE, 2009, p.37). A literatura de geólogos e arqueólogos como Balzac e Freud mostram que entre pensamento e não pensamento, cifragem e decifragem, tal escrita se conecta à pura dor de existir e à pura reprodução do sem-sentido da vida, “(…) aquela que não fala a ninguém e não diz nada, a não ser as condições impessoais, inconscientes, da própria palavra”. (RANCIÈRE, 2009, p.39).
Freud, o psicanalista, é um hermeneuta, mas é também um médico, um sintomatologista, diz Rancière:
A sintomatologia literária mudará então de estatuto nessa literatura das patologias do pensamento, centrada na histeria, no “nervosismo” ou no peso do passado, nessas novas dramaturgias do segredo velado, em que se revela, através de histórias individuais, o segredo mais profundo da hereditariedade e da raça e, em última instância, do fato bruto e insensato da vida”. (RANCIÈRE, 2009, p.39).
Não somente através da doutrina freudiana, mas também através de Kant, S c helling e Hegel, o filósofo nos apresenta um pensamento daquilo que não pensa. Em “O Inconsciente Estético ”, a arte circunscreve um território de reunião dos contraditórios, de um pensamento presente e fora de si mesmo, idêntico ao não pensamento. Ou seja, há pensamento operando no elemento estranho do não-pensamento, e este não-pensamento que o habita lhe dá uma potência específica (RANCIÈRE, 2009).
As sim, as duas faces da palavra muda manifestam o inconsciente estético: a palavra muda escrita nos corpos que é decifrada e reescrita, e uma “ palavra surda de uma potência sem nome que permanece por trás de toda consciência e de todo significado, e à qual é preciso dar uma voz e um corpo,” (RANCIÈRE, 2009, p.41). Enfim, e m “O Inconsciente Estético”, vemos que a descoberta de Freud abriu uma lacuna entre ciência e arte produzindo uma racionalidade capaz de formalizar este campo de fronteira entre estética e teoria psicanalíticas:
“(…) a abordagem freudiana da arte em nada é motivada pela vontade de desmistificar as sublimidades da poesia e da arte, direcionando-as à economia sexual das pulsões. Não responde ao desejo de exibir o segredinho — bobo ou sujo — por trás do grande mito da criação. Antes, Freud solicita à arte e à poesia que testemunhem positivamente em favor da racionalidade profunda da “fantasia”, que apoiem uma ciência que pretende, de certa forma, repor a poesia e a mitologia no âmago da racionalidade científica” (RANCIÈRE, 2009, p.45).
Ednei Soares-Psicanalista, mestre em Psicologia. Professor do curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras de Ipatinga-MG
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