Poder e ideologia têm sido objeto de interesse da ciência da linguagem há mais de 90 anos, mas é especialmente (embora não exclusivamente) neste século que teorias passam a questionar o modelo de homem universal de modo a incluir a perspectiva racial como fundamentação teórica em seus trabalhos.
Desde então, o diálogo entre os estudos discursivos e uma teoria social que ofereça elementos para a compreensão da articulação entre recursos de poder e recursos linguísticos tem se tornado inadiável para aqueles que queiram viabilizar a crítica e a transformação social no Brasil. Nesse contexto, a questão racial emerge como tópico central para analistas que lidem com as relações sociais em um país na periferia do sistema capitalista.
Uma teoria social como essa é importante na medida em que, para além dos elementos formais a partir dos quais se pode empreender uma análise linguística centrada nos aspectos internos à língua, a natureza do discurso remete-nos, invariavelmente, às questões externas ao sistema linguístico, ou seja, a uma dimensão social da linguagem (VOLÓCHINOV, 2017). Assim, se o valor de um signo é construção social atravessada por ideologias, o discurso se configura como uma prática social mediada por tantas outras que estabelecem relação dialética com as estruturas sociais.
Tal compreensão se sustenta pela assunção do discurso como mais um momento da prática social, sendo necessário pensá-lo ao lado de outras práticas não-semióticas do processo social (FAIRCLOUGH; MELO, 2012). O discurso é mais uma dimensão do processo social que deve ser investigado, não sendo necessariamente central ou independente de outras práticas sociais do mundo material (FAIRCLOUGH, 2003).
Para se compreender a relação dialética entre linguagem e sociedade, é necessário, portanto, um diálogo entre os estudos da Linguística e das Ciências Sociais. Para tanto, indicamos a leitura de Silvio Almeida, uma vez que seu renomado trabalho teórico é primordial para compreensão das questões raciais no Brasil.
Pós-doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, atualmente Almeida é docente na Universidade Presbiteriana Mackenzie e na Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo. Com longa trajetória nos estudos do direito e da filosofia, alguns artigos publicados por ele são: “Republicanismo e questão racial”; “Crise, racismo e neoliberalismo”; “Estado e direito: a construção da raça”.
Embora o foco de sua obra mais recente, Racismo estrutural (2019), não seja a análise de discurso, recomendamos a sua leitura por abordar questões relativas aos sujeitos, à história e ao contexto social da linguagem – elementos que não podem ser negligenciados em uma análise discursiva sobre a realidade brasileira. Com o objetivo principal de apresentar uma teoria social contemporânea crítica e profunda, mantendo uma abordagem didática, Racismo estrutural desafia o leitor a pensar sobre questões de discurso dentro de redes de práticas racistas. Para isso, o autor nos apresenta, ao longo do livro, um panorama dos campos da filosofia, da ciência política, da teoria do direito e da teoria econômica em diálogo com o conceito de raça.
Racismo estrutural é um pocketbook de 264 páginas que compõe a série Feminismos Plurais1, lançada pela Editora Pólen, em 2019, com o selo Sueli Carneiro. O livro traz, na última capa, os pesquisadores Marcelo Paixão (Universidade de Austin, Texas, Estados Unidos) e Luiz Felipe de Alencastro (Universidade Paris Sorbonne e Fundação Getúlio Vargas) para endossar a relevância da obra.
A obra está dividida em cinco capítulos: “Raça e racismo”; “Racismo e ideologia”; “Racismo e política”; “Racismo e direito”; “Racismo e economia”. De modo geral, eles exploram a seguinte questão central: “o racismo é sempre estrutural, ou seja, […] ele é um elemento que integra a organização econômica e política da sociedade. […] é a manifestação normal de uma sociedade, e não é um fenômeno patológico ou que expressa algum tipo de anormalidade” (ALMEIDA, 2019, p.20).
No primeiro capítulo, “Raça e racismo”, Almeida (2019) explica que o conceito de raça, enquanto noção relacional e histórica, remonta ao século XVI, tendo sofrido atualizações desde então. Porém, é no século XVIII, com o projeto iluminista, que ocorre a laicização de uma variedade de racismo antes justificada em crenças teológicas2. No projeto iluminista, o homem passa a ser objeto filosófico-antropológico visto a partir da dicotomia civilizado versus selvagem. No século seguinte, esse mesmo homem se torna objeto de investigação e de discursos pseudocientíficos que associariam, de modo determinista, características biológicas, condições climáticas e/ou ambientais a diferenças morais, psicológicas e intelectuais. Essas teorias raciais de base biológica serviriam, então, de sustentação ideológica para a manutenção da exploração de traço colonial mesmo após a abolição da escravidão. Isso pode ser visto, por exemplo, na primeira grande crise do capitalismo em 1873, cujos desdobramentos se dão no imperialismo e no neocolonialismo em território africano.
Após essa breve contextualização histórica, Almeida descreve as semelhanças e especificidades entre os termos preconceito, discriminação e racismo, reforçando como, ao longo da história, a discriminação se desdobrou em “estratificação social, um fenômeno intergeracional, em que o percurso de vida de todos os membros de um grupo social – o que inclui as chances de ascensão social, de reconhecimento e de sustento material – é afetado” (ALMEIDA, 2019, p.33). Posteriormente, o autor apresenta três abordagens do racismo: individualista, institucional e estrutural. O objetivo é enfatizar a importância de se compreender o racismo para além da questão de desvio, desarranjo ou anormalidade comportamental de um único indivíduo ou grupo, mas sim como um conjuntos de práticas inconscientes, conscientes e até mesmo institucionalizadas, que se articulam sofisticadamente de modo a normalizar “relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares” (ALMEIDA, 2019, p.52).
O segundo capítulo, “Racismo e ideologia”, leitura obrigatória para analistas do discurso, concentra-se em explicar questões como (i) a naturalização do racismo, (ii) a relação entre racismo, ideologia e estrutura social, (iii) os papéis desempenhados pela ciência e pela cultura na manutenção do racismo, (iv) o lugar do branco no processo de racialização e, por fim, (v) as relações entre racismo e meritocracia.
Conforme Almeida (2019), a perpetuação do racismo é possível na medida em que (i) produz sistema de explicação específico para as desigualdades e (ii) constitui subjetividades insensíveis diante da discriminação e da violência racial. Nessa operação ideológica, ciência e cultura ocupam papéis importantes. A primeira, produzindo discursos de autoridade, elevados à categoria de verdade, que se sofisticam ao longo do desenvolvimento do capitalismo e dos avanços tecnológicos de modo, por exemplo, a substituir o racismo científico pelo “relativismo cultural” e pelo “multiculturalismo” que passam a evocar; a segunda, a partir de um modelo de humanidade controlável, no qual a prática de aniquilamento cultural é trocada pelo poder de determinação de valor e significado. A Teoria Social apresentada por Almeida nos permite perceber que a possibilidade de estabelecer valor e significado é sempre realizada numa operação relacional que simultaneamente constrói brancos e negros de modos distintos na esfera social, sobretudo no que concerne à questão do direito e dos regimes de exploração da força de trabalho. Por esse motivo, é imperioso questionar a meritocracia enquanto perspectiva que alega igualdade de oportunidades entre todos os sujeitos sociais em uma sociedade fraturada pelo capitalismo.
No terceiro capítulo, “Racismo e política”, o autor (i) define o conceito de Estado e sua relação com o capitalismo, (ii) elucidando a articulação de uma narrativa nacionalista nesse contexto. Além disso, aborda neste capítulo questões como (iii) representatividade, (iv) biopolítica e (v) necropolítica.
Em continuidade ao capítulo anterior, que se encerra tratando da meritocracia, Almeida inicia o capítulo estabelecendo as bases de sua Teoria Social que inevitavelmente passa pela discussão sobre uma teoria do Estado burguês. Aqui, Almeida aprofunda sua crítica a uma perspectiva liberal que, fundada na noção de indivíduo livre (especialmente para estabelecer contratos) na ordem do capitalismo, restringe-se a uma compreensão individualista de racismo que enxerga todo o conjunto articulado de práticas de discriminação racial apenas sob as lentes de um desvio ético pessoal frente à igualdade (formal) estabelecida em lei. Sobre as relações entre racismo, Estado e capitalismo, Almeida se ampara na concepção proposta por Mascaro (2013, p.19), que afirma que “a reprodução do capitalismo se estrutura por meio de formas sociais necessárias e específicas, que constituem o núcleo de sua própria sociabilidade”, sendo o racismo uma dessas formas.
Para Almeida (2019), não é possível compreender o racismo sem pensar seu funcionamento a partir das estruturas estatais, pois é por meio do Estado que se opera com a classificação e divisão de pessoas. A ideologia nacionalista, por sua vez, apresenta-se como funcional à tentativa de reconstruir uma identidade comum numa tentativa de apagar os conflitos entre os diferentes grupos/classes e as contradições do sistema capitalista, o qual, ao longo do tempo, sofistica suas estratégias e técnicas de reprodução. Como exemplo disso, o autor aponta os limites da representatividade em instituições majoritariamente compostas por pessoas brancas; o exercício disciplinar e regulamentador da vida ou de sua suspensão; e a reprodução de um sistema burocrático mortífero, que se diz exceção, mas que estabelece como política o aniquilamento da população negra brasileira.
O quarto capítulo, “Racismo e direito”, está subdividido em seis seções, que tratam (i) do direito e da justiça, (ii) do direito como norma, (iii) do direito como poder, (iv) do direito como relação social, (v) da raça e da legalidade, (vi) do direito e antirracismo.
Ao longo do conjunto dessas seções, o autor explica como diferentes concepções sobre a noção de direito estão não somente relacionadas a momentos históricos distintos, como também a projetos de justiça social variados. Parte dessa discussão tece críticas a paradigmas individualistas, que ignoram os efeitos das instituições estatais na constituição do racismo, ou colocam sob suspeição concepções amparadas em uma dimensão meramente ética, ou seja, que ainda se mantêm focadas no indivíduo ao ignorarem o funcionamento estrutural complexo do racismo em diferentes dimensões (ideológica, cultural, política, econômica, institucional, material). Em contraposição a essas posturas, o autor propõe pensar o direito a partir das dinâmicas de poder e das relações sociais constituídas no interior do capitalismo. Sobre isso, é preciso destacar a maestria com que o autor recupera na Teoria Social as conexões entre o direito, o surgimento das sociedades capitalistas e a constituição do “racismo como uma relação estruturada pela legalidade” (ALMEIDA, 2019, p.136) que reproduz a condição colonial no mundo contemporâneo. Esta seção, em especial, traz contribuições teóricas fundamentais para o analista do discurso e sua reflexão teórico-político-ética necessária ao fazer científico.
O quinto capítulo, porém, não menos importante, dedica-se a tratar da relação “Racismo e economia”, questão fundamental para se compreender a perspectiva estrutural construída na Teoria Social apresentada por Almeida. O empenho do autor em destrinchar a problemática pode ser notado nas 14 subseções que desenvolvem o assunto. Essas seções retomam todo o desenvolvimento de ideias preliminares apresentadas no primeiro capítulo e também ao longo de todo o livro, que já apontavam para a questão central da obra: Como o racismo, enquanto traço contínuo da exploração colonial, projeta-se no Brasil contemporâneo estruturando o (e sendo estruturado pelo) conjunto de instituições e relações no quadro do capitalismo periférico para a reprodução desse último sistema?
Em suma, o livro de Almeida supera quaisquer limitações que o formato de pocketbook possa impor à compreensão da discussão proposta. Quanto à sua contribuição para os estudos de análise do discurso, recomendamos a leitura e compreensão do livro como um todo. A abordagem de Almeida sobre o racismo estrutural se revela potente para estudos discursivos que considerem a perspectiva epistemológica dos sujeitos diretamente afetados por esse fenômeno social, que tem a linguagem como uma de suas ferramentas de sustentação.
Notas
1 Outras importantes publicações da coleção Feminismos Plurais tratam do racismo recreativo, da apropriação cultural, do encarceramento em massa, da intolerância religiosa, da interseccionalidade e do lugar de fala.
2 Conforme Munanga (2004), outras teorias que justificariam o racismo têm face mítica conhecida na história de Noé e seus três filhos (ancestrais das raças branca, amarela e negra) e utilizada pelos calvinistas para justificar e legitimar o racismo antinegro.
Referências
ALMEIDA, S. L. Republicanismo e questão racial. In: SCHWARCZ, L. M.; STARLING, H. M. (org.). Dicionário da república: 51 textos críticos. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
ALMEIDA, S. L.; VELLOZO, J. C. O. Crise, racismo e neoliberalismo. In: SOUZA, E. A.; OLIVEIRA e SILVA, M. L. (org.). Trabalho, questão social e serviço social: a autofagia do capital. 1. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2019.
ALMEIDA, S. L. Estado e direito: a construção da raça. In: SILVA, M. L.; FARIAS, M.; OCARIZ, M. C.; STIEL NETO, A. (org.). Estado e direito: a construção da raça. São Paulo: Escuta, 2018, v. 1, p.81-96.
FAIRCLOUGH, N. Analysing Discourse: Textual Analysis for Social Research. London: Routledge, 2003.
FAIRCLOUGH, N.; MELO, I. Análise Crítica do Discurso como método em pesquisa social científica. Linha D’Água, v. 25, n. 2, p.307-329, 10 dez. 2012. https://www.revistas.usp.br/linhadagua/article/view/47728.Acesso em 19/06/2021.
» https://www.revistas.usp.br/linhadagua/article/view/47728
MASCARO, A. L. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013, p.19-21.
MUNANGA, K. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. In: Programa de educação sobre o negro na sociedade brasileira [S.l: s.n.], 2004.
VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 1. ed. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017 [1929].
Resenhista
Juliana Harumi Chinatti Yamanaka – Universidade de Brasília – UnB/DF, Departamento de Linguística, Português e Línguas Clássicas, Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Linguística, Brasília, Distrito Federal, Brasil; http://orcid.org/0000-0001-5783-5939; julianalapsis@gmail.com
Referências desta Resenha
ALMEIDA, S. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019. Resenha de: YAMANAKA, Juliana Harumi Chinatti. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso. São Paulo, v.16, n.3, july./sept. 2021. Acessar publicação original [DR]
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