Racismo à Brasileira: uma nova perspectiva sociológica | Edward Telles

Edward Telles nasceu nos Estados Unidos, onde atualmente é professor de Sociologia na Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Viveu no Brasil alguns anos, lecionando como professor-visitante na Unicamp e, posteriormente (1997-2000), trabalhando como Assistente do Programa de Direitos Humanos da Fundação Ford, no Rio de Janeiro. Após publicar diversos artigos em periódicos nacionais e internacionais acerca das relações raciais no Brasil, publica o livro Racismo à Brasileira: uma nova perspectiva sociológica.

A obra está dividida em dez capítulos (Da supremacia branca à democracia racial; Da democracia racial à ação afirmativa; Classificação racial; Casamentos inter-raciais; Segregação residencial; A persistência da desigualdade racial; Discriminação racial; Formulando políticas adequadas; Repensando as relações no Brasil). Seu objetivo é reexaminar os argumentos apresentados na história dos estudos das relações raciais no Brasil; elucidar a lógica interna de funcionamento do sistema racial brasileiro e fazer uma análise comparativa do modelo racial daqui com o dos Estados Unidos (e, em menor escala, com o da África do Sul), por intermédio, sobretudo, do método quantitativo. O livro é fartamente amparado por tabelas e dados estatísticos.

Telles divide a história dos estudos das relações raciais no Brasil em duas gerações. A primeira teria se notabilizado por sustentar a crença da democracia racial (a saber: relações raciais harmônicas ou pouco conflituosas) e pela apologia da mestiçagem; o Brasil seria um país que incluía os negros. Já a segunda geração teria colocado em xeque a crença da democracia racial e ignorado o fenômeno da mestiçagem, argumentando que o Brasil se caracterizava pela exclusão racial. Para a primeira geração, haveria pouco ou nenhum racismo no Brasil; para a segunda o racismo seria generalizado. Dois dos principais intelectuais da primeira geração foram Gilberto Freyre e Donald Pierson; da segunda, sobressaíram intelectuais como Florestan Fernandes e, tempo depois, Carlos Hasenbalg.

Telles avalia que a desigualdade racial no Brasil resulta do cruzamento de vários fatores: as “desigualdades regionais, de classe e históricas”, mas também é “produto direto da ideologia e cultura do racismo” (p. 259). Ele observa a existência de barreiras “invisíveis” que impedem a entrada dos negros na classe média e demonstra que o racismo é particularmente intenso para os membros mais escuros da população negra. Segundo Telles, a segregação constitui a base explicativa do sistema racial norte-americano, ao passo que a miscigenação (ou mestiçagem) é o ponto nodal do sistema brasileiro. Mas a mistura racial não teria anulado a exclusão dos negros na sociedade.

Assim, a questão central do autor é procurar entender como o sistema racial brasileiro produz tanto inclusão como exclusão. A resposta residiria nas diferenças que existem entre as dimensões horizontais e verticais das relações raciais. Telles constata que as fronteiras raciais entre negros e brancos nas relações horizontais (aquelas que se estabelecem entre pessoas da mesma classe social no plano da sociabilidade, como o casamento inter-racial e a segregação residencial) são muito mais facilmente ultrapassadas no Brasil do que nos EUA. Em termos comparativos, a miscigenação aqui “é real e indica relativa e ampla sociabilidade inter-racial” (p. 158), fazendo parte da vida brasileira e ocorrendo muito mais do que nos EUA, onde “os mundos dos negros e brancos são claramente separados” (p. 311). Mas a mistura racial e a fluidez das relações raciais não significam uma vantagem para a maior parte dos negros brasileiros. Como escreve Telles, “o racismo e a desigualdade racial persistem na exclusão de pessoas negras e as impede de gozar as oportunidades surgidas como o desenvolvimento econômico brasileiro e a restituição dos direitos de cidadania. Esse é o paradoxo da miscigenação brasileira” (p. 312).

Por outro lado, o autor demonstra que as fronteiras raciais entre negros e brancos nas relações verticais (aquelas que se estabelecem entre diferentes classes sociais e implicam relações de poder socioeconômico, como educação, emprego, renda e desenvolvimento humano) são impostas com mais rigor no Brasil do que nos EUA. A desigualdade racial aqui é maior do que lá, porque o “Brasil tem uma estrutura sócio-econômica mais desigual e os negros brasileiros têm menos chance de chegar no seu ponto mais alto” (p. 216). Essa, aliás, é uma das principais conclusões da obra: somente distinguindo as dimensões horizontais e verticais das relações raciais é que será possível entender mais profundamente o sistema racial brasileiro e, ao mesmo tempo, fazer comparações mais adequadas entre o Brasil e os EUA.

Para Telles, a crença na democracia racial acabou na década de 1990, quando diversos setores da sociedade brasileira passaram a reconhecer o racismo e, ao mesmo tempo, surgiram pressões para que o Estado garantisse a efetiva cidadania para a população negra. É nesse momento, também, que o estudo das relações raciais deixou de ser marginal e passou a ser um dos campos de maior interesse acadêmico. Um número crescente de jovens sociólogos e antropólogos brasileiros, “inclusive uma nova geração de acadêmicos negros, desenvolveria suas áreas de pesquisa em torno das questões raciais” (p. 77).

Um fato importante para essa mudança no pensamento racial teria sido a participação brasileira na Terceira Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Outras Formas de Intolerância, que se realizou em Durban (África do Sul), em 2001. Após o conclave, o governo brasileiro, pela primeira vez, levou a cabo políticas públicas em benefício – e não em prejuízo – da população negra, o que, segundo Telles, representa um marco na história do país, pois reflete o “reconhecimento do governo da existência de racismo no Brasil e o fim do conceito da democracia racial” (p. 75). Foram implementados programas pilotos de ações afirmativas em alguns ministérios e órgãos públicos.

Além de traçar um diagnóstico do racismo no Brasil, o autor apresenta a “receita” de sua solução. Ele argumenta que, para resolver o problema da desigualdade racial, fazem-se necessárias, de maneira combinada, políticas públicas universalistas e políticas públicas específicas, as chamadas ações afirmativas. Caso os programas governamentais tenham apenas um cunho social, a tendência é reproduzir (ou aumentar) a taxa de desigualdade entre negros e brancos. A partir do momento em que foram criados os programas de ações afirmativas nos EUA (na década de 1960), houve uma diminuição da desigualdade racial, ao passo que aqui, no mesmo período, houve um aumento. Por isso, Telles faz apologia da adoção da forma mais extremada de ações afirmativas, as cotas para negros, tanto na universidade como no mercado de trabalho. Em alguns momentos, o tom da apologia tem um viés militante.

Cumpre destacar o papel que o autor atribui ao movimento negro brasileiro nos últimos vintes anos. Apesar de não ser um movimento de massa, teria sido o principal responsável pelo desmascaramento da crença de democracia racial. Nas palavras de Telles, o movimento negro “modificou a opinião pública no Brasil. Atualmente, a sociedade brasileira reconhece amplamente a existência do racismo e o governo busca formas para tratar a questão” (p. 98). Mais adiante ele reitera: “Sem os ativistas e as exigências de um movimento negro relativamente pequeno, o governo brasileiro não teria feito o menor esforço para combater o racismo, pois não haveria ninguém para defender com entusiasmo os interesses dos negros” (p. 296). É quiçá a primeira vez que uma pesquisa de porte acerca das relações raciais no país imputa tanta importância ao movimento negro brasileiro.

A obra possui alguns erros factuais. Apenas dois exemplos são ilustrativos. Telles afirma que a Frente Negra Brasileira (FNB) “tornou-se um partido político em 1930” (p. 54). A FNB não se tornou partido político em 1930, mas só em 1936. O autor diz que o primeiro curso para ajudar os negros a “serem aprovados no vestibular” começou no Rio de Janeiro, em 1994, por iniciativa de Frei David (p. 80). Na verdade, o primeiro curso para promover o ingresso de negros na universidade foi o da Cooperativa Esteve Biko, de Salvador, em 1992.

Um outro problema é o título do livro, que não é original. O historiador Martiniano J. Silva já havia lançado o livro Racismo à Brasileira, em 1958.2 Como foi publicado por uma editora independente e não teve repercussão no meio acadêmico, é provável que Telles o desconhecesse. Um indício dessa suposição é que o livro de Martiniano Silva nem sequer é listado nas referências bibliográficas do livro de Telles.

De toda sorte, a obra vem a lume num momento oportuno. Que o Brasil é um país racista não é novidade; porém, constatar que o Estado e os diversos organismos da sociedade civil (como a imprensa e a academia) estão cada vez mais sensibilizados em discutir as soluções concretas para a superação dessa mal, é uma grande novidade. A questão racial está colocada na ordem do dia; nunca se debateu tanto o problema do racismo na sociedade brasileira como agora. E o livro de Telles, Racismo à Brasileira, veio para enriquecer esse debate.

Notas

2. Em sua 3a. edição, o livro foi publicado pela editora Anita Garibaldi, em 1995


Resenhista

Petrônio Domingues – Professor de História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Doutor em História/USP. E-mail: petronio@usp.br


Referências desta Resenha

TELLES, Edward. Racismo à Brasileira: uma nova perspectiva sociológica. Trad. Ana Arruda Callado, Nadjeda Rodrigues Marques, Camila Olsen. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fundação Ford, 2003. Resenha de: DOMINGUES, Petrônio. Diálogos. Maringá, v.9, n.3, 211-214, 2005. Acessar publicação original [DR]

 

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