Virá o tempo, em um futuro longínquo, em que o mar Oceano quebrará suas correntes; e uma vasta terra será revelada aos homens…” Estas palavras de Sêneca escritas no século I da era cristã são essenciais para a compreensão de um momento histórico único, que representam as grandes descobertas geográficas dos séculos XV e XVI. No novo livro do historiador Serge Gruzinski este tema é revisitado de forma diferente e também inusitada, servindo de pano de fundo para a construção da obra. O objeto central da narrativa não são as novas descobertas e sim o cruzamento de duas fontes que nos levam a visitar ao mesmo tempo a América e o coração do Império Otomano.
O ano de 1453 marcou a derrocada e o último suspiro do Império Bizantino, já em estado de alerta desde o século VII. O advento do Islamismo é considerado o principal elemento de transformações no mundo medieval. Após a conquista da Anatólia e dos Balcãs o poder otomano, baseado na religião islâmica, consolida-se como a principal força política do oriente, com centro em Istambul. Por outro lado temos o surgimento inesperado de outros universos, localizados desta vez junto ao Atlântico, tendo inicialmente como centro a “Nova Espanha” e de modo singular a Cidade do México local escolhido por um dos cronistas para viver.
Heinrich Martin, autor de origem alemã, mas acima de tudo europeu, escreve em 1606 “Repertório dos Tempos”, uma das principais fontes utilizadas por Gruzinski em seu livro. Esta publicação tinha como foco principal de análise o Império Otomano e as razões de seu sucesso e grandeza. Em Istambul, por volta de 1580, localizamos a outra fonte analisada, escrita por autor desconhecido, que será chamado de cronista anônimo. O título original da obra é designado por Tarih-i Hind-i garbi ou História da Índia Ocidental. Neste caso o foco é a América, o Império Inca e, de modo especial, a Cidade do México.
De um lado temos o Novo Mundo visto por um muçulmano que reside em Istambul e por outro o Velho Mundo, advindo do esplendor da expansão islâmica, focalizado na narrativa de um europeu cristão na Cidade do México. “Enquanto alguns imaginam a cidade de Montezuma, desde as margens multicoloridas do Bósforo, outros especulam sobre a ruína e a grandeza de Constantinopla à sombra dos palácios e dos claustros da Cidade do México.” (GRUZINSKI, 2012, p. 34) Vale a pena destacar que estes esforços refletem o desejo de saber, a necessidade do conhecimento do outro, a ampliação do mundo que tem espaço no limiar da Idade Média.
Um aspecto importante, que não se pode esquecer, é a presença paulatina do imperialismo europeu. O mundo moderno é, sem dúvida, resultado da expansão europeia. Estes se sentiam responsáveis pelo destino da humanidade, tendo que obrigatoriamente e por missão intervir para tornar o mundo mais adequado aos “desígnios de Deus”. Isso não diminui a intensidade da nova dinâmica planetária, a importância a nível global, do tomar consciência da diversidade dos povos que habitam a terra.
O aprimoramento de uma nova representação do mundo não deixa de perpassar pelo encontro com a Geografia de Ptolomeu. A aurora de novos tempos encontrava-se em uma encruzilhada, advinda de algumas verdades sobre o universo que ainda não tinham sido banidas, vejamos aí a forte presença da Inquisição, e a própria realidade imposta pela existência de outras terras e povos. Outra questão destacada pelo autor refere-se à interpretação e conhecimento pormenorizado da obra de Ptolomeu. O Ptolomeu da Cidade do México não é absolutamente o de Istambul. Existindo também a influência do primeiro atlas, ou seja, o Theatrum Orbis de Abraham Ortelius. Mesmo que este não seja claramente citado por nenhum dos cronistas em análise.
O Anônimo de Istambul, conforme Serge Gruzinski, provavelmente teve mais dificuldade para elaborar sua nova visão de universo. Como integrar essa outra parte do mundo no seio do planeta islâmico? Os muçulmanos não haviam participado da conquista da América e provavelmente neste momento ha conheciam muito pouco. Suas preocupações gravitavam ao redor de seu próprio mundo. Os conhecimentos que tinham sobre os ameríndios provinham de traduções oriundas de obras advindas das cidades italianas. Apesar disso a História da Índia Ocidental reflete uma boa diversidade de fontes, mesmo que estas provavelmente não fossem de “primeira mão”. De certo modo, e obviamente sob a influência das obras consultadas, o texto do Anônimo de Istambul acaba por reproduzir a visão europeia da conquista da América.
A perspectiva religiosa também se faz presente no entrecruzamento destas fontes. Para o autor turco o Novo Mundo (que ele chama de Índia), conquistado e colonizado pelos francos infiéis deveria ser retomado e convertido à religião do Profeta Maomé, consolidando ainda mais o domínio otomano. Como islamizar a América? Por outro lado Martin no Repertório dos Tempos, também preocupava-se com o fim da dominação otomana e com a realização de profecias que previam a iminência da queda dos otomanos. Maomé teria mesmo predito que seu império sobre a terra duraria mil anos. O gosto pela astrologia que à época era inseparável da astronomia também corrobora com os milenarismos e o que o autor conceitua por história – catástrofe.
Um aspecto bastante interessante descrito pelo autor refere-se ao pouquíssimo contato que existia entre a América e o Império Otomano. “Além dos escravos africanos mal convertidos ao cristianismo ou dos mouriscos desembarcados clandestinamente, não existe nenhum muçulmano, no século XVI, no continente americano.” (GRUZINSKI, 2012, p. 123) O Novo Mundo ainda não havia sido de modo algum islamizado. Por outro lado a Europa ocidental há séculos já convivia com a presença dos muçulmanos em seu território. Somente em 1492, ano singular devido à conquista da América, o que temos é a anexação do Reino de Granada, último bastião da presença islâmica na Espanha recém – unificada.
A experiência política espanhola dos séculos XV e XVI é uma das mais extraordinárias da História da Europa moderna. Os reis espanhóis constituíram um Estado dinástico que ultrapassou suas fronteiras e abarcou Portugal, parte da Itália, Holanda e uma enorme área do Novo Mundo. Em 1492, visando impor a uniformidade religiosa, a coroa expulsou da Espanha os judeus que se negavam a aceitar o batismo, cerca de 150 mil judeus se retiraram do país. Os muçulmanos foram incorporados à ideologia cristã, pois a Península Ibérica quase toda estava repleta de muçulmanos desde o século VIII favorecendo inicialmente o contato pacífico com os cristãos. Etapa importante dessa história de coexistência: a década em que se estabelece a Inquisição e a conquista do último reduto muçulmano da Península Ibérica. Na historiografia do período, o reinado de Isabel e Fernando foi projetado como um conjunto de missões realizadas conforme a doutrina e a moral católica. Êxitos espetaculares como a conquista de Granada e a descoberta da América tiveram grande ressonância, lançando a nova entidade política que surgia sob o domínio dos Reis Católicos no cenário internacional com grande prestígio.
O casamento dinástico constituiu outro aspecto crucial da política externa de Fernando e Isabel (reis da Espanha). Eles fortaleceram seus laços com os reis Habsburgo da Áustria casando uma de suas filhas, Joana com Felipe (o Justo), filho de Maximiliano da Áustria. Certamente, a Península Ibérica foi uma região da Europa medieval em que os cristãos mantiveram um contato direto com outras religiões durante séculos e este contato não foi igualmente pacífico durante todo o período, havendo momentos de crises e também de convivência e intercâmbios singulares. O contexto sócio- político espanhol é muito importante na análise, pois este é revivido na América, o que Gruzinski chama de “a lembrança de Al- Andalus”. A presença hispano- muçulmana é relevante no século XVI e essa herança viva se faz presente no Novo Mundo.
O fim da expansão islâmica no Mediterrâneo foi marcada pela Batalha de Lepanto (1571) em que uma coligação reunida pelo Papa Pio V, chamada de “Liga Santa”, garantiu aos católicos uma vitória esmagadora sobre os turcos na Grécia. A forte presença espanhola nesta façanha tornou-se um épico, sendo rememorada através do teatro, crônicas e códices. Ela se faz representar na América espanhola, sendo bastante conhecida pelos habitantes do Novo Mundo. Eis aí um dos primeiros contatos a nível cultural entre ameríndios e otomanos. Por mais estranho que pareça o antagonismo mouro/ cristão é implantado em solo americano, e fortalecido também na mente dos nativos daqui.
Os novos olhares sobre o universo, presentes quase que contemporaneamente em dois autores que abordam em seus textos mundos aparentemente tão distantes e distintos como o Império Otomano e a Nova Espanha refletem o desejo de vivenciar o que está acontecendo do outro lado do planeta. Vemos, portanto que esta busca não é recente e que vencer a barreira do tempo e do espaço demonstra que “seja qual for o continente que os homens vivam, eles compartilham o mesmo firmamento.”
Resenhista
Renata Cristina de Sousa Nascimento – Doutora em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) Participante do NEMED (Núcleo de Estudos Mediterrânicos- UFPR) Professora da Universidade Federal de Goiás (Campus de Jataí), da Universidade Estadual de Goiás (UEG) e da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (Mestrado em História). E-mail- renatacristinanasc@gmail.com
Referências desta Resenha
GRUZINSKI, Serge. Que Horas São …Lá , No Outro Lado? América e Islã no Limiar da Época Moderna. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. Resenha de: NASCIMENTO, Renata Cristina de Sousa. Um novo universo: a necessidade do conhecimento do outro em representações sobre a América e o Islã. Revista Mosaico. Goiânia, v. 6, n. 2, p. 235-237, jul./dez. 2013. Acessar publicação original [DR]
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