Diante do atual cenário nacional, marcado pelo aumento dos casos de violência contra gays, lésbicas, travestis e transexuais (no momento em que escrevemos o jovem Diego Vieira Machado, estudante da UFRJ, foi encontrado morto no campus daquela universidade, vítima de homofobia) e pelo recrudescimento de políticas importantes para a comunidade LGBT, por exemplo, a aprovação do PLC 122, projeto de lei que criminaliza a homofobia (relegado ao esquecimento no governo de Michel Temer), é imperativo refletirmos sobre as “sexualidades disparatadas” (o termo é tomado de empréstimo de Michel Foucault1 ) e sua visibilidade na disciplina histórica.
O presente dossiê parte desse encontro urgente e esperado entre Clio e as “sexualidades disparatadas”. Se durante décadas, a historiografia invisibilizou essas experiências que, ao longo da história assumiram diferentes denominações e significados, como veremos nos textos a seguir, nos últimos anos, os olhares de Clio voltaram-se para os clamores dos “disparatados”, revelando que as demandas do presente orientam os usos do passado e contribuem para a reescrita da história.2
Assim, o dossiê tem início com o artigo Lesbianismos, cartografia de uma interrogação, no qual Tânia Navarro Swain problematiza os sentidos da “identidade lesbiana”. De acordo a historiadora, num mundo em que o binário heterossexual é a norma, o “lesbianismo pode ser pensado como a recusa do contrato sexual instituído pela heteronormatividade”. A opção teórica da autora pelo termo lesbianismo – os movimentos sociais e as pesquisas acadêmicas recentes têm utilizado a categoria lesbianidade como crítica ao caráter patologizador associado à expressão lesbianismo – é explicada como recusa às “injunções masculinas sobre as mulheres e às relações que mantém entre si”. De acordo com Swain utilizar o termo modificando-lhe a conotação usual, permite sua subversão.
O segundo texto, Gênero e sexualidades desbaratadas em dois concílios alto-medievais: um primeiro ensaio de leitura histórica comparada (Braga II e Toleto IV), de Marcelo Pereira Lima busca compreender aspectos do debate sobre as normas acerca da sexualidade no período medieval. Partindo de uma discussão teórica e propondo uma História Institucional do Gênero, o autor lança olhares e levanta questões sobre dois concílios da Igreja Católica e as temáticas das relações conjugais e sexualidades de clérigos nos referidos concílios.
Em seguida, Mário Martins Viana Júnior mostra que, apesar dos estudos sobre as sexualidades não-hegemônicas terem como recorte temporal privilegiado o século XX, é possível escrever uma história de tais experiências nos séculos anteriores. Em Masculinidades plurais na América Portuguesa (Séculos XVI, XVII e XVIII), o historiador analisa a lei (Ordenações régias) como “plataforma delineadora dos gêneros”, explicitando as tensões entre o “masculino ideal”, o “ideal de masculinidade” e as experiências dos sujeitos. Por meio de Diogo Botelha, Governador Geral das “partes do Brasil”, Viana Júnior problematiza as relações que o governador mantinha em seus “aposentos oficiais” e que não estiveram restritas as trocas de missivas oficiais, apertos de mãos ou conselhos deliberativos.
Em Artes de Acontecer: viados e travestis na Cidade do Rio de Janeiro, do Século XIX a 1980, Rita de Cassia Colaço Rodrigues estabelece um diálogo entre o “método indiciário” com a perspectiva da “história vista de baixo” para analisar a presença de sodomitas, bagaxas, travestis, transformistas e homossexuais masculinos na cidade do Rio de Janeiro, do século XIX à década de 1980. Os espaços de sociabilidade e sexo, conquistados pelos sujeitos subalternizados, configuraram-se práticas de resistência e redes de solidariedade, “capazes de melhor responder à desigual correlação de forças presente na sociedade ampliada, refratária à sua forma de desejo, estilo pessoal e de gênero”, define a autora.
A historiadora Renata Rodrigues Brandão em seu artigo Revolução sexual e sexualidades “ex-cêntricas”: análises das práticas discursivas sobre “identidades sexuais” em revistas brasileiras (1969-1979) aborda a construção das “identidades sexuais” nas revistas Ele Ela, Nova, Playboy e Homem: a revista do playboy. Por meio dessas publicações a autora discute as noções de feminino e masculino em plena ditadura civil-militar brasileira.
O mesmo contexto histórico é analisado por Fábio Henrique Lopes, porém, para refletir sobre experiências que forjaram e possibilitaram a constituição da travestilidade e das subjetividades travestis no período. Em Travestilidades e ditadura civil-militar brasileira: apontamentos de uma pesquisa, Lopes cruza categorias como travestilidade, violências, repressão e censura deixando explícitas dimensões das experiências trans (travesti e transexual) ainda presentes na contemporaneidade.
As experiências trans são temas ainda de análise dos artigos que finalizam o dossiê. Em “O fenômeno Roberta Close” e as “sexualidades periféricas” no centro da cena público-midiática. Fortaleza, Ceará (1980), Elias Ferreira Veras, coloca em debate as discussões sobre homossexualidade, travestilidade e transexualidade surgidas na imprensa da capital cearense em decorrência do “fenômeno Roberta Close”. Mais do que revelar o corpo nu da jovem transexual, o historiador aponta que a repercussão midiática em torno da modelo também contribuiu para colocar em cena as “sexualidades periféricas”.
O texto “Trans-historizar” o espaço público dentro e fora da academia: desafios para a historiografia e para o feminismo?, de autoria de Ana Maria Veiga e Morgani Guzzo mostra que, apesar da permanência social de visões estereotipadas que reforçam preconceitos e violências, os homossexuais e as pessoas trans ocupam na atualidade outros espaços, como às universidades, os cargos públicos e as representações de conselhos e associações. As historiadoras analisam a conquista desses novos lugares na primeira década do século XXI como acontecimento que possibilita o empoderamento dos sujeitos em “situação de margem”.
O historiador Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão finaliza o dossiê com o texto Quando Clio encontra Hermafrodito e Tirésias, mas Narciso está no caminho: reflexões a partir de história oral em ministérios de “cura” de travestis. No artigo, em que expõem as tensões entre “pesquisadorxnativx”, Maranhão conjuga etnografia e história oral com pessoas transgêneras, ex-transgêneras e em “outras situações não-cisgêneras” para refletir sobre a apropriação que esses sujeitos fazem dos discursos religiosos, principalmente, das igrejas inclusivas e de missões de “cura e libertação”.
Os textos reunidos no presente dossiê são indícios de uma produção historiográfica recente e ousada, marcada pelo uso criativo de fontes tradicionais (mais do que a ausência de fontes, os silêncios da história acerca das “sexualidades disparatadas” pode ser explicado como um silêncio político3 ); pelo privilégio do século XX como recorte temporal (em parte, por este testemunhar a politização da patologização das “identidades sexuais”); pelo registro da pluralização das experiências disparatadas (o termo homossexualidade e a sigla LGBT representam um recorte histórico recente nesse cenário sexual e político).
Desse modo, os artigos são convites a pensar outras histórias, que a despeito das transformações epistemológicas empreendidas pelos dois principais paradigmas históricos do século XX – Annales e Marxismo – permanecem não escritas; a romper com o “regime heterossexual” – para evocar Monique Wittig4 – que ainda marca a disciplina histórica no século XXI; a escrever histórias que também sejam ontologias críticas do presente, do que somos e do que podemos nos tornar a ser.
Finalizamos esta apresentação, agradecendo às professoras Joana Maria Pedro e Cristina Scheibe Wolff, da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, por acreditarem nesse projeto; aos professores Alexandre Busko Valim e Márcio Roberto Voigt editores da Esboços, assim como aos demais integrantes da Revista, pela acolhida e apoio; à Kelly Cristine Cordeiro, pela arte da capa; e, finalmente, aos autores e às autoras, por compartilharem conosco seus olhares sobre Clio e as “sexualidades disparatadas” possibilitando-nos outras histórias.
Que esse trabalho coletivo desperte leituras prazerosas e inspiradoras!
Natal, Assú/RN, Julho de 2016.
Notas
1 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro, Graal, 2009.
2 VERAS, Elias Ferreira; PEDRO, Joana Maria. Os silêncios de Clio: escrita da história e (in)visibilidade das homossexualidades no Brasil. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 6, n.13, p. 90 ‐ 109, set./dez. 2014.
3 NAVARRO-SWAIN, Tânia. História, construção e limites da memória social. In: Margareth RAGO, Margareth; FUNARI, Pedro Paulo. (Org.). Subjetividades antigas e modernas. São Paulo, Annablume, v. p. 26-45, 2008.
4 WITTIG, Monique, El Pensamiento heterosexual y otros ensayos, Madrid, Egales, 2006.
Durval Muniz de Albuquerque Júnior – Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Organizador. Doutor em História pela Universidade de Campinas (UNICAMP) e atualmente professor permanente da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN/Natal) e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Tem experiência na área de História, com ênfase em Teoria e Filosofia da História, atuando principalmente nos seguintes temas: gênero, nordeste, masculinidade, identidade, cultura, biografia histórica e produção de subjetividade. E-mail: durvalaljr@gmail.com
Elias Ferreira Veras – Universidade Estadual do Rio Grande do Norte – UERN. Organizador, Doutor em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e professor da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN/Assú); Pesquisador dos seguintes grupos de estudos-pesquisa: Laboratório de Estudos de Gênero e História (LEGH- -UFSC), Grupo de Pesquisas e Estudos em História e Gênero (GPEHG-UFC) e do Grupo de Estudos Independentes Michel Foucault (GEIMF). E-mail: eliashistorias@yahoo.com.br
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