Quadrinhos & cultura visual: modos de ver e ler histórias | ArtCultura | 2019
Este dossiê pretende apresentar novos olhares sobre as pesquisas em torno de cultura visual e HQs. Longe de pensá-las como meros reflexos da sociedade, os artigos aqui reunidos elaboram análises a partir de aspectos concernentes à linguagem das HQs (quadros, balões etc.), bem como examinam os seus impactos na construção do olhar ao longo do tempo. Sendo este um campo passível de exploração por pesquisadores das humanidades, espera-se que essas colaborações contribuam para estabelecer as HQs como um modo de expressão fundamental para o estudo da cultural visual dos séculos XIX e XX.
O trabalho de abertura de Arthur Valle (UFRRJ) procura delinear conexões entre duas modalidades de História: a História em Quadrinhos e a História da Arte. Com base nas HQs centradas no universo da produção artística, o autor analisa procedimentos e caminhos adotados por quadrinistas que, por vezes, assemelham-se àqueles percorridos por historiadores da arte. Tal relação é enfrentada sem medos por Valle, que sugere a seguinte provocação: em que medida a abordagem de historiadores da arte como John Berger e Aby Warburg não se aproximaria dos tipos de narrativa visual que associamos mais diretamente às HQs?
O diálogo entre HQs e outras narrativas visuais também é o foco dos textos de Ivan Lima Gomes (UFG) e Amadeo Gandolfo (UBA). Gomes dedica-se a investigar as relações entre HQs e grafite tomando como referência Zé Ninguém, uma espécie de graphic novel que lança mão da estética do grafite para narrar a saga do personagem homônimo pelo Rio de Janeiro em paredes, muros, portas e outros suportes não tratados. Como resultado, essa cidade torna-se uma grande narrativa gráfica – ou uma street comics, de acordo com Tito na Rua, criador de Zé Ninguém – a ser interpretada de forma fragmentada por seus transeuntes.
Apoiado em uma leitura mais ampla sobre a obra de Oski, artista gráfico e ilustrador argentino, Gandolfo, por sua vez, parte para uma interpretação dos trânsitos visuais entre as linguagens do cinema e da ilustração gráfica, ao enfocar a adaptação cinematográfica de um desenho daquele criador. Sua abordagem ganha fôlego ao não defini-lo a priori como um quadrinista; antes, Gandolfo assume a produção de Oski como resultante de um original intercâmbio entre tradições antigas e modernas da ilustração, da publicidade e das HQs contemporâneas.
Para muitos, HQs significam histórias fantásticas, repletas de aventuras, reviravoltas e personagens de roupas berrantes. O cenário hoje é bem diferente, a ponto de termos uma série de HQs voltadas à representação da vida cotidiana e situações rotineiras. Por que representar um momento onde nada acontece? É o que Greice Schneider (UFS) busca analisar, baseada em um conjunto de graphic novels contemporâneas, de autoria, entre outros, de Seth, Dominique Goblet, Daniel Clowes, Lewis Trondheim e Gabrielle Bell.
O tempo das HQs produzidas exclusivamente por homens e direcionadas a leitores do sexo masculino ficou para trás. A produção de HQs por mulheres brasileiras é o tema do artigo de Maria da Conceição Francisca Pires (UniRio). Ao retomar publicações feministas e a trajetória de uma artista gráfica brasileira como Ciça durante a década de 1970, Pires constata a existência de uma crítica e de um riso feministas que se expressam por meio do humor gráfico. A análise aprofundada do trabalho de Chiquinha, quadrinista contemporânea, permite-nos vislumbrar igualmente a presença de uma cultura visual feminista, atenta à dimensão microscópica de poder exercido sobre corpos femininos e à visualidade do grotesco corporal como forma de resistência.
Em seu ensaio, Gonzalo Leiva Quijada (PUC-Chile) nos conduz até a trajetória de Kurt Herdan. Sobrevivente da Shoah, ele não se reconhece na Romênia sob égide da influência stalinista dos anos iniciais da Guerra Fria. Logo emigra para Israel e, em seguida, para o Chile, onde se estabelece como professor e artista dono de uma obra cujas “propostas revelam uma mensagem simbólica de que há um dever ético transposto nesses esboços, uma vez que sua sutil ironia nos desafia a sermos mais críticos e mais sábios”.
Na sequência, Jasmin Wrobel (Freie Universität) realiza uma original e pioneira incursão analítica pela obra de Marcelo D’Salete, um dos nomes de maior destaque na produção brasileira recente de graphic novels. Seus trabalhos priorizam a condição do negro na sociedade brasileira, desde as periferias de São Paulo às lutas de resistência à escravidão no século XVII. Ao não perder de vista que vários temas e soluções estéticas adotadas por D’Salete em Angola Janga eram já perceptíveis em Encruzilhada, Wrobel nos possibilita pensar a produção de D’Salete numa perspectiva de longa duração. Vista sob esse prisma, Angola Janga é menos uma obra única e mais o resultado de um longo processo criativo que remete à problemática condição racial brasileira. Ao texto de Wrobel, segue-se uma entrevista de Ivan Lima Gomes (UFG) com o próprio Marcelo D’Salete, na qual onde sua formação, atuação profissional, futuros projetos e questões afins são debatidas.
Boa leitura!
Organizadores
Ivan Lima Gomes – Doutor em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Professor da Faculdade de História e do Programa de Pós-graduação em História e do Mestrado Profissional de Ensino de História (ProfHistória) da UFG. Autor do livro Os novos homens do amanhã: projetos e disputas em torno dos quadrinhos na América Latina. Curitiba: Prismas, 2018. E-mail: igomes2@gmail.com
Charles Monteiro – Professor do Departamento de História e dos PPGs em História e em Letras da PUC-RS, pesquisador do CNPq.
Referências desta apresentação
GOMES, Ivan Lima; MONTEIRO, Charles. HQs, cultura visual e a leitura de imagens.. ArtCultura. Uberlândia, v. 21, n. 39, p.7-8, jul./dez. 2019. Acessar publicação original [DR]