Psiquiatria e política: o jaleco/a farda e o paletó de Antônio Carlos Pacheco e Silva | Gustavo Querodia Tarelow

Antonio Carlos Pacheco e Silva (1898-1998) nasceu no limiar do século, filho de abastada família paulista. Em seus textos memorialísticos, o renomado psiquiatra relatou o ambiente que o esperava quando veio ao mundo na capital de São Paulo: um lar “puro e coeso” ( Tarelow, 2020 , p.40). De certa forma, na obra Psiquiatria e política: o jaleco, a farda e o paletó de Antonio Carlos Pacheco e Silva, notamos que as noções atribuídas a esse lugar doméstico – “pureza” e “coesão” – serviram como coordenadas para suas atividades médicas e políticas ao longo da vida. Nelas se pautaram seu investimento em um ideal de povo brasileiro e suas contribuições como intelectual, principal tema que percorre a obra de Tarelow.

O trabalho, fruto de uma pesquisa de quatro anos que redundou em uma tese defendida no programa de Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, orientada pelo historiador André Mota, não se propõe a circunscrever “quem foi Pacheco e Silva” sob uma ideia unificada. Ao contrário, por meio de minúcia do trabalho histórico, o livro revela “um Pacheco e Silva” múltiplo e não definido sob esta ou aquela classificação. Nesse projeto biográfico, o autor nos traz uma nova compreensão desse personagem já inserido no panteão dos “heróis paulistas”. “Professor, cientista, psiquiatra, escritor, político, deputado, empresário, militar, pescador, enxadrista, pai, marido, avô”, grande entusiasta de uma ideia de paulistanidade, Pacheco é apresentado a partir de três “eras”: a primeira delas abrange sua formação científica, a segunda a sua consagração nacional e internacional como psiquiatra, a terceira o seu estreito envolvimento com golpes de Estado no Brasil. Essas três eras evidenciam, contudo, que “psiquiatria e política são faces de uma mesma moeda ao longo de sua biografia” (Tarelow, 2020 , p.195).

Naquilo que Tarelow denomina “era formativa”, Pacheco fez mais do que se formar como médico psiquiatra. Ele formou também seu pensamento dentro das correntes organicista, eugenista e de medicina experimental, que repercutiriam em seus anos na “era do fulgor” à frente do Hospital Psiquiátrico do Juquery. Tal formação condicionou sua participação nos intensos debates dos anos 1930, quando estava em jogo a construção de uma nação “forte e soberana” e quando comportamentos e grupos sociais específicos foram identificados como empecilhos a esse ideal – um ideal que caberia à elite intelectual conduzir em prol da regeneração do povo brasileiro. Fornecendo explicações biológicas a fenômenos sociais, o psiquiatra propunha que deveriam então ser tratados por meio do somático. Pacheco investiu, assim, na aplicação de diversas terapias de choque e na psicocirurgia quando diretor do Juquery. Seu “fulgor” consolidava-se também internacionalmente, tendo como relevante o episódio da sua contribuição para a atribuição do prêmio Nobel de 1949 a Egas Moniz, amigo português que desenvolveu esta última e famosa terapêutica (Toledo, 2019 ).

Aluno e conferencista da Escola Superior de Guerra em fins de 1950, na “era dos acirramentos” Pacheco seguiu a linha da psicopatologização dos “indesejáveis” que contemplou os militantes da esquerda. Assim, seu “anticomunismo deixou de ser apenas um exercício retórico e começou a pautar-lhe a ação política e prática como profissional da psiquiatria” (Tarelow, 2020 , p.179). Para a eliminação do “perigo vermelho”, ele contribuía com sua legitimidade médica para a construção de sujeitos de “não valor” pelo viés da doença ( Canguilhem, 1978 , p.93).

Em meio às redes de sociabilidade e científicas que manteve ao longo de sua vida, Pacheco e Silva trabalhou para a estruturação de uma sociedade brasileira seguindo os moldes eugênicos, racialistas e, mais tarde, na ocasião de sustentação do golpe, anticomunistas. Ele participou efetivamente da organização de grupos conservadores brasileiros que se apropriaram de uma “suposta crise” social e política que exigia “intervenção no seio da sociedade”, não apenas no combate ao “fantasma do comunismo”, mas também no sentido de controle de uma “degradação social” no qual a “loucura” seria um grande sintoma. Na “guerra” política, entraram em cena argumentos científicos: na justificativa para um governo inimigo da liberdade, Pacheco contribuiu com a noção de “perigo mental” que representaria a suposta tentativa de “hegemonia psicológica” dos comunistas sobre o povo brasileiro (Tarelow, 2020 , p.194).

Como especialista do mental, Pacheco se fez porta-voz de uma norma comportamental ajustada a seu engajamento político: contribuiu com discursos de patologização da “diversidade sexual” e de “diferentes formas da sociedade se organizar e da juventude se expressar” (Tarelow, 2020 , p.203). O livro demonstra como Pacheco representou um eco dentro de uma corrente conservadora que se posicionou contra os avanços sociais amparados pelo sistema democrático, conjugando ciência e política na defesa do status quo. Evidencia ainda que Pacheco fez parte de uma importante corrente da medicina brasileira durante a ditadura civil-empresarial-militar que já estava presente ao longo da ditadura Vargas. Essa medicina higienizadora e eugênica desembocou em um projeto biopolítico repressivo no qual alguns médicos foram partícipes (Souza, 2006).

Com a instauração da ditadura na década de 1960, Pacheco representou também os interesses de empresários paulistas. As denúncias de violação dos direitos humanos em um dos momentos mais tristes e sangrentos da história do Brasil foram consideradas “geradores de conflitos desnecessários e de perturbações mentais em grande parte dos cidadãos” (Tarelow, 2020 , p.210). A alienação como estratégia política aparece aqui em dois perigosos sentidos: no ato de se atribuir ao outro a noção de alienação mental como patologia, que lhe retira a capacidade de afirmação racional; e como empreendimento que priva “o outro” de algo que lhe é de direito (informação, saúde, liberdade).

Com destaque ao caráter não fixo da personalidade política e intelectual de Pacheco e Silva, o livro contempla a tecedura de um personagem histórico em meio às suas conexões com indivíduos, grupos e convicções políticas, trazendo à tona várias de suas “afinidades eletivas”. Seu autor foge de uma análise em que o sujeito é simples fruto de um ambiente social que o explica e determina, trabalhando em outro sentido: por meio da trajetória de Pacheco e Silva, aprendemos história política, social e das ciências no Brasil. Recorrendo à singularidade desse personagem, o autor investe no exame de como Pacheco foi influenciado e influenciou os contextos históricos em que viveu.


AGRADECIMENTO

A autora é bolsista do Programa Fiocruz de Fomento à Inovação (Inova Fiocruz).


Referências

CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1978.

SOUZA, Vanderlei Sebastião de. A política biológica como projeto: a “eugenia negativa” e a construção da nacionalidade na trajetória de Renato Kehl, 1917-1932. Dissertação (Mestrado em História das Ciências e da Saúde) – Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, Rio de Janeiro, 2006.

TARELOW, Gustavo Querodia. Psiquiatria e política: o jaleco, a farda e o paletó de Antônio Carlos Pacheco e Silva. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2020.

TOLEDO, Eliza Teixeira de. A circulação e a aplicação da psicocirurgia no Hospital Psiquiátrico do Juquery, São Paulo: uma questão de gênero, 1936-1956. Tese (Doutorado em História das Ciências e da Saúde) – Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, Rio de Janeiro, 2019.


Resenhista

Eliza Teixeira de Toledo – Pesquisadora de pós-doutoramento, Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde, Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Rio de Janeiro – RJ – Brasil. E-mail: elizattoledo@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-6687-1787


Referências desta Resenha

TARELOW, Gustavo Querodia. Psiquiatria e política: o jaleco, a farda e o paletó de Antônio Carlos Pacheco e Silva. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2020. Resenha de: TOLEDO, Eliza Teixeira de. História da saúde em São Paulo: entre a política e a psiquiatria de Antônio Carlos Pacheco e Silva. História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Rio de Janeiro, v.29, supl. dez. 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

Itamar Freitas

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