Provas de liberdade: uma odisseia atlântica na era da emancipação | Rebeca J. Scott, Jean M. Hébrard

Fruto de uma extensa pesquisa realizada ao longo de sete anos por Rebecca J. Scott e Jean M. Hébrard, Provas de liberdade: uma odisseia atlântica na era da emancipação, traz a saga da família Vincent/Tinchant, apresentada ao longo de nove capítulos e um epílogo de tirar o fôlego. Desde já, saliento que não consigo ver de outro modo senão como excepcional o modo como estes experientes pesquisadores conseguiram seguir os rastros deixados por estes “sobreviventes do Atlântico”.

Logo no início do livro, os autores nos informam que não consideraram o itinerário dos Vincent/Tinchant como típico ou representativo, o que podemos constatar ao longo da leitura. O fio inicial para a investigação foi uma carta escrita por Édouard Tinchant, um fabricante de charutos residente da Bélgica, endereçada ao general Máximo Gómez, encontrada no Arquivo Nacional de Cuba, na qual ele solicita a autorização para pôr seu nome na marca de charutos que pretendia lançar e, para tanto, não se furtou em usar sua capacidade discursiva para relatar aspectos de sua vida familiar enfatizando uma conexão entre luta por direitos civis e igualdade racial no mundo atlântico do século XIX – a Guerra Civil e a Reconstrução dos Estados Unidos (1861-1877), a Revolução Francesa (1848) e a Revolução do Haiti (1791-1804). A trilha seguida por eles nos conduziu até o século XX abrindo uma janela para que pudéssemos ver os desdobramentos da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) na vida de pessoas que tinham “cor”, como Marie-José Tinchant.

Ao se depararem com uma carta de caráter atlântico, os autores respeitaram o faro próprio aos pesquisadores de história e resolveram enfrentar o desafio de vasculhar os rastros deixados pela família Vincent/Tinchant mantidos por padres, tabeliães, oficiais e recenseadores locais em Cuba, nos Estados Unidos, no Haiti, na França, no México e na Bélgica. Como diriam os autores, o livro apresenta para o público uma odisseia familiar iniciada em Senegâmbia rumo a Saint-Domingue, no final do século XVIII, continuando até Santiago de Cuba, Nova Orleans, Porto Príncipe, Pau, Paris, Antuérpia, Veracruz e Mobile, com várias viagens de volta à Luisiana e à Bélgica.

Os autores nos deixam ver a movimentação de cinco gerações dos Vincent/Tinchant em busca de liberdade, dignidade e respeito, oferecendo-nos um olhar instigante e sofisticado sobre vários aspectos do mundo atlântico enfrentados por eles.

Escravidão, luta para construir uma vida em liberdade, raça, racismo e antirracismo, guerra e hierarquia social são alguns dos aspectos descortinados ao longo da obra. Neste texto, destacarei, de maneira especial, o esforço dos membros desta família em produzir ou fazer produzir suas marcas em documentos utilizados por eles para a reivindicação de direitos, como os registros sacramentais (batismo, casamento); registros notariais (contratos, cartas particulares, cartas de alforrias); e correspondências. Com efeito, ao longo do livro, Scott e Hébrard levantam argumentos para sustentar a tese de que, na luta por direitos, os Vincent/Tinchant sabiam muito bem a importância de deixar suas marcas ao longo do caminho e de recorrer a elas ou ocultá-las sempre que fosse preciso validar a posição social que esperavam obter.

Assim, elegemos três membros desta família de migrantes atlânticos, Rosalie, Élisabeth e Édouard, os quais, talvez por conta da quantidade de vestígios sobre seu itinerário, nos chamaram a atenção de maneira especial. A primeira delas é a africana Rosalie, nascida em Fuuta Tooro, Senegal, e trazida para Saint-Domingue, Cuba, entre 1780 e 1790, a avó de Édouard Tinchant, “de nação Poulard”, que trouxe consigo, para a travessia, o legado cultivado entre os seus, isto é, a valorização do aprendizado da linguagem e “a prática de colocar palavras no papel”. Do mesmo modo, à medida que Scott e Hébrard foram conectando os fragmentos encontrados de sua trajetória, pudemos conhecer uma mulher preocupada em produzir documentos e atenta para a importância de apresentá-los quando interessantes a seus projetos.

Ao tempo em que descortinaram os fragmentos da história de Rosalie e da sua família, os autores trouxeram à tona os desafios enfrentados por outras mulheres e outros homens que também carregavam no corpo, nos documentos (ou na ausência deles) “as ameaças de estigmas e suspeição” por serem “pessoas de cor”, sujeitos sociais que, assim como Vincent/Tinchant, se movimentaram no sentido de deixar marcas de liberdade ainda que, muitas vezes, não tenham sido bem sucedidos. Em Provas de liberdade, os autores construíram uma narrativa que consegue envolver o leitor também pela estratégia de inserir nos contextos as experiências dos sujeitos sociais.

Em seu itinerário, Rosalie e seus familiares, o marido, francês, Michel Vincent e seus quatro filhos, se mostraram dispostos a fazer o que fosse preciso para garantir direitos para toda a família. Com efeito, ela que, na prática, já vivia como alforriada e precisava de provas de sua liberdade, já que as “pessoas livres de cor” conviviam constantemente com os riscos da reescravização, investiu na construção de mais um documento. Neste sentido, Michel Vincent

preparou um documento de alforria que poderia servir como prova de liberdade individual […]. Escrevendo sem a ajuda de um tabelião, mas utilizando a linguagem que tinha sido convencional nesses documentos antes da abolição, ele declarou que Marie Françoise, chamada Rosalie, ‘mulher negra de nação Poulard’, e seus quatro filhos eram escravos e que ele os libertava. (SCOTT; HÉBRARD, 2014, p.64).

O interessante é que, conforme os autores, não há qualquer outra evidência de que Michel tivesse, de fato, sido dono de Rosalie. Lembram que este documento foi produzido em 10 de maio de 1803, período em que a escravidão não existia mais no Haiti. Ou seja, para os autores, ele é fruto de uma estratégia do casal, uma vez que,

a propriedade fictícia e as fórmulas do antigo regime nesse documento tinham aparentemente a intenção de conferir a ela e a seus filhos uma liberdade mais durável e mais defensável que aquela declarada pela Convenção Nacional Francesa. Era de se esperar que um regime sucessor ou um regime vizinho aceitassem a declaração de intenção escrita por um homem que se descrevia como um senhor de escravos, fosse qual fosse a política eventual sobre a própria escravidão. (SCOTT; HÉBRARD, 2014, p.65).

Com efeito, ao decidir sair de Saint-Domingue, Haiti, rumo a Santiago, Cuba, um “baluarte da escravidão”, sua frágil prova de liberdade foi finalmente homologada por um escrivão francês, o que a fortaleceu um pouco mais.

Para a concretização de seus projetos de liberdade, durante sua permanência em Nova Orleans, a filha de Rosalie, Élisabethe Jacques Tinchant, seu marido, seguiram tomando todas as providências para apagar as marcas da escravidão de seu passado. Tanto que ela conseguiu se livrar do rótulo de filha natural ao conquistar o direito legal de incorporar junto a seu nome o sobrenome de seu pai. De acordo com o projeto de liberdade tecido pelo casal, era preciso livrar a si mesmo e a seus cincofilhos da política de distinção limitadora e garantir para eles, por exemplo, o direito a uma educação formal de qualidade.

Assim, obstinados na busca por direitos, respeito, educação formal para os filhos e propriedades, os Vincent/Tinchant embarcaram para a França, em 1840, estabelecendo-se em uma região conhecida como Béar, onde seguiram tentando se livrar de outros rótulos de distinção.

Filho mais novo (o sexto filho) do casal Élisabeth e Jacques, já mencionado acima, Édouard Tinchant foi o único que nasceu na França e, assim como seus irmãos mais velhos, conseguiu ter acesso a uma boa educação formal e também se movimentou no sentido de conquistar direitos, respeito e propriedade, entretanto, sua trajetória chama nossa atenção de maneira especial pelo engajamento político na luta contra o colonialismo, a escravidão e a discriminação.

Enquanto legislador, Édouard pôde influenciar a construção de vários documentos de interesse das “pessoas de cor”, haja vista a Constituição de Luisiana, uma das mais revolucionárias do período pós-Guerra Civil dos Estados Unidos, que aprovou o fim das barreiras legais para o casamento entre pessoas negras e brancas, garantiu “direitos públicos” em questões de transporte, entretenimento e alojamento público, além da proibição de colégios públicos separados por raça. Ou seja, ele interferiu para a redução de restrições às “pessoas de cor” em Luisiana, restrições que, como podemos verificar ao longo da obra,vários membros da família Vincent/Tinchant experimentaram, inclusive ele próprio. Com efeito, considerando a tradição desta família de produzir documentos, certamente não é um exagero dizer que as lições mais valiosas recebidas por Édouard sobre a importância de produzir documentos foram aprendidas em família.

Provas de liberdade é um bom exemplo de como fazer uma pesquisa de micro história e, sem dúvida nenhuma, servirá de inspiração para muitos historiadores que enveredam em busca de reconstituir trajetórias, muitas vezes cheias de silêncios, de escravizadas, escravizados e de seus descendentes. Isto é, além de contribuir, sobremaneira, para os estudos sobre escravidão e liberdade no complexo Mundo Atlântico, acrescenta um conhecimento importante para os debates relacionados à luta transatlântica contra o racismo, nos dias atuais, pois, embora as restrições por “motivo racial” não estejam mais no papel, a luta para superá-las ainda continua em curso.


Resenhista

Karine Teixeira Damasceno – Doutoranda em História Universidade Federal da Bahia. E-mail: karitd@yahoo.com.br


Referências desta resenha

SCOTT, Rebecca J.; HÉBRARD, Jean M. Provas de liberdade: uma odisseia atlântica na era da emancipação. Tradução Vera Joscelyne. Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, 2014. Resenha de: DAMASCENO, Karine Teixeira. Uma família atlântica que deixou suas marcas de liberdade ao longo do caminho. Temporalidades. Belo Horizonte, v.10, n.1, p.419-423, jan./abr. 2018. Acessar publicação original [DR]

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