Protestantismo Ecumênico e Realidade Brasileira: Evangélicos Progressistas em Feira de Santana | Elizete Silva

Investigar a diversidade do mundo protestante não é tarefa fácil para historiadores. É comum encontrar preconceito, por parte das lideranças, contra a própria realização da pesquisa. Prefere-se as efemérides e os registros comemorativos, ao invés da análise histórica, mesmo que compreensiva. Outro problema são as fontes existentes, nem sempre disponibilizadas. Na verdade, boa parte delas foi sequer conservada, sendo comum as igrejas jogarem fora os “papéis velhos” para liberar espaço. Há ainda as grandes divergências internas, as vezes por motivos aparentemente pequenos, só perceptíveis para quem observa de perto o campo evangélico.

Foi o que fez a autora dessa obra, tanto em termos de escolha do movimento pesquisado quanto em termos de escala geográfica. A cidade de Feira de Santana, segundo município em presença populacional e em importância econômica no estado da Bahia, oferece um micro-cosmo para a análise local das tendências históricas mais gerais. O protestantismo brasileiro entrava em sua terceira geração quando buscou fincar raízes sociais e culturais, já não era uma proposta trazida por estrangeiros, e esse é o tema da obra: o protestantismo progressista.

Ele pode ser caracterizado pelo maior envolvimento dos fiéis com a atuação social e política, não correspondendo exatamente ao liberalismo teológico (p.35). Em termos históricos mundiais, também no caso de Feira de Santana, tal preocupação veio acompanhada do esforço ecumênico, primeiramente entre as denominações evangélicas e mais tarde englobando outros grupos confessionais. Então, o movimento pelo respeito entre os grupos religiosos e as ações solidárias caminharam pari passu.

As duas correntes que formaram o grupo progressista modificaram a herança protestante tradicionalmente cultivada no Brasil. Conforme a autora, as experiências de implantação por estrangeiros durante o século XIX, deram às igrejas “um caráter profundamente proselitista, anticatólico e denominacionalista” (p. 57). Inclusive, os primeiros projetos de união denominacional pretendiam fortalece-las perante o “inimigo comum”: o catolicismo (p. 61). Foi importante a criação da Confederação Evangélica do Brasil (CEB), em 1934.

Esta organização teve um setor bastante ativo, chamado de Igreja e Sociedade. Como o nome indica, seu objetivo era despertar as igrejas evangélicas para uma ação social e politica mais efetiva. As grandes conferências promovidas foram analisadas na obra. A primeira, ocorrida em 1955, tratava da “Responsabilidade Social da Igreja”, reunindo dezenove pastores de seis grupos distintos, além dos vinte e um leigos (p.107). A Segunda Conferencia, realizada em 1957, buscou aprofundar os temas da primeira reunião e organizar melhor o trabalho conjunto. No documento de conclusão do conclave, destaca-se a recomendação:

a tarefa do cristão, no Estado, não pode reduzir-se à mera ação eleitoral, isto é, no ato de votar, deixando de lado a ação positiva e organizadora no seio dos partidos; ele poderá atuar no seio dos partidos, aos quais deverá filiar-se convictamente, não por meros interesses passageiros, estritamente eleitorais, nas vésperas das eleições; deverá igualmente participar dos movimentos e organizações oficiais e oficiosas, dos órgãos de cooperação interdenominacional, que estejam visando estudar o problema político do país (…) Esse dever é particularmente crucial para a mocidade, tanto a que estuda nas escolas superiores quanto a que trabalha nas oficinas. (p.110)

A referência explicita aos movimentos de juventude demonstra a importância que eles tiveram para a renovação teológica ocorrida nos anos cinquenta. Os jovens pastores e as organizações eclesiásticas juvenis trouxeram com maior radicalidade a busca de contextualizar a fé. Os universitários, em especial, atuavam como intelectuais orgânicos, articulando as demandas da sociedade brasileira com os princípios que consideravam bíblicos. Entidades como a Associação Cristã Acadêmica se transformaram em “pólo irradiador de reflexão e práticas engajadas na transformação social”, o que não deixou de despertar a ira das elites eclesiásticas, conflitos e ações repressivas (p.74ss).

A terceira conferência organizada pela CEB teve por tema central “A presença da igreja na evolução da nacionalidade”, contando com palestrantes do porte do sociólogo Florestan Fernandes. O protestantismo brasileiro queria, na expressão da autora, “sair do gueto” – do individualismo restrito, do estrangeirismo preconceituosos com a cultura brasileira, do moralismo superficial – e para isso utilizava as Ciências Sociais enquanto ferramenta. Mais tarde, essa articulação será central para a Teologia da Libertação latino- -americana, mais conhecida através das obras de teólogos católicos, apesar de suas claras raízes no protestantismo progressista (p.137).

A radicalização sócio-política fica evidente no tema da quarta, e última, conferência promovida: “Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro”. Ela ocorreu em Recife, no ano de 1962, contando com intelectuais de opção socialista como Paul Singer e Celso Furtado. O teor dos documentos demonstra a clara influencia do marxismo nos debates:

A igreja tem apoiado sistemas econômicos e políticos opressores, ou se tem silenciado pecaminosamente, muitas vezes diante da injustiça, da opressão do homem pelo homem. A igreja deve fazer muito mais empenho para o estabelecimento da justiça nas relações familiares, nacionais e internacionais. Muitas vezes, a igreja não tem sido instrumento eficaz para a prática da justiça entre os homens, antes tem sido instrumento para a injustiça. Instrumento para injustiças dos patrões contra os empregados. Instrumento para o aumento da pressão dos ricos e poderosos. Instrumento para dar apoio aos imperialismos e colonialismos execrandos e desumanos (p.124).

O golpe civil-militar em abril de 1964 interrompeu esse processo de reflexão crítica, levou à desarticulação da CEB e repercutiu nas igrejas evangélicas com uma série de expurgos e perseguições. Como afirma Elizete da Silva, “a delação transformou-se num ato de serviço á pátria e a Deus” (p. 135).

Mas a repressão não pôde acabar com tudo, como se fosse passada uma borracha e apagada da memória toda aquela aprendizagem teológica. Em Feira de Santana, experiências de intervenção social e politica dos protestantes, destacando-se os presbiterianos, continuaram a ocorrer. Claro que não podiam ser ostensivamente revolucionárias, ou críticas ao sistema, naquela conjuntura ditatorial. Entretanto, mantiveram a convicção de que o amor cristão era melhor expresso por meio da justiça e da solidariedade.

Além de registrar esse processo histórico progressista, que apesar de recente desapareceu das representações acerca do mundo evangélico, a autora busca fazer uma historia explicativa. Lança hipóteses sobre o conflito de representações no campo religioso, utilizando particularmente as teorias de Pierre Bourdieu. Outra contribuição do livro é levar a sério as contribuições da teologia nas transformações historicas, não reduzindo-a aos interesses ou expressões ideológicas.

Fundamentado suas análises, Elizete da Silva trabalha tanto com fontes escritas – periódicos denominacionais, fontes eclesiásticas, livros, e dissertações – quanto com fontes orais. Com isso queremos dizer que em termos metodológicos essa obra é um exemplo de como cruzar informações para melhor entender a historia de um grupo. Não se trata exatamente de uma micro-historia, mas de experimentos na compreensão analítica de uma religião minoritária em uma cidade do sertão nordestino.


Resenhista

Eduardo Gusmão de Quadros – Doutor em História pela UnB. Professor da Universidade Estadual de Goiás e da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. E-mail: eduardo.hgs@hotmail.com


Referências desta Resenha

SILVA, Elizete da. Protestantismo Ecumênico e Realidade Brasileira: Evangélicos Progressistas em Feira de Santana. Feira de Santana, BA: UEFS Editora, 2010. Resenha de: QUADROS, Eduardo Gusmão de. História Revista. Goiânia, v.17, n.1, p. 255-258, jan./jun.2012. Acessar publicação original [DR]

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