Propostas e desafios nos usos de documentos históricos em sala de aula / História Hoje / 2017

É do conhecimento dos historiadores que depois dos Annales o conceito de documento histórico foi ampliado, abarcando materialidades diversas. Jacques Le Goff (1993, p.29) chegou a definir o momento como o de uma “revolução documental”. O resultado é que vivenciamos cada vez menos, em nosso ofício, resquícios de uma “exclusividade do registro escrito” na escrita da História. Nesse sentido, acreditamos que cabe aos professores refletirem sobre a força da centralidade dos documentos escritos e proporem contrapontos aos registros de práticas letradas do passado.

Hoje, é possível afirmar que todos os professores de história usam ou já usaram, pelo menos uma vez, documentos históricos em sala de aula, seja uma imagem, uma música, um filme, ou um trecho de códice. Com uma maior, porém ainda não ideal, democratização dos meios de informação, esses usos aumentaram nos últimos anos, pois com poucos cliques e palavras-chave digitadas é possível acessar bancos de dados digitais com acervos riquíssimos. Além disso, os melhores livros didáticos, em geral, trazem distintos tipos de registros documentais e informações de como analisá-los.

A questão que se impõe diz respeito justamente às maneiras de se usar tais documentos, pois, se por um lado eles podem servir como pertinentes instrumentos didáticos, por outro cabe ao professor ultrapassar o uso meramente ilustrativo e a concepção de prova irrefutável sobre determinado assunto. Em sala de aula, é preciso entender o documento histórico enquanto convite para se pensar uma temporalidade outra, ou seja, como dispositivo que impõe um esforço cognitivo para melhor aproximação de experiências do passado, com todas as contradições que tal ato pode encerrar. Nesse sentido, o documento pode ser considerado como um indício, e dessa forma servir para refletir sobre um problema a respeito do pretérito, ou mesmo possuir um conjunto de indícios, e ele próprio constituir o problema a ser enfrentado por alunos e professores. Uma pintura é bom exemplo disso. O fato é que o processo de ensino-aprendizagem se enriquece com os desafios postos pela análise de documentos em sala de aula. Tal esforço por parte dos docentes pode ser frutífero, pois, como afirmou a historiadora Helenice Rocha, sobre “a presença do passado na sala de aula”:

Existe um desafio na sala de aula: atrair e manter a atenção dos alunos da escola básica para um conjunto de conhecimentos aparentemente alheios ao momento presente. Se a busca de efeito de presença não é suficiente para o domínio do conhecimento histórico, ela propicia, potencialmente, a aproximação dos alunos com esse conhecimento a partir da atenção conferida ao professor e os materiais que utiliza e transforma na aula de história. (Rocha, 2014, p.50)

Podemos dizer, então, que documentos atraem a atenção dos alunos. Destarte, alinhados à ideia de que documentos podem servir como dispositivos que propiciam experiências significativas em sala de aula com um registro do passado (que passa, assim, a possuir efeito de presença), apresentamos, neste Dossiê, diversas vivências e reflexões de docentes das mais variadas regiões do país. Experiências que testemunham, de maneiras variadas, a situação muitas vezes paradoxal da História em nossos dias.

Refletindo a respeito da importância dos estudos históricos, Joseph Morsel defendeu, em 2007, o caráter combativo de nossa disciplina em um mundo que progressivamente menospreza o ensino de História em escolas e universidades (os cortes na quantidade de horas / aula de História se espalham mundo afora neste início de século XXI) (Morsel, 2007). Paradoxalmente, seja pela lógica acadêmica do “publish or perish”, seja pelo bombardeio midiático proporcionado por filmes, livros, músicas e videogames, a História cada vez mais é impulsionada na direção da divulgação de seus conhecimentos. O presente Dossiê aborda de frente essa questão capital, uma vez que, mais do que a mera divulgação do conhecimento histórico de forma acabada, os artigos aqui apresentados tratam: de uma forma específica de difusão da matéria historiográfica – muitas vezes chamada de “vulgarização” –, do processo de construção do conhecimento histórico por meio do trabalho (teórico e / ou prático) com os documentos históricos em sala de aula; das maneiras como tais documentos podem ser trabalhados para além da mera ilustração de determinado evento. Em outras palavras, os textos a seguir analisam como os documentos podem servir de base para eficazes instrumentos didáticos no ensino de História. Eles demonstram como seus usos na construção do conhecimento histórico produzem reflexões, trazem mais complexidade aos saberes e despertam, nos estudantes, interesses múltiplos.

Com temáticas, objetos, espaços e temporalidades diferentes, os artigos que compõem o presente Dossiê testemunham a ampliação da “matéria-prima”1 com a qual operam historiadoras e historiadores em seus gabinetes de pesquisa: textos (portadores de diferentes formas discursivas), imagens (estáticas ou em movimento), sons (musicais ou falados). Nesse sentido, refletir sobre os usos da documentação histórica vai muito além de uma prática acadêmica realizada em torres de marfim. Ela é antes de tudo uma questão de ofício e, portanto, viva em seu aspecto mais evidente: o ensino da História em escolas e universidades. Mas como transportar, para a sala de aula (da educação Básica ou Superior), a oficina do historiador? Sob quais condições, documentos primários podem ser e são utilizados em sala de aula na produção do conhecimento histórico? Em que medida tais documentos criam constructos para reflexões de consciência histórica no ensino? Buscando responder a tais questões, os artigos aqui reunidos propõem soluções práticas e teóricas para a difusão do conhecimento e da reflexão histórica de modo eficaz, fazendo convergir a erudição acadêmica e a atuação cidadã na formação do alunato.

História Geral e do Brasil, da antiguidade à contemporaneidade (sem saltar os períodos medieval e moderno), são aqui abordadas por meio do uso de textos escritos, músicas, filmes, pinturas, material digitalizado ou exposto em museus etc. Tempo e espaço figuram, assim, como os dois quadros mais amplos que interligam os artigos; é a própria questão da periodização, sua construção e seus usos ao longo da História, que emerge destas reflexões sobre o trato documental em sala de aula.

Em “A Reconquista: entre o debate historiográfico e a avaliação de uma realidade tardo-medieval”, Marcella Lopes Guimarães retoma um objeto histórico bastante estudado, a “Reconquista” ibérica, e o analisa por meio das construções narrativas que a cristalizaram na memória histórica e historiográfica ao longo dos séculos. A autora sustenta a existência de um descompasso importante revelado pela documentação trabalhada: a não identificação da Reconquista com a Cruzada no século XV. Tal identificação teria se produzido em outro contexto histórico, o que abre as portas para uma reflexão, em sala, a respeito dos tipos de relação com o passado pautados pela datação, pela narrativa e pelo acontecimento. Ao final, percebemos como o trabalho documental em sala de aula pode potencializar não apenas a compreensão da sociedade estudada como também a importância de seu estudo em nossos dias, uma vez que as escolhas empregadas no uso da periodização muitas vezes se referem mais ao presente do que ao passado em si.

Nessa mesma seara, Claudia Regina Bovo e Alex Degan (“As temporalidades recuadas e sua contribuição para a aprendizagem histórica: o espaço como fonte para a História Antiga e Medieval”) enfrentam a questão dos usos da diacronia no ensino de História. Ao destacarem que novas formas de abordar a documentação produzem novas modalidades de se problematizar a disciplina histórica, os autores defendem que o ensino das diferenças existentes entre as populações passadas pode aportar uma contribuição cognitiva de grande importância para a formação dos jovens. Assim, o estudo de sociedades distantes (no tempo e no espaço) colaboraria fortemente para demonstrar a grande alteridade existente entre as sociedades humanas, o que não é de pouca importância para a formação cidadã. Por sua vez, o tema da diacronia foi abordado de maneira diferente no artigo “Projeto Pipoca Clássica: o uso do cinema como ferramenta para discussão e ensino da Antiguidade Clássica”, de Carolina Kesser Barcellos Dias, Dayanne Dockhorn Seger e Milena Rosa Araújo Ogawa, que aparece na seção História Hoje na Sala de Aula e compõe este Dossiê. Ali temos o relato da experiência do ensino de objetos históricos bastante recuados no tempo por meio das reconstruções e ressignificações realizadas pela indústria cinematográfica. O uso desse material ao mesmo tempo veículo didático-pedagógico e documento histórico contemporâneo testemunha das representações atuais do passado se inseriu nas atividades de um projeto de extensão voltado a alunas e alunos de diferentes idades e formações escolares. Pôde-se, assim, romper com as fronteiras institucionais do ensino de História, levando reflexões acerca do passado distante para fora do mundo universitário e, de certa forma, aproximando-se do que se tem chamado de “História Pública”.

A relação entre sala de aula e outros ambientes de ensino é também uma marca do artigo de Eliana Ávila Silveira e Luciana da Costa de Oliveira intitulado “História, imagens e gaúchos: usos, desusos e possibilidades em sala de aula”. Trabalhando com representações imagéticas do “gaúcho”, as autoras colocam no centro do debate o uso das imagens como instrumentos didáticos: sai-se da abordagem ilustrativa (muitas vezes ainda realizada em algumas salas de aula) para uma reflexão sobre a construção histórica e artística de tal representação. Desenvolvida com alunos Pibid em História e concretizada parte em sala, parte no palácio do governo do Rio Grande do Sul, o artigo demonstra como pinturas como A formação histórico-etnográfica do povo rio-grandense de Aldo Locatelli (1951-1955) são o resultado do confronto entre passado e presente. Deparamos novamente com a mais importante constante (entre os artigos que constituem este Dossiê) presente nos usos da documentação histórica em sala de aula: a diacronia.

O jogo com as temporalidades é também, de certo modo, o ponto de partida para outros dois artigos deste Dossiê; em ambos os casos, o uso documental serve, pedagogicamente, como porta de entrada à participação mais ativa de alunas e alunos em sala de aula: estes são chamados a perceber a História como um campo de conhecimento em constante processo de (re)construção. Em “O Arquivo Nacional na ‘Sala de Aula’: fontes históricas na construção do conhecimento” Marieta Pinheiro de Carvalho e Vivian Cristina da Silva Zampa trabalham com aspectos tradicionalmente pouco aprofundados do período colonial brasileiro a partir do acervo em formato digital (e mesmo digitalizado) do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro e disponível em acesso livre na internet. Ao final, as autoras afirmam que o tratamento crítico da documentação pode ser de grande auxílio como meio para que os temas estudados sejam objeto de questionamentos diversos visando transformar discentes e docentes em sujeitos produtores de História(s).

Por sua vez, Alessandra Carvalho e Diego Knack em “Conhecimento histórico escolar, tempo presente e o uso de documentos audiovisuais no ensino sobre a ditadura militar na educação básica” partem do registro musical para estabelecer um diálogo às vezes diacrônico, às vezes sincrônico, entre o presente de alunas e alunos e o fazer histórico e historiográfico. É justamente nessa fusão da História com sua escrita que os autores se situam ao trabalharem com a “história de um tempo que ainda não acabou”. O uso de material audiovisual assume aqui uma dupla função: primeiro, comunicativa, uma vez que se trata de linguagem amplamente difundida e mesmo bastante sedutora para imensa parte da população; depois, por potencializar a empatia discente com os objetos estudados, aumentando o interesse pela História. Tal encruzilhada temporal, como bem sabemos, produz, talvez de modo mais evidente do que em outras situações de ensino de História, o avivamento de debates políticos, cobrando dos docentes um posicionamento ao mesmo tempo ético e científico, uma vez que, por meio do trabalho crítico com a documentação, alunas e alunos participam ativamente da História que produzem.

Por fim, este Dossiê traz ainda uma resenha de obra recente a respeito de um tema candente: o ensino da História dos índios. Apresentamos também uma importante entrevista com a Profa Dra Alessandra Carvalho, docente do Colégio de Aplicação (CAp) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenadora da Pós-Graduação em ensino de História da mesma universidade (ProfHistória). Ali são debatidos temas importantes e de atualidade para nossa profissão como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a experiência inovadora do ProfHistória, o papel dos professores de História nas escolas e, é claro, o uso de documentação histórica em sala de aula como instrumento de ensino e formação cidadã.

Antes de terminarmos esta breve apresentação, gostaríamos de agradecer a todas e todos que abraçaram nossa proposta de reflexão e nela se engajaram com suas pesquisas, reflexões e textos. Um agradecimento especial à Revista História Hoje e sua editoria pelo pronto acolhimento de nossa proposta, bem como pelo acompanhamento atento e cuidadoso ao longo de todo o processo de edição. Esperamos que ao final da leitura dos textos aqui apresentados as distâncias cronológicas, temporais, temáticas, metodológicas e teóricas possam ser encurtadas em prol de uma fusão dos ganhos pedagógicos, científicos e cidadãos do uso de documentação primária em sala de aula!

Nota

1 Mesmo se preferimos essa expressão às de “fonte” (vocábulo que remete a ideia, digamos, de uma suposta pureza dos testemunhos que jorrariam da História, cabendo aos historiadores apenas seu “engarrafamento” e preparação para circulação) e mesmo de “documento” (que em sua origem jurídica remetia apenas aos testemunhos chancelados por uma autoridade e que, por isso, seriam relatos fiéis das práticas passadas), optamos pela manutenção do último, uma vez que se trata de termo amplamente difundido entre os pesquisadores e professores. O aprofundamento de tal discussão, embora de grande importância, nos levaria a formular outra proposta de dossiê, desta vez, mais centrado nas pesquisas históricas em si – o que nos afastaria da proposta central da Revista História Hoje

Referências

LE GOFF, Jacques (Org.) A Nova História. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

MORSEL, Joseph. L’Histoire (du Moyen Âge) est un sport de combat… Réflexions sur les finalités de l’Histoire du Moyen Âge destinées à une société dans laquelle même les étudiants d’Histoire s’interrogent. Paris: LAMOP, 2007.

ROCHA, Helenice. A presença do passado na sala de aula. In: MAGALHÃES, Marcelo; ROCHA, Helenice; RIBEIRO, Jayme Fernandes; CIAMBARELLA, Alessandra (Org.) Ensino de História: usos do passado, memória e mídia. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2014.

Gabriel de Carvalho G. Castanho – Doutor em História pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) de Paris. Professor de História Medieval do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Programa de Pós-Graduação em História Social (PPGHIS) da UFRJ. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: gabrielcgc@terra.com.br.

Jorge Victor de Araújo Souza – Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor de História da América Colonial na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Docente do Programa de Pós-Graduação em Ensino de História (UFRJ), Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC). Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: jvictoraraujos@gmail.com.

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[DR]

 

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