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Projeto Político de um Território Negro: memória, cultura e identidade quilombola em Retiro, Santa Leopoldina – ES | Osvaldo M. Oliveira

A historiografia brasileira há algum tempo entende a formação do Brasil e a diáspora africana, entre os séculos XVI e XVII, como um mesmo processo histórico que uniu os dois lados do Atlântico Sul em um único sistema de exploração colonial. A colonização portuguesa na América, alicerçada no escravismo, integrou uma zona de produção escravista no litoral brasileiro a uma zona de reprodução de escravos situada em Angola. A especificidade desse processo de formação ainda impacta profundamente o Brasil.

A despeito da importância do negro na formação nacional, a realidade dos afrodescendentes continua marcada por resistência e luta pelo acesso à cidadania. Foram necessários cem anos após a abolição da escravidão, para que a Constituição Federal de 1988 introduzisse o direito de acesso aos bens materiais e imateriais dos remanescentes das comunidades de quilombos, entre os quais, o título definitivo da propriedade de suas terras, fruto da participação ativa das organizações do movimento negro.

É nesse contexto de luta pela regularização da terra que se encontra o livro Projeto Político de um Território Negro: memória, cultura e identidade quilombola em Retiro, Santa Leopoldina – ES, de Osvaldo Martins de Oliveira. O antropólogo, professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo apresenta em seu livro o resultado de um estudo etnográfico de fôlego, que por meio da observação participante, confere visibilidade aos Benvindos, moradores de uma comunidade negra localizada em Retiro, e sua luta em torno da efetivação de um direito constitucional, qual seja, o direito à propriedade de suas terras consideradas uma herança.

Os Benvindos é a denominação pela qual os moradores se autodefinem como herdeiros de um ancestral comum – o antigo Benvindo e sua esposa Maria Pereira das Neves, de modo que todos se consideram parte de uma mesma família. Por volta de 1875, o casal ancestral, inserido em uma coletividade de parentes, já se encontrava estabelecido na região do vale do Rio Mangaraí e do vale do Rio Santa Maria, em Santa Leopoldina, num lugar que vinha sendo usado para a retirada de ex-escravizados e de seus descendentes. Daí o nome Retiro ao território em que hoje vive a comunidade quilombola.

O projeto político do território de Retiro em torno da garantia do direito à terra é o objeto central do livro. Para analisá-lo, o autor partiu das experiências organizacionais, das lutas e dos discursos políticos dos próprios moradores. Ao acessar a memória social da comunidade no contexto de inserção na luta política pela terra foi possível perceber a reconstrução do passado como parte integrante do processo de construção do território negro. Os Benvindos apropriam-se do passado tendo em vista seu contexto e suas relações políticas no presente, que os possibilitam pleitear direitos e, assim, assegurar a sobrevivência da comunidade. Os moradores de Retiro parecem compreender o tempo histórico como espaço de experiência, na medida em que o tempo é considerado uma construção cultural que, em cada momento, estabelece um modo de se relacionar com o passado e com as possibilidades que se abrem ao futuro como horizonte de expectativas.

O que permitiu captar os sentidos que os moradores de Retiro conferiam ao projeto político do seu território negro foi a opção por um estudo nos moldes clássicos da antropologia sobre estudos de comunidade. A longa permanência em campo possibilitou ao pesquisador vivenciar a realidade cotidiana dos Benvindos e acessar as sensibilidades dos sujeitos. As informações levantadas a partir da oralidade dos moradores foram contrastadas entre si, a fim de perceber a diversidade e as variações do saber local, e também com a pesquisa documental, em relatórios de presidente de província e de polícia, documentos cartorários, livro de batismo, documentos jurídicos e na historiografia regional. Por meio desse procedimento, observa-se a complementariedade entre oralidade e escrita.

Ao partir de abordagem relacional e situacional embasada nos trabalhos do antropólogo norueguês Fredrik Barth, foi possível perceber que os sentidos atribuídos pelos moradores de Retiro aos conceitos de cultura, identidade e quilombo eram construídos na diferenciação em relação àqueles que não pertenciam ao grupo. Dessa forma, a cultura é o resultado de uma organização social específica, na qual identidade passa a ser entendida como a autodefinição a partir da diferença em relação ao outro. Assim, os significados construídos pelos moradores é resultado da interação social com o outro, de modo que as diferenças são socialmente construídas. A escolha desse arcabouço teórico relaciona-se ao fato de ser uma comunidade negra inserida em uma região marcada pela imigração europeia, de modo que, para compreender o posicionamento dos Benvindos em torno do projeto político do seu território é preciso analisá-lo dentro de um contexto de relações interétnicas. A construção das diferenças se apresenta no emprego dos termos nós e eles, comum nas falas dos moradores para se distinguirem de sua vizinhança, a gente de origem.

Apesar de se tratar de estudo de comunidade, a noção de coletividade empregada parte da ideia de um grupo social, no qual os seus integrantes possuem consciência da existência e do pertencimento a essa coletividade. Nesse sentido, conforme a perspectiva de Barth, a análise do comportamento social de um grupo passa, necessariamente, pela consideração da posição particular de cada membro da comunidade estudada. O mérito do livro e sua grande contribuição, em especial, para a historiografia é exatamente a aplicação impecável do referencial teórico, que trouxe à tona os sujeitos e suas ações, posicionamentos, discursos e estratégias imprescindíveis para o entendimento dos sentidos que o projeto político do território negro têm para os moradores de Retiro. Em sua análise, o autor parte de perguntas gerais sobre a organização política das comunidades negras na luta pelo reconhecimento como remanescentes quilombolas, para chegar às respostas locais, ou seja, aos sentidos e aos significados que os Benvindos conferem à questão. Um procedimento analítico bastante caro aos historiadores que tem se dedicado ao resgate da dimensão cotidiana da história, em que se destaca a Microhistória.

Faz-se necessário ressaltar que, para empreender a análise do projeto político do território negro de Retiro, o autor reconstituiu o contexto histórico tanto do passado escravista da região do cinturão verde capixaba, quanto das políticas públicas de ação afirmativa em âmbito nacional. O diálogo entre as esferas macro e micro da realidade social tornou possível perceber a reelaboração do significado de quilombo pela comunidade em diálogo com o ator estatal, assimilado como instrumento de luta e de mobilização política das comunidades rurais negras para assegurar suas terras e ter acesso às políticas sociais. Quilombo passou então a representar um direito a ser reconhecido e não um passado a ser rememorado, deixando de simbolizar um estigma para conferir direitos aos seus portadores.

No processo de reivindicação de um direito, a ancestralidade aparece como um conjunto de valores coletivos, que funcionam como forma de manter a unidade e a coesão social. A comunidade vem reconstruindo suas formas de organização, transmitindo e atualizando os significados dos seus bens, como os enlaces matrimoniais entre parentes, a apropriação comunal da terra, o plantio da mandioca, a fabricação da farinha, o artesanato, o congo e a relação com a natureza. É nesse contexto de acionamento da memória social em torno do projeto político, que se fundamenta a identidade étnica.

Interessante notar que o processo de reivindicação para tornar-se quilombo ocorreu na relação com o poder público, ou seja, com a participação de agentes externos. É por isso que os moradores se autodefinem como os Benvindos ou herdeiros dos Benvindos, por tratar de categoria de autodefinição construída internamente, a partir da diferenciação com o seu entorno. Assim, os moradores da comunidade de Retiro se veem como os Benvindos e reivindicam um direito referente aos quilombos por se considerarem descendentes de africanos e herdeiros das terras que foram adquiridas por seus ancestrais. Além do fato de que, a luta em torno da garantia da propriedade de suas terras, que resultou na criação da Associação dos Herdeiros do Benvindo Pereira dos Anjos, foi anterior às discussões que culminaram na inclusão dos direitos aos quilombolas na CF/88.

Enquanto o conceito de quilombo tornou-se categoria assimilada pelas lideranças da comunidade de Retiro no seu relacionamento com as esferas do poder estatal, as noções de terra, território e territorialidade se apresentam como categorias de análise elaborada no plano micro das relações e das experiências locais que identificam o grupo. A terra aparece como condição fundamental para a existência da coletividade e sua autonomia. Apropriada como meio de produção e base territorial indivisível e inalienável capaz de proporcionar a sobrevivência e permanência dos herdeiros enquanto comunidade. Assim, a terra funciona também como elo com os seus ancestrais, sendo parte integrante do patrimônio material e imaterial que configura o território negro de Retiro. Diante da importância conferida a terra, apesar da existência de documentos que asseguram sua aquisição pelos ancestrais, seus limites são transmitidos oralmente de geração em geração, devido às expropriações sofridas e aos conflitos fundiários com os proprietários de terras da região.

O território é visto como um lugar com seus limites definidos pelo uso da terra e pelas práticas culturais de seus moradores, marcado pela resistência e pela organização política, em que a reconstrução do passado é parte integrante da construção do território negro. Enquanto a territorialidade abrange os modos de agir sobre um determinado território, associado à identidade de grupos negros que se constituem a partir da resistência informal organizada. A territorialidade negra possui uma dimensão política, na medida em que contribui para definir a etnicidade do grupo, isto é, a consciência de pertencimento à coletividade e aceitação de seus padrões culturais, ingrediente essencial na luta pela terra.

Dessa forma, as relações internas entre as famílias da comunidade de Retiro aparecem como base para o processo de territorialização local. A reconstituição de valores, ideias, hábitos, crenças, regras de residência e do uso da terra são elementos que funcionam como marcos diferenciadores da territorialidade negra diante da sociedade. De modo que território e territorialidade negra resultam das relações de alteridade. Através da reconstituição histórica da origem da comunidade, desde o processo de ocupação das terras por Benvindo e Maria e sua coletividade de parentes até a formação da associação e a inserção na luta pela titulação da terra, o livro apresenta a construção dessa territorialidade negra no contexto de implementação de direitos constitucionais.

A titulação definitiva das terras ocorreu apenas em 2009, período que ultrapassa o recorte temporal analisado. Entretanto, antes mesmo de ela acontecer, a permanência na terra e a garantia da propriedade, diante do esfacelamento de propriedades vizinhas, é bastante significativo para os Benvindos. A manutenção de seu território representa um ato político e uma luta pelo reconhecimento de sua existência, além de possibilitar um deslocamento entre o espaço de experiência e seus horizontes de expectativas.

À guisa de conclusão, a visão humanizada e a capacidade narrativa do autor enriquecem o livro e conduzem o leitor ao cotidiano dos Benvindos, com suas interessantes histórias de vida, resistência e conquista. A presença negra no Espírito Santo é assunto que vem sendo descortinado há algum tempo pela historiografia regional, contudo, a obra aponta caminhos para uma história ainda em construção, sobre o período do pós-abolição. Tornando-se referência obrigatória tanto para pesquisadores da área, quanto para os profissionais que atuam no desenvolvimento de projetos com comunidades rurais negras.

Referência

OLIVEIRA, Osvaldo Martins. Projeto Político de um Território Negro: memória, cultura e identidade quilombola em Retiro, Santa Leopoldina – ES. Vitória: Editora Milfontes, 2019.

Thiara Bernardo Dutra – Doutoranda em História pela Universidade Federal do Espírito Santo.


OLIVEIRA, Osvaldo Martins. Projeto Político de um Território Negro: memória, cultura e identidade quilombola em Retiro, Santa Leopoldina – ES. Vitória: Editora Milfontes, 2019. Resenha de: DUTRA, Thiara Bernardo. Territorialidade negra no Espírito Santo. Revista do Arquivo Público do Estado do Espirito Santo, Vitória, v.3, n.6, 2019. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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