Projeto e missão: o movimento folclórico brasileiro 1947-1964 | Luís Rodolfo Vilhena

Ao escrever sobre o folclore e o movimento folclorista no Brasil dos anos de 1947 a 1964, Luís Rodolfo Vilhena retomou um dos temas polêmicos de nossa tradição de pensamento: a construção da idéia de nação brasileira. Fez isso de maneira criativa e corajosa porque escolheu examinar o assunto, investigando o sentido que os folcloristas davam aos estudos sobre as tradições populares, tema habitualmente pouco valorizado pelos cientistas sociais, ainda mais no contexto da institucionalização das ciências sociais na década de 1950, quando foi objeto de críticas severas.

No livro, a reconstituição do projeto dos folcloristas da década de 1950 leva Luís Rodolfo a questionar um conjunto de problemas relevantes da vida intelectual brasileira. Começa perscrutando o significado da criação da Comissão Nacional do Folclore (CNFL) em 1947, vinculada ao Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura do Ministério das Relações Exteriores. Discute os limites das escolhas feitas pelos cientistas sociais no processo de institucionalização de suas disciplinas, a excluir campos do saber como o folclore, em nome de uma concepção rigorosa de ciência. Finalmente, revela a qualidade da missão dos folcloristas e analisa o estilo solidário e fraternal que imprimem a suas atividades.

O elo que reúne esses problemas é o desejo de conhecer, registrar, preservar e proteger a cultura popular, definida por sua oralidade e reatualização constante através do tempo, como se nela se encontrasse a força viva da brasilidade. Luís Rodolfo persegue o movimento fervoroso dos folcloristas que não se deixa esmorecer diante das dificuldades e consegue atrair adeptos por todos os cantos do país.

Certamente são muitas as controvérsias que envolvem a criação de instituições culturais no Brasil durante a década de 1950, e mais numerosos ainda os pontos de vista com que se aborda a questão. Mas o que espanta e surpreende no livro de Luís Rodolfo é o grande investimento na criação da CNFL e, logo, na Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, ambas voltadas para a preservação de um bem considerado arcaico, em um contexto que buscava privilegiar as mudanças que modernizavam o país e, acreditava-se, acabariam com os resquícios e as sobrevivências do passado. O folclore era um desses resquícios. Mesmo assim, Renato de Almeida, Edison Carneiro, Câmara Cascudo, Manuel Diégues Júnior, Joaquim Ribeiro, Theo Brandão, Dante de Laytano, Rossini Tavares de Lima, Alceu Maynard de Araújo, Mariza Lira e Cecília Meireles decidiram-se pela proteção daqueles resquícios. Imbuídos de sua missão, davam continuidade ao trabalho de Silvio Romero, Amadeu Amaral e Mário de Andrade.

Luís Rodolfo mostra com muita argúcia a capacidade empreendedora dos folcloristas: a CNFL se fazia representar em 18 estados da federação. Produziu inúmeros documentos e organizou importantes congressos. Sua meta era a pesquisa — o grande inquérito, como denomina o autor —, a proteção do folclore e seu aproveitamento na educação dos jovens. Sem contar com recursos próprios, a CNFL dispunha do entusiasmo de seus membros e nele se apoiava para estimular as iniciativas de coleta, preservação e divulgação do folclore brasileiro. O autor argumenta que, diferente das instituições voltadas para o ensino e a pesquisa das ciências sociais, cuja busca de autonomia não impediu a forte influência dos contextos políticos locais, os folcloristas conseguem organizar nacionalmente seus intelectuais de província. A consistente rede nacional dessa intelligentsia não alcança porém instituir um retrato da cultura brasileira, como seria de esperar de uma corrente de pensamento que busca a “alma de um povo”.

A análise refinada de Luís Rodolfo distingue a instância do movimento e organização dos folcloristas da instância de elaboração de um ethos próprio de todos os brasileiros. Se não se curvaram aos ideais desenvolvimentistas e à vertente programática das ciências sociais que procurava se impor nos grandes centros do Rio de Janeiro e São Paulo, os folcloristas também não lograram formular uma idéia da cultura brasileira a partir das tradições populares que estudavam. Nenhum símbolo nacional resultou de suas pesquisas. O apreço pela pluralidade regional das expressões folclóricas, mas, sobretudo, pela aura que envolve sua espontaneidade, seu caráter comunitário e oralidade talvez os tenha impedido. Em troca, insistiram na continuidade, em um constante vir-a-ser através do tempo daquelas variadíssimas formas de cultura popular que marcariam, no seu conjunto, uma maneira brasileira de ser.

O livro nos faz pensar mais uma vez sobre o lugar do folclore entre outros saberes eruditos. Muito embora Luís Rodolfo procure evidenciar que o folclore permaneceu à margem da universidade, devido à recusa dos cientistas sociais em aceitar aquilo que estava incomodamente “entre a ciência e a arte”, como afirmara Florestan Fernandes, suas conclusões sugerem uma reconciliação do folclore com as ciências sociais. Não somente relembra o mestre Lévi-Strauss, para quem o folclore faz parte da antropologia, como destaca um comentário melancólico de Florestan Fernandes sobre os caminhos que levaram os cientistas sociais a se afastar do saber singelo das coletividades despossuídas dos bens de fortuna.

Muitos estudiosos consideram o conhecimento da história essencial para a compreensão do presente, outros, mais céticos, crêem que o passado não tem nenhum vínculo evolutivo com o presente. Para estes últimos, o que vale é a escolha e a seleção de um tema em meio a uma infinita ocorrência de eventos. A escolha revela o significado e a importância de que o tema se reveste para o pesquisador. Se considerarmos a concepção cética a mais plausível, podemos dizer que o livro em questão revela seu interesse profundo pela captura de um ” tempo perdido” que define a singularidade dos brasileiros.

O antropólogo Luís Rodolfo Vilhena morreu jovem e tragicamente em 1997 antes da publicação de Projeto e missão. Deixou, entretanto, uma primorosa obra de referência para todos aqueles que se aventuram a estudar a cultura brasileira.


Resenhista

Glaucia Villas Bôas – Professora de sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).


Referências desta Resenha

VILHENA, Luís Rodolfo. Projeto e missão: o movimento folclórico brasileiro 1947-1964. Rio de Janeiro: Funarte; Fundação Getúlio Vargas, 1997. Resenha de: BÔAS, Glaucia Villas. Em busca do sentido nacional do folclore. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.6, n.1, mar./jun. 1999. Acessar publicação original [DR]

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