Profissão Artista: pintoras e escultoras acadêmicas brasileiras – SIMIONI (H-Unesp)

SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. Profissão Artista: pintoras e escultoras acadêmicas brasileiras. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: FAPESP, 2008, 360p., ISBN 8531410754. Resenha de: FANINI, Michele Asmar. Nem excepcionais, nem amadoras: Artistas Profissionais. História [Unesp] v.28 no.2 Franca  2009.

Tese de doutorado elaborada por Ana Paula Cavalcanti Simioni, ora convertida em livro, Profissão Artista: pintoras e escultoras acadêmicas brasileiras preenche uma importante lacuna nos estudos sobre a sociologia da arte brasileira, e não apenas em virtude do original recorte estabelecido pela autora mas, sobretudo, pela riqueza das fontes compulsadas, que garantiram seu criterioso encaminhamento.

Como o próprio título sugere, o livro apresenta como fio condutor a investigação acerca das possibilidades de profissionalização feminina na esfera das “belas artes” brasileira, em sua fase acadêmica, mais precisamente, durante o período que enfeixa os anos de 1884 e 1922. De saída, é possível notar que o recorte temporal se define como um contraponto à “tendência a se desqualificar tudo o que fosse anterior ao modernismo paulista” (p.23), i.e., à artificialidade daquelas disposições responsáveis pela transformação do entresséculos em alvo privilegiado de um processo intenso de deslegitimação encetadas, por sua fase subseqüente, a saber, a modernista (MICELI, 1977; PASSIANI, 2003). Além disso, as datas que delimitam o intervalo em tela correspondem a acontecimentos em nada fortuitos: o ponto de partida, 1884, é o ano em que a artista plástica Abigail de Andrade é agraciada com a medalha de ouro em duas, das cinco obras que exibe na Exposição Geral (p. 206), enquanto o ano de 1922 não apenas representa, simbolicamente, o ocaso do academicismo, com a Semana de Arte Moderna, como assiste à consagração de Georgina de Albuquerque no gênero artístico que ocupava o topo da escala hierárquica acadêmica, até então marcadamente masculino, qual seja, a pintura de história (p.286-287).

Mais propriamente, a construção do objeto de investigação se processa a partir da constatação da existência de uma incongruência entre, de um lado, as canônicas presenças de artistas como Anita Malfatti e Tarsila do Amaral em nosso “panteão estético” e, de outro, a aparente ausência de antecessoras de semelhante “quilate” na história da arte brasileira imediatamente pregressa, tanto na pintura quanto na escultura. Uma vez diagnosticada tal “descontinuidade”, Ana Paula Cavalcanti Simioni considera improcedente a existência de tão celebrados nomes em nosso cenário modernista, sem que houvesse uma tradição anterior de mulheres artistas que os justificasse. Portanto, a hipótese da autora erige-se sobre tal desconfiança, e acena para a necessidade de problematização da presença destas renomadas artistas como “casos isolados”: elas seriam, antes disso, parte de uma memória pouco conhecida e, tal como comprova, artificialmente obnubilada pelos sujeitos responsáveis por sua “escrita” (críticos e historiadores da arte, museólogos, curadores).

A acertada aposta em tal incoerência conduz Simioni a desbravar aqueles espaços “intencionalmente esquecidos” pela história da pintura no Brasil, procedendo à desconstrução da imagem de “mulheres excepcionais”, que as artistas modernistas em questão exemplarmente recendem. A problematização desta “terminologia de supervalorização de uma minoria” deixa evidente a existência de uma pronunciada relação entre seu estratégico manejo e a enviesada construção do cânone artístico, edificado sobre grandes “lacunas historiográficas” (p.36), ficando relegadas à sombra importantes presenças femininas da tradição artística anterior ao modernismo, encobertas pelo cintilante véu da autoritária excepcionalidade.

O cenário, por excelência, da análise, não poderia ser outro, senão o Rio de Janeiro, e por fatores multifários, relacionados à posição privilegiada que a cidade ocupava no circuito da produção estética nacional, o que se deve ao fato de ter sediado a Imperial Academia de Belas Artes e sua sucessora republicana, a Escola Nacional de Belas Artes, espaço de formação artística prestigiado, que não só monopolizava o principal canal de exposição de arte acadêmica, o salão anual, como atuava na subvenção de artistas, na promoção de cerimônias de premiação etc. Contudo, a influência da França, principal pólo de difusão cultural do período, não haveria de ser negligenciada em um estudo desta envergadura. Levando isto em conta, e sem perder de vista seu foco de interesse, Simioni expande seu recorte, de modo a contemplar o impacto da Académie Julian, escola privada inaugurada em 1867 por Rodolf Julian (1839-1907), internacionalmente reconhecida, no processo de formação das artistas brasileiras.

Conciliando um ambiente “bem freqüentado”, ou seja, exclusivamente composto por mulheres de recursos, a um rigor técnico comparável ao da EBA [École de Beaux-Arts], a escola [Académie Julian] tornou-se um sucesso universal, atraindo jovens de todo o mundo para seus quadros. E as mulheres eram um excelente negócio na medida em que pagavam o dobro para uma formação quase equivalente à dos colegas (p. 156).

Para comprovar e fundamentar suas suposições iniciais, a autora recorre a acervos públicos e particulares do Brasil e da França, detendo-se especialmente em dicionários e nos catálogos de Exposições Gerais de Belas-Artes e dos Salões Nacionais de Belas-Artes, vindo a identificar entre eles uma notável dissonância. Com efeito, o mergulho nos “desvãos” documentais lhe revelou a não-correspondência entre os nomes registrados nos dicionários, que atestavam a quase ausência de artistas brasileiras no período estudado, e os referidos catálogos, que bradavam a impressionante cifra de mais de duzentas expositoras. O acesso a tais fontes lhe facultou a elaboração de um “Campo das Mulheres”, formado por um contingente significativo de artistas do sexo feminino, que expuseram seus trabalhos e obtiveram algum tipo de reconhecimento nas artes plásticas. Tal empreitada deixa evidente que a “ausência” de artistas plásticas profissionais no entresséculos passava ao largo de sua inexistência de fato.

Com o intuito de iluminar os modos pelos quais os obstáculos à profissionalização artística foram enfrentados por “mulheres concretas“, que “conseguiram driblar tais impeditivos e se afirmarem como artistas no pleno sentido do termo” (p. 197), a autora dedica um dos capítulos a um conjunto emblemático de pintoras e escultoras, selecionado em função da densidade da documentação que sobre elas encontrou. São elas: Abigail de Andrade, Berthe Worms, Julieta de França, Nicolina Vaz de Assis Pinto do Couto e Georgina de Albuquerque. Aliás, o critério adotado pela pesquisadora para a escolha das artistas evidencia, por si só, se tratar apenas da “ponta de um iceberg”, i.e., de uma amostra, em meio a tantas outras trajetórias artísticas eclipsadas pelos registros historiográficos.

Para além das idiossincrasias que individualizam cada percurso analisado, todos eles convergem, ao traduzirem “formas surdas de transgressão” e de reação às impossibilitações concretas de profissionalização artística experimentadas pelas mulheres do entresséculos. Tais reconstruções evidenciam, paradigmaticamente, as incursões destas pintoras e escultoras no campo artístico como uma espécie de resposta às práticas culturais e ao ramerrão teórico de apelo cientificista embebido em correntes teóricas deterministas e positivistas então em voga, detidamente analisadas pela autora no capítulo inaugural, que apreendiam as mulheres como seres “essencialmente inferiores aos homens“. Simioni mostra que esta assimetria, ao se espraiar para o campo artístico, aparecia cristalizada em certo “rótulo de convenção”, mais propriamente em uma classificação que não apenas estabelecia uma hierarquia entre os artistas em função do sexo ao qual pertenciam mas, e sobretudo, situava as mulheres em uma posição desvantajosa neste “sistema de reputações“, arbitrariamente as desautorizando: trata-se da pecha de “amadora”, que “assombrava como um fantasma a produção artística das mulheres em sua totalidade” (p. 43), opondo-se frontalmente ao termo “profissional”, qualificativo este recorrentemente empregado para nomear os artistas do sexo masculino (p.37).

A simples menção de amadoras englobava vários significados: como o de que se tratava de pessoas sem um adequado conhecimento das regras do ofício, carentes de formação; além disso, acreditava-se que elas não buscavam na arte um modo de sustento, mas um simples passatempo. Evidentemente essa era uma categoria relacional, cujo uso presumia uma comparação, nem sempre explícita, mas sempre presente, com os artistas homens. Eles, os profissionais, detinham a formação adequada, o conhecimento suficiente, o respaldo institucional para, com as artes, exercerem o ofício de modo a conquistarem dinheiro, fama e glória. Para eles a arte era um empreendimento sério, uma profissão; para elas, um refinamento do espírito (p. 301).

Afigurando-se, pois, como uma “regalia” masculina, a profissionalização nas artes plásticas traduzia um processo marcadamente excludente, do qual inúmeras artistas foram deixadas de fora, seja porque tiveram suas obras inadvertidamente inscritas nos tímidos limites do amadorismo ou, o que dá no mesmo, rebaixadas à categoria de prática diletante. Neste espaço perpassado por categorias impregnadas pelas lógicas de gênero, às artistas não “agraciadas” com o epíteto de “excepcionais”, portanto, à grande e esmagadora maioria, era reservada como inescapável fortuna “a vala comum do esquecimento coletivo”.

Simioni ilustra muito bem esta situação, ao pôr em tela uma das mais contundentes barreiras com as quais as mulheres do período se deparavam ao objetivarem a profissionalização artística: o acesso às aulas de pintura a partir de modelo vivo que, no Brasil, apenas lhes foi autorizada em 1897 (embora tardia, esta data antecede o acesso feminino ao nu, se comparada às academias de arte européias). Sendo o domínio das representações do corpo humano exigência fundamental para uma formação consistente – em conformidade com os moldes academicistas – e, por conseguinte, para a obtenção de renome artístico, as mulheres que, durante séculos, foram alijadas desta modalidade essencial de conhecimento (vale dizer, por questões morais que recaíam sobre a pudicícia), encontraram-se não apenas em indiscutível desvantagem se comparadas a seus pares, como esteticamente desautorizadas. Tendo isto em vista, não é de se estranhar a exígua presença das mesmas em um espaço cujas formas de obtenção de prestígio apareciam atreladas às prerrogativas de gênero. Nas palavras da autora,

o acesso ao modelo vivo era absolutamente indispensável à formação de um artista acadêmico. A ênfase da discussão feminista em torno da exclusão do mundo artístico está, justamente, neste ponto: as artistas mulheres foram impedidas de conhecer e dominar, ao longo dos séculos XVIII e XIX, as principais etapas de formação do ‘gênio’ artístico na medida em que o acesso ao nu lhes foi vetado por ser considerado imoral. Afirmam as historiadoras que sem o controle dos meios de expressão simbólicos característicos daquele fazer artístico, as mulheres foram relegadas a toda sorte de pinturas vistas como ‘menores’, as quais não exigiam o completo domínio da representação do corpo humano e, também demandavam menos preparo físico e intelectual. De sorte que se montava um círculo vicioso: as artes menores passavam a ser vistas como adequadas às inábeis mulheres e, toda a arte feita por mulheres, era colocada entre aspas, rotulada como menor (p. 110).

Em linhas gerais, Profissão Artista nos brinda com uma rica e minuciosa exploração dos mais variados óbices que se impunham àquelas mulheres que almejavam fazer carreira no restrito “espaço dos possíveis” do universo acadêmico brasileiro, em um período duramente refratário à presença feminina. Em uma abordagem despida de qualquer ar triunfalista, o livro todo revela a preocupação da autora com a “arte produzida por mulheres”, sem ceder à tentação de enxergá-la pela lente reducionista e simplificadora de um “feminino universal” que, na análise, é substituído pela apreensão da “feminilidade” como discurso produzido social e historicamente. Neste processo de desmistificação de essencializações, nos são apresentados os mais diversos mecanismos por meio dos quais

as artistas acadêmicas permaneceram por muito tempo nas sombras e suas obras sofreram uma dupla desvalorização. Como muitas produções do período, inclusive as masculinas, padeceram das conseqüências do legado modernista, que com seu crivo impiedoso desmereceu tudo o que lhe era anterior, salvo o Barroco, cujas obras foram por eles alçadas como genuinamente nacionais. Além disso, por serem vistas em sua época como artistas “menores”, deixaram menos rastros do que os colegas masculinos bem-sucedidos; a pecha do amadorismo, essa invenção do século XIX, inibiu por muito tempo estudos sobre suas produções (p.303).

As discussões encaminhadas e também ilustradas por meio de trajetórias concretas evidenciam, para além das formas possíveis de superação da sina reservada às mulheres que aventuravam seguir carreira naqueles espaços tradicionalmente androcêntricos, a porção individual das “ousadias discretas” (p.287) por elas agenciadas, para que conseguissem subverter as posições desvantajosas em que se encontravam, tirando partido de adequadas conjugações entre “o nível educacional, a habilidade técnica, o capital social, as parcerias afetivas, a sagacidade pessoal” (p. 26), elementos capazes de lhes facultar maiores ou menores possibilidades de êxito no exercício da “profissão artista”.

Um trabalho de restituição de “ausências” como este não pode passar despercebido!

Michele Asmar Fanini – Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia – FFLCH – Universidade de São Paulo – USP – 05508-030 – São Paulo – SP – Brasil. E-mail: michele.fanini@usp.br.

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