Em 2017, o Brasil registrou 1.683.772 de mulheres professoras na rede básica de ensino, número que representa 81% do total de docentes.[1] A supremacia feminina no universo escolar brasileiro, no entanto, não se configurava regra no século XIX. Pelo contrário, em grande parte do Oitocentos, a profissão de professor era exercida majoritariamente por homens. A obra “Professoras Primárias: profissionalização e feminização do magistério capixaba (1845-1920)” traz esse debate percorrendo a história da inserção das mulheres no magistério na Província do Espírito Santo. O livro é a publicação da tese de doutoramento de Elda Alvarenga, defendida em 2018, no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo. Elda Alvarenga, semelhante as protagonistas de seu estudo, se dedica à educação. Professora do ensino superior e pesquisadora da História da Educação, a autora desenvolve estudos nas áreas de gênero, história e educação.
O livro em tela se desenvolve em torno de três eixos analíticos, tendo como referência a realidade histórica da Província do Espírito Santo. O primeiro elemento da análise constituiu a expansão do acesso à escolarização para ambos os sexos, efetivada, sobretudo, na segunda metade do Oitocentos. O segundo eixo da investigação se volta para as políticas públicas contemplando discussões sobre as principais reformas provinciais da época que buscaram reordenar a instrução elementar capixaba, com destaque para as Reformas Moniz Freire (1892) Gomes Cardim (1908). Por fim, o estudo focaliza sua análise sobre a atuação da Escola Normal (criada em 1869, como Instituto Feminino Secundário) no processo de ocupação feminina do magistério público e da sua posterior feminização.
A obra escapa de delimitações temporais tradicionais, geralmente determinadas por cronologias da história política, buscando acompanhar as particularidades do processo histórico-educativo. Dessa forma, o estudo inicia-se a partir de 1845, quando se inaugura, em Vitória, a primeira escola feminina de Primeiras Letras no Espírito Santo. A autora discorre até o ano de 1908, adentrando os anos iniciais da República, em razão da Reforma de Gomes Cardim, que promoveu alterações na instrução primária, consolidando o papel da educação na afirmação do novo regime político.
A autora argumenta que o ingresso das mulheres no magistério capixaba se vincula à expansão da instrução básica para ambos os sexos, à medida que, para atender aos padrões sociais do período e à carência geral de professores normalistas, as mulheres foram chamadas para exercer a docência das meninas. A argumentação é desenvolvida, sobretudo, no segundo capítulo intitulado “Instrução pública e magistério: percursos da docência na história da educação do Espírito Santo”. Nele, a autora reconstitui a inserção das mulheres no mercado de trabalho docente da província, como também acompanha o crescimento lento e gradual do número de escolas exclusivamente dedicadas ao ensino primário feminino.
Papel importante no campo legal para a conquista das mulheres ao direito à educação foi firmado pela Constituição de 1824 que, inseriu a instrução básica em artigo destinado ao tema da inviolabilidade dos direitos civis e políticos, marcando em um dos seus parágrafos a gratuidade da instrução primária a todos os cidadãos. A primeira lei sobre o assunto, no entanto, fora inaugurada em 15 de outubro de 1827. O dispositivo legislava sobre a organização do ensino primário público do Império, definindo a criação de escolas de primeiras letras em todas cidades e vilas mais populosas do país, incluindo a previsão de escolas de meninas com a docência exclusiva de mulheres. Apesar da definição legal, a primeira escola primária publica feminina no Espírito Santo fora criada por lei em 1835, mas com início de funcionamento apenas em 1845. A carência de professoras para atuar nessas classes constituiu, segundo a autora, na principal explicação para a demora na abertura da escola, configurando-se em uma preocupação política das principais autoridades da província.
Elda Alvarenga revela que escolarização das meninas além de tardia, em relação a dos meninos, caminhou em passos lentos durante a primeira metade do século XIX. O ingresso das mulheres na escola primária foi permeado por desafios, sendo um dos mais significativos a escassez de professoras para exercer a docência. A dificuldade de encontrar mulheres disponíveis aos postos escolares foi um dos motivos para que os seus salários fossem maiores que aqueles recebidos pelos professores homens. Tal dispositivo buscava atrair as poucas mulheres docentes da região, inclusive das províncias próximas, para atuarem no ensino feminino. A prática perdurou até o final do XIX, quando então, a profissão passou por modificações importantes, como a criação de Escolas Normais para a formação de mulheres na carreira docente, fator que impulsionou a oferta de profissionais do ensino e a seleção de professoras por concurso público.
Um dos pontos centrais do livro concentra-se no terceiro capitulo intitulado, “A educação e a escolarização republicanas: reformas do ensino e a inserção das mulheres no Magistério Primário no Espírito Santo”. Nele, a autora explora as políticas públicas, destacando as principais reformas no ensino primário realizadas entre o final do século XIX e primeira década do XX, que alteraram substancialmente o campo educacional. As mudanças na instrução feminina são observadas numa perspectiva de projeto nacional, no conjunto de mudanças políticas, sociais, econômicas e culturais ocorridas no Brasil no findar da Monarquia e início da República e, também, efeito da luta das próprias mulheres pela ampliação do direito à educação. Tais elementos contribuíram por modelar a profissão docente e o acesso feminino à escolarização, de acordo com o novo ideário de cidadania a ser exercida pelas mulheres. Ligada aos valores republicanos, a educação era percebida como elemento fundamental na formação do povo e do cidadão para a nova ordem social da República que se fundava, daí o incentivo pela sua expansão. Como consequência, o campo educacional foi marcado pela ampliação e consolidação do Curso Normal e a formação de elevado número de professoras que, paulatinamente, substituíram os homens no ensino primário.
A profissionalização das mulheres e, consequentemente, sua inserção em espaços públicos, ocorreu fundamentada em pensamento de parte da elite republicana capixaba que relacionava a necessidade de instrução para as mulheres a seu papel na formação das gerações futuras. Como mães, precisavam estar aptas para formar bons filhos, isto é, bons cidadãos. Fora portanto, a partir do papel ligado à maternidade e à família que começa a ganhar impulso o discurso acerca da valorização da instrução feminina no desenvolvimento da nação e da aptidão das mulheres para o exercício do magistério. Inicialmente, lócus de mulheres mais humildes, de poucas condições financeiras, a partir do século XX, o Curso Normal passou a atrair também mulheres representantes de setores sociais mais abastados, configurando-se uma das poucas oportunidades de prosseguimento aos estudos e de formação profissional do grupo feminino.
A obra, com efeito, se debruça sobre a história da profissão docente no Brasil, indicando o ponto de inflexão em que se percebeu a crescente presença feminina no exercício do trabalho docente no Espírito Santo. O foco regional, permite ao leitor compreender as especificidades da experiência capixaba no âmbito da profissionalização feminina e da participação das mulheres em espaços públicos. Em constante diálogo com a historiografia do tema, sobretudo estudos de especialistas da História da Educação no Espírito Santo, como os Professores Regina Helena Silva Simões e Sebastião Pimentel Franco, Elda Alvarenga tece importante contribuição para a historiografia ao dar visibilidade às mulheres, suas experiências e suas histórias. Ademais, colabora por revelar o início da trajetória das mulheres capixabas na e pela educação
Nota
1. CARVALHO, Maria Regina Viveiros. Perfil do Professor da Educação Básica. Relatos de Pesquisa. Brasília: Inep/MEC, 2018, p.18.
Referências
ALVARENGA, Elda. Professoras primárias: profissionalização e feminização do magistério capixaba (1845-1920). Vitória: Cousa, 2019.
CARVALHO, Maria Regina Viveiros. Perfil do Professor da Educação Básica. Relatos de Pesquisa. Brasília: Inep/MEC, 2018
Kátia Sausen da Motta – Doutora em História (UFES). Pesquisadora do Laboratório de História, Poder e Linguagens (UFES). Atua no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo como bolsista do Programa de Fixação de Doutores da Capes/Fapes, desenvolvendo pesquisa de pós-doutorado.
ALVARENGA, Elda. Professoras primárias: profissionalização e feminização do magistério capixaba (1845-1920). Vitória: Cousa, 2019. Resenha de: MOTTA, Kátia Sausen da. As Mulheres e o Magistério no Espírito Santo: O Início de uma história. Revista do Arquivo Público do Estado do Espirito Santo, Vitória, v.4, n.7, 2020. Acessar publicação original [DR]
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