Processos e condições de trabalho | Mundos do Trabalho | 2010

Ao idealizarmos o dossiê “Processos e condições de trabalho”, tivemos o objetivo de retomar o que se pode definir como um dos temas clássicos das pesquisas em História Social do Trabalho. Em meio à diversidade temática que tem caracterizado a recente produção acadêmica nessa área, as pesquisas a respeito da industrialização e, especificamente, sobre os processos e as relações de trabalho não deixaram de ser realizadas, mas talvez estejam ocupando cada vez menos a atenção dos pesquisadores.

Particularmente, tenho grande interesse pela análise dos processos, das relações e das condições de trabalho e aponto diferentes motivos que justificam a relevância de se continuar a pesquisar esse tema: em primeiro lugar, o fato de que a maioria das trabalhadoras e trabalhadores dedicou a maior parte de suas existências trabalhando e não militando em instituições classistas. Dessa maneira, conhecer em detalhes como eram suas lidas diárias me parece por si só um objeto relevante de pesquisa. Não obstante, não pretendo edificar uma barreira entre as pesquisas dedicadas à compreensão do trabalho, em suas variadas formas, e aquelas voltadas para o conhecimento e a interpretação da atuação política pública da classe trabalhadora. Minha intenção é afirmar que essa temática relaciona-se diretamente à proposta de uma História Social que busca compreender os múltiplos aspectos do processo de formação das classes trabalhadoras.

O estudo das experiências cotidianas de trabalho e suas transformações ao longo do tempo possibilita desconstruir generalizações que interpretam o processo de industrialização como ocorrendo sobre uma massa de homens e mulheres facilmente moldáveis ao bel prazer dos capitalistas. O chão de fábrica não é um mero local de fabricação de produtos, mas também um espaço político privilegiado para se interpretar os conflitos entre capital e trabalho. Como afirma E. P. Thompson, “nenhum trabalhador conhecido pelos historiadores permitiu jamais que a mais-valia lhe fosse arrancada do couro sem encontrar uma maneira de reagir (há muitas maneiras de ‘fazer cera’), e, paradoxalmente, por sua reação, as tendências foram desviadas e as ‘formas de desenvolvimento’ se processaram de maneiras inesperadas.” 1

Além disso, continua a ser um desafio explicar a aparente distância entre local de trabalho e associações de classe, assim como interpretar a complexa relação entre trabalhadores, militantes e líderes sindicais e políticos. Destaco ainda o fato de que as pesquisas a respeito dos processos de trabalho contribuem para se superar os riscos de se estabelecer relações automáticas entre o exercício de um determinado ofício e a atuação política. Em outras palavras, o estudo de diferentes categorias de trabalhadores e de suas experiências de trabalho possibilita relativizar afirmações que explicam a maior ou menor propensão para atuação política pública como resultado direto, quando não exclusivo, das atividades laborais que certas categorias profissionais exercem. Se as características do trabalho de determinadas ocupações são de grande importância para se compreender o ativismo político de alguns grupos de trabalhadores, elas não são suficientes para explicá-lo em sua totalidade.2

Alguns desses pontos levantados previamente serão discutidos, direta ou indiretamente, ao longo dos oito artigos que compõem o presente dossiê. Estes possibilitarão ao leitor a oportunidade de conhecer elementos do cotidiano e dos ambientes de trabalho de algumas categorias profissionais em locais e períodos distintos. O primeiro aspecto que chama a atenção é o fato de que, em conjunto, os textos não se restringem ao estudo do trabalho fabril. Os artigos abordam uma ampla gama de atividades: o trabalho no meio rural, nos sistemas de transporte de mercadorias e de pessoas e nas fábricas. Além disso, o dossiê apresenta análises empíricas e um ensaio historiográfico e teórico.

O primeiro texto, de autoria de Rana Behal, analisa as condições e as relações de trabalho nas plantações de chá na Índia entre os anos 1840 e 1940. Baseada num sistema de trabalho intensivo, a atividade alicerçava-se no emprego de um grande contingente de trabalhadores sob péssimas condições de trabalho. A desumanidade de tais relações começava com o processo de recrutamento da força de trabalho transportada por longas distâncias sob condições insalubres, o que resultava em altas taxas de mortalidade. Nas plantações, os trabalhadores eram submetidos a contratos de trabalho compulsório e a um sistema disciplinar que empregava diversas formas de coerção física. Como o fator trabalho era o principal componente dos custos de produção, a rentabilidade dos negócios era assegurada pela manutenção dos gastos com a mão de obra nos níveis mais baixos possíveis. Não obstante, o autor demonstra que esse sistema de trabalho foi incapaz de evitar o surgimento de formas de resistência e de mobilização dos trabalhadores, as quais obrigaram à revisão da legislação e ao reconhecimento de sindicatos.

Em seguida, temos cinco artigos que tratam do trabalho nos sistemas de transporte em navios, barcos, trens e bondes. Laura Caruso analisa o trabalho a bordo das embarcações no rio da Prata entre os anos 1890 e 1920. Dentre as contribuições trazidas pela autora, destaca-se a análise das transformações tecnológicas no sistema de transporte marítimo, as quais resultaram na redução do tempo de viagem, no aumento substancial da capacidade de transporte de carga e na redução da tripulação. Fugindo às armadilhas das falsas dicotomias, a autora interpreta esse processo como resultado tanto da concorrência intercapitalista quanto de uma ação política dos patrões com o objetivo de enfraquecer a organização sindical dos trabalhadores. Caruso demonstra ainda que, se por um lado, as mudanças técnicas, ao eliminar e simplificar tarefas, possibilitaram prescindir-se de certas qualificações laborais, por outro lado, criaram novos ofícios que exigiam alto grau de especialização. Ao final, a autora constata que a hierarquização existente entre oficiais e tripulação não inviabilizou a ação sindical conjunta contra o patronato.

O texto de Nágila Maia de Morais também trata do trabalho em embarcações, mas num contexto distinto. A autora analisa o dia a dia dos catraieiros, trabalhadores que realizavam os serviços de carga e descarga dos navios em pequenas embarcações, na Fortaleza do começo do século XX. Além de serem submetidos a uma rotina de trabalho irregular e a pagamentos incertos, esses trabalhadores sofriam fortes pressões por parte dos contratadores, que fiscalizavam seu trabalho e eram os intermediários entre eles e os proprietários das lanchas.

Outros três artigos abordam o trabalho em diferentes sistemas de transporte sobre trilhos. Robério Souza toma como principal fonte o regulamento de trabalho formulado pelo engenheiro Miguel de Teive e Argollo, em 1893, e imposto aos trabalhadores da Estrada de Ferro do São Francisco, na Bahia. Numa conjuntura de pós-abolição da escravidão, o regulamento inseria-se no processo mais amplo de disciplinarização dos trabalhadores durante a Primeira República. O autor evidencia a intenção de se forjar um trabalhador ordeiro e disciplinado. Os feitores e seu papel de garantir o cumprimento das ordens e das metas de trabalho merecem destaque na análise. Souza analisa ainda as principais características das seções de trabalho no mundo ferroviário e assinala a predominância dos trabalhadores afrodescendentes nos trabalhos braçais e mal remunerados.

Os artigos de João Marcelo Santos e o de Eduardo Oliveira Parente analisam diferentes elementos do trabalho nos bondes elétricos da companhia Light and Power no começo do século XX, o primeiro na cidade de São Paulo e o segundo em Fortaleza. Santos aponta que os bondes elétricos permitiram duplicar a velocidade de transporte em relação aos bondes movidos por tração animal, além de serem mais espaçosos. Portanto, assim como no caso analisado por Caruso, percebe-se que os incrementos e as transformações tecnológicas dinamizaram o sistema de transporte de pessoas e mercadorias, reduziram os tempos de deslocamento e possibilitaram aumentar a capacidade de carga. Destaco também no texto de Santos a constatação de que o trabalho dos motorneiros permitia-lhes internalizar um sentimento de imponência devido ao ofício que exerciam, visto que pilotavam um dos símbolos da modernidade. Ao mesmo tempo, diferentemente da maioria dos trabalhadores fabris, trabalhavam ao ar livre e exerciam um controle discreto sobre o próprio tempo de trabalho. Não obstante, estavam submetidos a longas jornadas de trabalho, às intempéries e aos constantes riscos de acidentes, pelos quais eram responsabilizados pela empresa e imprensa paulistana. Dessa maneira, apesar de possuírem uma posição importante na vida urbana, o autor afirma que a estigmatização dos operários dos bondes e os constantes conflitos com os passageiros inibiram a formação de alianças com as demais categorias profissionais nos momentos de lutas coletivas.

Por sua vez, Parente afirma que os trabalhadores do tráfego de bondes exerciam um trabalho que lhes possibilitava intenso contato com outros trabalhadores, o que teria sido fundamental para que se inserissem numa ampla teia de sociabilidade. Além de interpretar as principais características das greves da categoria em Fortaleza, nos anos de 1917, 1919 e 1925, o autor aborda as formas de gestão da força de trabalho, os mecanismos de dominação e a estrutura hierárquica da empresa. Além dos trabalhadores do tráfego, analisa as características do trabalho nos setores internos da companhia – usina e oficinas –, o que lhe possibilita concluir que, nesses setores, o maquinário não despojou os operários do controle que exerciam sobre o próprio ritmo de trabalho. Essa conclusão é fundamental para se relativizar as visões do processo de industrialização como um movimento uniforme que, inevitavelmente, transforma os trabalhadores em meros elementos acessórios ao maquinário. Como o leitor poderá constatar em diferentes textos desse dossiê, ao mesmo tempo em que o desenvolvimento industrial fragmentou ofícios, algumas ocupações continuaram a possibilitar aos trabalhadores um relativo controle sobre o próprio trabalho, além de terem sido criadas novas ocupações que exigiam capacidades laborais mais complexas do que o simples acionar de botões ou apertar de porcas e parafusos.

O papel exercido pelos engenheiros industriais merece destaque nas análises de Robério Sousa e de Eduardo Parente, pois estimula os pesquisadores na área de História Social do Trabalho a desenvolverem mais pesquisas que tomem esses sujeitos sociais como objeto de estudo e que busquem interpretar suas funções no desenvolvimento industrial, uma vez que, freqüentemente, eles protagonizaram ações e iniciativas de difusão de variados sistemas de controle e gestão do trabalho.

Em síntese, os seis primeiros textos comprovam que os estudos a respeito da formação da classe trabalhadora devem ir além das unidades fabris e incorporar distintas categorias profissionais, que compartilham com os operários de indústrias experiências comuns de exploração. Nesse sentido, alguns elementos se mostraram recorrentes nas experiências dos diferentes trabalhadores analisados: as longas jornadas de trabalho; os rígidos sistemas disciplinares, com o estabelecimento de normas e padrões de conduta, comumente fazendo-se uso do recurso às multas; e, em especial, as péssimas condições de trabalho a que eram submetidos.

O artigo de Evangelia Aravanis permite aprofundar a compreensão da vivência em comum das experiências de exploração. Ao analisar os processo de produção e as condições de trabalho nas indústrias do Rio Grande do Sul durante a Primeira República, a autora aborda diferentes temas, dentre os quais a diversidade das unidades produtivas, com pequenas oficinas convivendo ao lado de fábricas de maior porte; a diferença entre o trabalho dos artesãos e o dos operários fabris, o que também lhe possibilitou constatar que o “saber fazer” não foi suprimido sumária e definitivamente; a divisão sexual do trabalho; a utilização da categoria gênero enquanto uma construção social; o trabalho infantil; o poder aquisitivo dos trabalhadores; e as condições de trabalho. Em relação ao último tema, a realidade analisada por Aravanis lhe possibilitou retomar a metáfora das “fábricas satânicas”, caracterizadas pelo trabalho sob condições altamente insalubres e que expunham os operários ao risco de acidentes de trabalho que, não raro, resultaram em mutilações e mortes decorrentes de uma complexa conjunção de fatores.

O dossiê é encerrado com o ensaio de Leonardo Mello e Silva, que faz um estimulante balanço das contribuições da História do Trabalho para se discutir conceitoschaves como “taylorismo” e “fordismo” nas transformações dos sistemas produtivos no Brasil. Silva adota uma definição ampla de “fordismo”, considerado como um modo de regulação, e define o “taylorismo” como o elemento central para a organização do trabalho no regime de acumulação intensiva. Ao invés de estimular as oposições entre a Sociologia e a História, o autor aposta no diálogo entre as duas disciplinas e demonstra como ambas, com suas especificidades, podem contribuir para o estudo da classe trabalhadora.

Por fim, merece destaque nessa apresentação o detalhe do mural Indústria Norte de Detroit, pintado pelo mexicano Diego Rivera, escolhida para ilustrar a capa de nossa edição de número três. Dificilmente, conseguiríamos uma imagem que sintetizasse a diversidade de casos analisados nesse conjunto de textos. Assim, optamos por um dos principais símbolos dos processos de trabalho no século XX: a linha de montagem que, como afirma Huw Beynon, foi uma das mais poderosas imagens do século XX e “combinava ‘eficiência’ e ‘tédio’, as duas vigas-mestras da vida moderna.”3

Espero que os leitores apreciem os resultados dos nossos esforços e trabalho coletivo para a concretização de mais um número da revista do GT Mundos do Trabalho. Faço votos para que uma coletânea de tal qualidade estimule novas pesquisas dedicadas ao estudo dos processos e condições de trabalho e contribua para se aprofundar alguns dos questionamentos e problematizações levantadas ao longo dos textos. Termos tão difundidos e consagrados como “fordismo”, “taylorismo” e “toyotismo”, dentre outros, devem ser retomados e confrontados com análises empíricas do chão de fábrica. O estudo do cotidiano de trabalho demonstra que não se deve prescindir de conceitos como “luta de classes”, “trabalho” e “capital”, que não são meras categorias de um distante exercício epistemológico e sim traços evidentes do comprometimento intelectual que historiadores e cientistas sociais devem manter com o mundo em que vivem.

Notas

1 THOMPSON, E. P. A Miséria da teoria. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p.170.

2 Cito como exemplo uma categoria profissional sobre a qual tenho pesquisado ao longo dos últimos anos: os sapateiros. Eric Hobsbawm e Joan Scott, em instigante artigo, retrataram uma categoria conhecida pelo radicalismo político de seus profissionais. Os sapateiros europeus do final do século XVIII e início do XIX teriam se destacado pela ação militante em movimentos políticos de esquerda e como ideólogos do povo, distinguindo-se como intelectuais-operários, o que seria explicado em grande medida pelas especificidades do ofício que exerciam. Contudo, qualquer pesquisador que busque a reprodução automática das características apontadas pelos autores para os sapateiros de outras localidades e em períodos distintos, terá grandes frustrações. Se o ofício é de grande importância para se explicar a atuação política de certas categorias, ele não é suficiente. Cf. HOBSBAWM, Eric J.; SCOTT, Joan W. “Sapateiros Politizados”. In: HOBSBAWM, Eric J. Mundos do Trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001.

3 BEYNON, Huw. Trabalhando para Ford. Trabalhadores e sindicalistas na indústria automobilística. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p. 32.


Organizador

Vinícius de Rezende –  Doutorando em História Social pela UNICAMP.


Referências desta apresentação

REZENDE, Vinícius de. Apresentação.  Mundos do Trabalho. Florianópolis, v. 2, n. 3, p. 4-11, jan./jun. 2010. Acessar publicação original [DR}

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