Privilégios e imunidades diplomáticos | Sérgio Eduardo Moreira Lima || A imunidade de jurisdição e o Judiciário brasileiro | Márcio Garcia e Antenor Maragna Guimarães Lessa || A renúncia à imunidade de jurisdição pelo Estado brasileiro e o novo direito da imunidade de jurisdição | Antenor Pereira Madruga Filho
Durante o século XX, o direito diplomático experimentou mudanças substanciais, especialmente no que concerne aos privilégios e imunidades, que passaram a ser mais limitados, repercutindo diretamente sobre os agentes das missões diplomáticas e repartições consulares. A codificação das regras relativas às prerrogativas diplomáticas e consulares expressas na Convenção sobre Relações Diplomáticas de 1961 e na Convenção sobre Relações Consulares de 1963, ambas concluídas em Viena, possibilitou um tratamento mais uniforme sobre a matéria. Ademais, observou-se o papel da opinião pública internacional em demandar maior restrição às prerrogativas diplomáticas e consulares sempre que essas contrariassem o direito interno dos países acreditantes.
Essa evolução do costume para a codificação das normas de direito internacional tem tido efeito direto sobre os Poderes da União. No Legislativo, nota-se um movimento na elaboração de Immunity Acts, ou seja, leis que versam sobre os privilégios e imunidades dos agentes diplomáticos e consulares. No Executivo, observa-se o cuidado das Chancelarias em instruir as missões diplomáticas e repartições consulares em respeitar as jurisdições internas dos países acreditantes. No Judiciário, o Supremo Tribunal Federal, que manteve por décadas a posição de reconhecer a imunidade absoluta de jurisdição e de execução dos agentes diplomáticos, mudou sua postura no começo da década de 1990, também como conseqüência das inovações trazidas pela Constituição Federal de 1988, que teve impacto direto sobre as questões trabalhistas envolvendo os Estados acreditados e seus funcionários locais. Paralelamente, a distinção entre os chamados atos de império – ação em que o Estado age como entidade soberana e os atos de gestão – quando o Estado se equipara ao particular, em atos de natureza trabalhista ou comercial – contribuiu para a relativização de imunidade de jurisdição.
Privilégios e imunidades diplomáticos, de Sérgio E. Moreira Lima, é resultado do XXI Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco. O autor reúne décadas de experiência no Itamaraty, onde ingressou em 1971. A obra é composta de cinco capítulos, conclusão e, em anexo, as indigitadas Convenções de Viena de 1961 e de 1963. No primeiro capítulo, o autor sustenta sua tese principal, posicionando-se a favor de uma política restrita com vistas à preservação dos privilégios e imunidades diplomáticos. No segundo capítulo, expõe as bases históricas, o conceito, a evolução e o fundamento jurídico da imunidade diplomática. No terceiro capítulo, trata da imunidade em si, isto é, nos planos em que essa se manifesta, quais sejam, a inviolabilidade da missão diplomática e a imunidade de jurisdição do agente diplomático. No quarto capítulo, Moreira Lima demonstra, com uma variedade de casos práticos, as manifestações da imunidade nas diversas matérias jurisdicionais dentro do Brasil. No quinto capítulo, examina os instrumentos bilaterais e multilaterais que versam sobre o assunto. Na conclusão, volta a reforçar sua tese inicial, clamando pela adoção de uma posição mais restrita quanto às imunidades e às prerrogativas diplomáticas e oferece valiosas sugestões a serem apreciadas pelos Poderes da União com a finalidade de garantir o desempenho eficaz das missões no exterior.
A imunidade de jurisdição e o Judiciário brasileiro surgiu a partir da compilação feita por Márcio P. P. Garcia e Antenor P. Madruga Filho dos trabalhos apresentados durante a Jornada de Direito Internacional realizada em Brasília no ano de 2002. Cuida-se de obra que apresenta diferenças significativas entre os autores no que diz respeito ao tratamento do assunto. Em linhas gerais, tem-se o artigo de José F. Rezek que analisa a imunidade no âmbito das organizações internacionais e a dificuldade de existir uma imunidade generalizada para todas organizações devido à nítida desigualdade entre elas; Guido F. S. Soares faz uso da perspectiva histórica para explicar as origens e as justificativas do instituto da imunidade; Jorge Fontoura, em artigo polêmico, alega que “(…) o instituto continua incólume em sua funcionalidade, não argüido ou relativizado quanto sua procedência jurídica e utilidade política”; Márcio P. P. Garcia distingue conceitos fundamentais para o entendimento do tema como os de imunidade de jurisdição e de execução, os atos de império e de gestão e, ao final, expõe sugestões de como o Governo brasileiro poderia evitar contenciosos com os países acreditados em matéria trabalhista; Renato Cabanillas analisa a jurisprudência da Corte Suprema de Justiça argentina relativa à imunidade de jurisdição e execução; Carlos Eduardo Caputo Bastos e Antenor P. Madruga Filho identificam e comentam as questões que surgem do processamento da imunidade de jurisdição sob uma perspectiva brasileira; Nádia de Araújo aprofunda-se na jurisprudência do RE nº 222.368 do STF, em que o Ministro Celso de Mello distancia-se das ponderações tradicionais sobre do tema; Maria de Assis Calsing distingue a imunidade de jurisdição de Estado estrangeiro e das organizações internacionais em matéria trabalhista; José Ignácio B. de Mesquita e Enéas Bazzo Torres analisam as questões procedimentais das ações contra Estados e organizações internacionais; e, por último, o artigo de Antenor P. Madruga Filho aborda o desenvolvimento da imunidade de jurisdição dos Estados soberanos e expõe a inovadora teoria da fundamentação autônoma.
A renúncia à imunidade de jurisdição pelo Estado brasileiro e o novo direito da imunidade de jurisdição, de Antenor P. Madruga Filho, demonstra de maneira contundente o que o establishment jurídico brasileiro sempre costumava negar: a possibilidade de o Estado brasileiro renunciar à sua imunidade de jurisdição perante cortes estrangeiras. Para isso, o autor se embasou em uma extensa bibliografia sobre o tema, na prática do Estado brasileiro como parte em processos judiciais estrangeiros e nas legislações internas vinculadas ao assunto de alguns países. A obra é resultado de sua tese de doutorado em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo. Atualmente, Antenor Madruga é o Diretor do Departamento de Recuperação de Ativos Ilícitos do Ministério da Justiça.
O livro é dividido em quatro partes e dezesseis capítulos. Seguem anexas sete fontes jurídicas relacionadas ao tema, tais como as leis sobre imunidade dos Estados Unidos, Reino Unido, Austrália e Argentina e o Projeto de Convenção Internacional sobre Imunidades de Jurisdição dos Estados e de seus Bens.
Na primeira e na segunda parte examinam-se os conceitos de soberania e jurisdição e como o entendimento aprofundado destes permite utilizá-los como instrumentos para contestar certos princípios antes intocáveis, como o do par in parem non habet imperium (princípio da igualdade soberana). Quanto à jurisdição, destaca-se o Capítulo III do Título II, em que o autor atenta para a existência de dois tipos de espécies de imunidade de jurisdição: a imunidade de cognição – que diz respeito às atividades de dizer o direito – e a imunidade de execução – relacionada à execução da sentença. Na terceira parte, analisa-se o instituto da imunidade, seu desenvolvimento, a prática dos Estados e os casos não abrangidos pela imunidade. Demonstra-se também que, ao contrário do que muitos afirmam, o Supremo Tribunal Federal sói incorporar de imediato o direito internacional ao direito interno. Outro inovador subsídio científico de Antenor P. Madruga Filho é a formulação da teoria da fundamentação autônoma, uma resposta à tradicional (e insuficiente) fundamentação do princípio da igualdade soberana.Na quarta e última parte, examina-se com minúcia a questão da renúncia, preocupação central da obra. Os dois primeiros capítulos procuram demonstrar que o problema da impossibilidade de renúncia localiza-se apenas em parte das submissões do Estado brasileiro a jurisdições estrangeiras. No terceiro capítulo é demonstrada a possibilidade, sob a perspectiva do direito brasileiro, da renúncia à imunidade de jurisdição. A partir de exames de casos concretos, afirma-se que a renúncia à imunidade de jurisdição é efetivamente praticada pelo Estado brasileiro. Na conclusão, o autor inova ao sugerir linhas de pesquisa correlatas ao assunto para aqueles que desejam desenvolver dissertação de mestrado ou tese de doutorado.
Os trabalhos aqui brevemente examinados são visivelmente conexos devido à grande inter-relação temática. Afinal, como se poderia conceber a atuação diplomática sem a fundamentação teórica do instituto da imunidade? Portanto, vale destacar a relevância dessas obras, pois elas contemplam de forma plena todos os aspectos do instituto da imunidade, isto é, desde sua evolução histórica até sua manifestação prática no plano interno e internacional. Destaca-se, igualmente, a intimidade dos autores com o assunto, como pode-se comprovar pela abundância de casos práticos estudados e pelas úteis sugestões indicadas, que poderiam ser cuidadosamente avaliadas pelos órgãos competentes. O grande mérito dos autores é, sem dúvida, acender o debate quanto à temática das imunidades de jurisdição e contestar certas premissas que se encontravam acomodadas entre os juristas brasileiros.
Resenhista
Eduardo Maragna Guimarães Lessa
Referências desta Resenha
MOREIRA LIMA, Sérgio Eduardo. Privilégios e imunidades diplomáticos. Brasília: Instituto Rio Branco; Fundação Alexandre Gusmão, 2002. GARCIA, Márcio; MADRUGA FILHO, Antenor Pereira (Coords.). A imunidade de jurisdição e o Judiciário brasileiro. Brasília: CEDI, 2002. MADRUGA FILHO, Antenor Pereira. A renúncia à imunidade de jurisdição pelo Estado brasileiro e o novo direito da imunidade de jurisdição. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. Resenha de: LESSA, Eduardo Maragna Guimarães. Direito diplomático. Revista Brasileira de Política Internacional, v.46, n.2, 2003. Acessar publicação original [DR]