A Primavera Árabe reluziu em pedaços do céu de uma parte do planeta, acendendo um facho de luz sobre a necessidade de refletir o entusiasmo que causa nos espectadores (como aludia Immanuel Kant), nas multidões, nas classes desprezadas, e, por conta da própria presença das massas nos espaços públicos, o conforto e a simpatia que provocam a solidariedade humana. As sucessivas manifestações populares redundaram em transformações sociais, políticas e comportamentais, pondo abaixo longas tiranias que se consideravam eternas, acima do bem e do mal, e intangíveis, com sua aura de santidade. Caso exemplar do jovem engenheiro tunisiano, Mohamed Bouazizi, que foi destratado, humilhado, surrado, por armar sua barraca de frutas na praça, mera tentativa de garantir a sua sobrevivência, protestando, de modo radical, em carta destinada á sua mãe, dizia que a vida não seguira o fluxo sonhado por ela, o destino lhe escapara, o mundo caminhava em sentido contrário, para em seguida imolar-se, ateando fogo em seu próprio corpo, denunciando em plena praça pública o futuro ausente, a insensibilidade e atrocidades dos dominantes. Como um estopim de um arsenal de explosivos acumulados, um gigantesco protesto serial detonou uma ditadura de 24 anos. Ben Ali teve de fugir para evitar o pior. Eram fins de 2010 e inícios de 2011.
Na seqüência, após 30 anos, o ditador Hosni Mubarak é deposto no Egito, as manifestações se sucedem na Líbia, Iêmen, parte considerável do Magreb, convulsionando o mundo, revoltados os jovens, as mulheres e homens, de todas as idades, que se agruparam nas ruas como numa rede a culminar em praças públicas, sem temer a forte represália que poderia puni-los, não pelos deuses, mas pelos que, no poder, deveria representa-los.
As tiranias teriam que prestar contas com a Ágora, denunciados em seus privilégios, desmandos, torturas, aviltamentos, barbáries, sempre destinados aos mais pauperizados e excluídos, a fim de garantir seus privilégios e ganâncias para suas nobres famílias e também os mais próximos.
Uma das particularidades desses poderes é a fusão da condição de proprietário de indústrias com a de militar! Uma burguesia típica por sua condição social, mas também disposta no exército, na posse do exercício da repressão militar e como o sustentáculo da religião. Caso, por exemplo, do Egito. A sincronia dos protestos, não ficou nas redondezas do Magreb. Na Espanha, Los Indignados saíram vociferando sobre os políticos e seus interesses mesquinhos. Milhões foram lançados ao desemprego. Com a falência dos bancos, suas habitações hipotecadas foram simplesmente retiradas sem nenhuma devolução e acertos dos investimentos feitos. Em Portugal, com a recessão econômica, redução demográfica, baixa produtividade e a política de austeridade ditada pela troika, constituída pela Comissão Européia, o Banco Central Europeu (BCE) e o Fundo Monetário Internacional (FMI ) reduziu os salários e os níveis de emprego, abrindo a chancela para as multidões se revoltarem na terra de Saramago. Na Grécia, os jovens anarquistas, destemidos e raivosos, reviraram o mundo aparentemente solidificado e enfrentaram a polícia e o aparato repressivo do Estado nas ruas. Em Nova York, o movimento Occupy Wall Street deu lições da chamada “cidadania burguesa” denunciando e desnudando a irracionalidade do sistema do capital. Tudo que é sólido desmancha no ar!
Em 1848, em janeiro, ocorria na Lombardia uma revolta contra a ocupação estrangeira, austríaca. Também na Sardenha, nos Estados papais, e no reino de Nápoles, as revoltas se alastravam. Em fevereiro, a Monarquia de Luis Filipe, redentor dos banqueiros, era posta abaixo pela ocupação do Hotel de Ville. Em março, sucedia a revolta na Prússia, e, numa série impressionante, sempre em escala crescente, irrompiam motins em Viena, Budapeste, Saxônia, na Croácia, na Polônia, com os trabalhadores e estudantes na dianteira. O mundo europeu assistia á Primavera dos Povos. Para os conservadores, foi o “ano louco”! As classes proprietárias da cidade e do campo não tiveram dúvidas ante o levante operário e suas barricadas. Os massacres de junho, em Paris, foram a reposta armada contra as barricadas, a contrarrevolução armada até os dentes, com seu poderio bélico contra a ousadia popular de perspectivar um mundo novo. O aceno futuro da construção de uma nova sociedade socialista contagiada por bandeiras vermelhas balançadas nas ruas, prédios, palácios. Segundo Ferdinand Claudín, 1848 foi “A Revolução mais européia de toda história da Europa”. Para Marx, em seu Discurso no Aniversário do People’s Paper, no ano de 1856, as revoluções que se alastravam histórico e se multiplicaram de modo espontâneo, naquele período histórico, “proclamaram de forma ruidosa e ao mesmo tempo confusa, a emancipação do proletariado, esse segredo do século XIX e de sua revolução.” No século dezenove, os camponeses exigiam o fim das cobranças, impostos, cargas feudais. As revoltas populares davam seu troco, devolviam a fatura histórica.
De Paris, o canto do galo gaulês despertará uma vez mais a Europa! Mas, o que dizer quando, do continente africano, se estendendo por inteiro até a comunidade regida pelo euro, os efeitos da crise estrutural do capital que conduzem o primeiro mundo a vivenciar às mazelas do antigo terceiro mundo? Da Grécia até a Islândia, de Barcelona a Lisboa, da Praça Taksim a Roma – com o recente movimento I Forconi, as multidões passam a ocupar as praças públicas, denunciando os desmandos dos ditadores, a impotência e a morosidade da política parlamentar, o engodo dos grandes partidos dominantes que protelam as decisões que envolvem o sofrido cotidiano das camadas subalternas, dos camponeses, da juventude sem emprego, dos aposentados e dos funcionários públicos. O canibalismo da contrarrevolução ainda é a única resposta das classes dominantes? Por quais razões a humanidade se cala ante a matança de 3 mil pessoas no Paquistão, por drones, as armas voadoras invisíveis, que exterminam de modo indistinto, e que se sabe boa parte de crianças, a mando do Império de Obama?
Walter Benjamin escreveu, em 1925, sobre as armas do futuro. Anteviu os atuais sofisticados drones, bombas inteligentes e submarinos, armas invisíveis que nos atingem pelo céu, pelo mar e pela terra. No apogeu de progresso vaticinou: “A guerra vindoura terá um front espectral. Um front que será deslocado fantasmagoricamente ora para esta ora para aquela metrópole, para as ruas, diante da porta de cada uma de suas casas. Ademais, essa guerra, a guerra do gás que vem dos ares, representará um risco literalmente de ‘tirar o fôlego’, em que esse termo assumirá um sentido até agora desconhecido. Porque sua peculiaridade estratégica mais incisiva reside nisto: ser a forma mais pura e radical de guerra ofensiva.”1
Calcados em extensa historiografia e fontes documentais diversas e inéditas, os autores que compõem o presente volume tratam das diversas manifestações sociais que eclodiram pelo mundo todo, inaugurando um novo ciclo da Primavera dos Povos, a começar pelo mundo árabe. Alguns a situam no levante ocorrido na Tunísia em 2010, e rapidamente assolaram o norte da África e o Oriente Médio, varrendo o mundo árabe com desdobramentos na Península Árabe e no Golfo Pérsico, passando pela agitação na Argélia, Marrocos e principalmente na Líbia. Conforme um dos autores que os analisa neste volume, “Espalhou-se para o Iêmen, o Barein, a Jordânia e ecoou até a conservadora e puritana Arábia Saudita”. Manifestações nos países como Argélia, Jordânia e Marrocos, levaram os governantes a, rapidamente, realizar reformas políticas e concessões socioeconômicas.
As mais diversas interpretações são aventadas pelos analistas aqui presentes, mas alguns atributos parecem lhes ser comuns: a luta contra regimes e instituições dominantes, que vai desde a indignação contra a arrogância das forças imperialistas ocidentais e contra as evidências das articulações de poderes transnacionais que se articulam supra nações; o clamor por transformações não só políticas, mas também sociais e econômicas profundas que culminaram por evidenciar diferenças culturais arraigadas entre os contendores; o desencanto com líderes que nada apresentavam para alterar situações que expressassem a defesa de interesses nacionais; as evidências da corrupção; o aumento da desigualdade e da pobreza, assim como a indiferença ante o aumento da miséria.
Destacam ainda o pano de fundo que se revela na concentração e centralização do capital em escala planetária, que resulta no aumento geral da produtividade dada a automação generalizada do processo de trabalho, resultando na reestruturação ampla da vida social e na desocupação, também generalizada, da população economicamente ativa. Recuperando o conceito de Marx, destaca um dos autores nesta revista, trata-se da classe trabalhadora que se põe para este capitalismo como uma “população sobrante”, sobressalente, que não tem “utilidade imediata para o capital como produtor de mais valia em condições de produtividade média”, seja lá em que condições específicas se encontrem. Uma automação dos processos produtivos que expressam o conhecimento de ponta a que chegou a humanidade: a informática e a computação introduzidas no mundo do trabalho. Assim, a população sobrante reivindica participação nas relações de poder, na ampliação dos direitos de cidadania expressa a sua condição de exclusão não só do mundo do trabalho, mas do acesso á própria vida. De fato, a considerar os dados apresentados pelos autores no presente volume da Projeto História, o crescimento do “precariado”, isto é, “conjunto de trabalhadores jovens-adultos altamente escolarizados inseridos em relações de trabalho precário como falso trabalho independente (os falsos recibos verdes), os contratos a prazo e o trabalho temporário, revelam tal exclusão.
Assim, por exemplo, explicitam que, só na Europa, comparando dados de desemprego de 2012 com os do ano de 2013, observam uma tendência expressiva e preocupante: o desemprego aumentou em 1.673.000 na Europa dos 27 e em 1.644.000 na zona euro. “O que significa que o ‘presente puro’ não existe; ele é apenas ‘o passado consumindo o futuro’”, diz o autor citando Bérgson, ou ainda István Mészáros, para o qual a temporalidade do capital é uma “temporalidade decapitada”.
Mas, dialeticamente, a informatização une os mundos, e sob o signo dos novos meios de comunicação, as formas de manifestações inovam e se agilizam. A importância destes últimos também recebe destaque quase que unânime entre os autores aqui presentes e, conforme um deles é uma realidade que expressa imensas redes segmentadas, policêntricas, nem sempre integradas ideologicamente, mas que se “mantém latentes em períodos de baixo fluxo de informação e, graças á rapidez da comunicação por Internet, podem converter-se, sem complexidade organizativa, em forças eruptivas poderosas quando decidem atuar de forma articulada”. Nestas redes barreiras até há pouco intransponíveis são vencidas, como a das línguas, a do monopólio das comunicações, a da censura, coerção e poder aquisitivo. O acesso á comunicação aventou a real possibilidade de formas democráticas existirem e como que impulsionou mais uma vez, sua utopia. Ícones das comunicações, até há pouco inquestionáveis como a Press TV iraniana, ou a Russian TV, ou a CNN, BBC, passaram a ser objeto de questionamentos deixando suas afirmações de serem consideradas verdades absolutas e se tornando objeto de desconfiança.
Também os analistas oficiais do ocidente, assessores das decisões políticas, muitos dos quais se revelaram incapazes de entender a complexidade dos mundos orientais e asiáticos, por suas diferenças e variedades entre países, viram suas assertivas questionadas pelas ágeis comunicações entre os jovens. Ansiosos por esclarecimentos passaram a perguntar diretamente aos protagonistas dos levantes e vice-versa, flagrados pelos celulares os fatos quase que eram transmitidos concomitantemente, livres dos empecilhos das editorações e dos censores das empresas monopolistas da comunicação. “Twitter e Facebook eram usados para marcar protestos e trocar informações. Os celulares foram amplamente utilizados para capturar imagens dos protestos, das agressões e da ação dos militares. Logo, os vídeos eram postados em sites estrangeiros, sobretudo no Youtube.”
Neste movimento, análises que explicam a Cultura da Mídia, enfatizando a Convergência e a Inteligência Coletiva dela decorrentes, e que “associam seus produtos como mercadorias criadas para atender aos interesses de seus controladores – gigantescos conglomerados transnacionais” necessitaram rapidamente incorporar o processo desregionalizador e transfronteiriços do ciberespaço. Recuperando a citação de um analista presente nestas paginas, para Pierre Lévy a “principal conseqüência do desenvolvimento dessa nova cultura gerada através do ciberespaço (…) são os aspectos civilizatórios ligados ao desenvolvimento da multimídia”. Além dos exemplos acima, cumpre também um papel civilizador as charges cujas críticas atravessaram fronteiras e se uniram á denuncia das tiranias e arbitrariedades de toda ordem. Vai nesta direção a preocupação do autor em entender, por exemplo, o dialogo entre as “charges produzidas pelo brasileiro Carlos Latuff e o sírio Ali Ferzet” e como “ foram receptores de ideias, propagaram as causas políticas e mobilizaram pessoa”.
Mas um dos aspectos inéditos deste volume é a preocupação dos autores em situar estes diferentes levantes, assim como de outros que se estenderam a todo o mundo, no mesmo pano de fundo da crise mundial do capital, sua historicidade. Com tal intuito demonstram a preocupação em situar para o leitor que tais levantes e lutas não espocaram de um dia para o outro, a historicamente, mas buscaram suas raízes na historia de cada uma das especificidades tratadas.
Assim, por exemplo, destaca o autor como, no Egito, a Sociedade dos Irmãos Muçulmanos (SIM), movimento de massas caracterizado por forte apelo islâmico, (…) que se associou às causas populares, como a autodeterminação e valores tradicionais da sociedade egípcia, representados por uma elaboração particular do discurso religioso”, agia desde 1948, quando chegou a cerca de um milhão de membros distribuídos por todo o país. Esta organização acabou por catalisar o descontentamento popular nos anos de 2010, com o aumento da exclusão social, política e econômica. Demonstra ainda a heterogenidade do mundo muçulmano, tão pouco reconhecida no ocidente, pois enquanto o SIM aceitava desde os primórdios de sua organização, membros de todas as classes sociais, o Wafd, tido como o partido liberal, “era inteiramente dominado por membros da elite egípcia .
A incapacidade do presidente Morsi de concretizar as promessas de campanha de garantir “Pão, liberdade e justiça” ao povo, resultaram, segundo o analista, em que em um ano, o apoio de 13 milhões de eleitores se transformou em uma rejeição assinada por 22 milhões de pessoas, em 2011, muitas das quais concentradas na Praça Tahir.
A mundialização das lutas, levantes e sublevações contra governos opressores, ditadores, tiranos de toda espécie que expressam a transformação do ideal da democracia em uma utopia desvairada será analisada em continuidade no segundo e terceiro volumes desta coleção. Mas seria incompatível com a demonstração de que tais manifestações são expressão da mundialidade da crise do capital, se nos detivéssemos á Primavera Árabe.
A repressão aos trabalhadores rurais se mantém dramática na região do Araguaia. São grileiros, jagunços, pistoleiros, as forças policiais procurando reprimir as diversas lutas sociais na região. Como procurou-se demonstrar, a repressão ao camponês durante a guerrilha foi intensa, profunda e procurou destruir a base da sociabilidade camponesa. Queimar roças, expulsar os camponeses de suas casas, impedir que a sociabilidade camponesa se desenvolvesse e que os laços de solidariedade se fortalecessem foram formas repressivas utilizadas contra essa população ontem e hoje. A resistência desse segmento social, entretanto, manteve-se e se difundiu. Falar da guerrilha do Araguaia, para os camponeses, transformou-se na possibilidade de amplificar a divulgação de suas demandas e da dramática questão camponesa no Brasil.
As circunstâncias que moveram as greves operárias na década de 1980 se baseiam fundamentalmente em razões salariais e condições de trabalhos feridas diretamente pela política econômica da ditadura militar. As manifestações operárias denunciaram e tentaram combater a superexploração do trabalho, configurado na política salarial e no seu arrocho, motivo pelo qual adquire caráter político imediato. Por isso as greves precisam ser analisadas não como simples “aventura”, mas como um movimento que foi capaz de avançar no que tange aos temas assimilados e estratégias elaboradas.
Nota
1 BENJAMIN, Walter. O capitalismo como religião. Tradução Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013, p. 69.
Vera Lúcia Vieira
Antonio Rago Filho
VIEIRA, Vera Lúcia; FILHO RAGO, Antonio. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 46, 2013. Acessar publicação original [DR]
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