Ao iniciar minha graduação em história, deparei-me, pela primeira vez, com estudos que desmistificavam noções, ainda freqüentes nos compêndios e livros didáticos, sobre a organização social brasileira. Trabalho importante fora, sem dúvida, Relativizando, de Roberto DaMatta (Rio de Janeiro, Rocco, 1990), por seu caráter introdutório e iconoclasta, no que concerne às relações interétnicas vigentes. Com o tempo, o acesso a uma tradição sociológica, antropológica e histórica, que, há muito, já tinha posto em xeque as premissas de uma “democracia racial à brasileira”, me permitiu a visualização desta ideologia de longa duração e o seu isolamento como objeto de análise.
No item ‘Digressão: a fábula das três raças ou o problema do racismo à brasileira’ (idem, ibidem, pp. 58-85), DaMatta realça o caráter colonial brasileiro, profundamente marcado por um sistema hierarquizado, implementado pelo branco, português, e definidor de uma lógica jurídica, política e socialmente discriminatória. Apesar de substituído, no decorrer do processo de independência e de abolição, não apenas deixaria marcas ‘tradicionais’ na nossa cultura, como teria a sua continuidade confirmada por uma ideologia, que traduziria a supremacia do branco frente aos outros grupos étnicos, consubstanciando, assim, o “racismo à brasileira”.
Ao observar os fundamentos deste preconceito, o antropólogo inicia uma análise comparativa com o caso dos Estados Unidos da América. O esquema hierarquizado brasileiro, representado por um triângulo, é contraposto ao separatismo linear norte-americano, representado por linhas paralelas que não se entrecruzam. Sugere, como quadro explicativo para o gráfico brasileiro, uma categoria “clássica”, elaborada no início da década de 1950 por um sociólogo, até então desconhecida para mim; trata-se da denominação de “preconceito de marca”, como biótipo da especificidade do preconceito brasileiro. Esta foi a primeira referência que tive de Oracy Nogueira.
A princípio, apesar do interesse pela tipologia apresentada, não tive a oportunidade de contato direto com sua obra. Porém, o ‘tempo acadêmico’, lento, mas, sem dúvida, profícuo, reserva oportunidades, a longo prazo, agraciando o pesquisador, em algum momento oportuno, para saldar seus débitos com a bibliografia. No meu caso, esta oportunidade surgiu com o convite para resenhar a providencial reedição de Preconceito de marca: as relações raciais em Itapetininga, de Oracy Nogueira. Foi com certo temor, devido, talvez, a este débito de longo prazo, que aceitei esta tarefa, nada fácil, diga-se de passagem, por se tratar de trabalho reeditado e, a princípio, verificar o meu desconhecimento contextual das produções intelectuais contemporâneas, em sua versão original. Porém, aceito o desafio, notei que Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, em sua apresentação (pp. 9-25), o faz com brilhantismo, informando ao leitor o vínculo de Oracy Nogueira com Donald Pierson e, posteriormente, com as pesquisas fomentadas pela Organização Educacional, Científica e Cultural das Nações Unidas (Unesco), no decorrer da década de 1950, quando, então, intensificaria seu trabalho de campo, em Itapetininga, interior de São Paulo. Ressalta, por outro lado, a relativa autonomia intelectual de Nogueira e o processo que leva esta obra a permanecer fadada a um relativo ‘esquecimento’.
Sendo o histórico do autor e da obra apresentados pela antropóloga, fico mais à vontade para seguir os passos de Nogueira, e com ele mergulhar nas relações étnico-raciais verificadas em Itapetininga, escala microscópica, visando a compreensão da sutileza do preconceito racial brasileiro. O livro em questão é um estudo de comunidade que explora densamente uma sociedade complexa, em seu quadro histórico e sócio-antropológico. A correlação da ‘gota’ (Itapetininga) com o ‘oceano’ (o Brasil) se dá pelo caráter essencialmente experimental: se algumas tendências atuais, ao experimentar, no micro, optam por se desvincular de modelos de grande escala, Oracy Nogueira, ao contrário, visa a aplicabilidade concreta de uma tipologia já precedente na sua produção intelectual, voltada, em seus aspectos gerais, para a compreensão do macro, mas que deveria ser adaptada às especificidades do micro.
O caráter “experimental” de Preconceito de marca, originalmente um relatório que respondia à demanda dos estudos étnico raciais fomentados pela Unesco, é dado pela elaboração de um quadro teórico precedente na trajetória intelectual do sociólogo. Em ‘Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem: sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil’ (republicado em Tanto preto quanto branco: estudo de relações raciais, São Paulo, T. A. Queiroz, 1985, pp. 67-93), Nogueira sugere duas categorias-limite, porém não excludentes. Aponta o “preconceito de marca” em sociedades, cujas manifestações raciais estabelecidas estão relacionadas à aparência, tomando como pretexto os traços físicos do indivíduo, a fisionomia, os gestos, o sotaque; tal preconceito caracterizaria as relações raciais vigentes no Brasil. No outro extremo do espectro, estaria o “preconceito de origem”, em sociedades, cuja simples suposição de que o indivíduo descende de certo grupo étnico o impede de qualquer tipo de assimilação ao grupo discriminador; este tipo de preconceito demarcaria as relações raciais verificadas nos Estados Unidos da América. É notório que, no estudo da comunidade de Itapetininga, Nogueira “experimentaria” a categoria-limite de “preconceito de marca”.
A historicização deste preconceito é feita na primeira parte do livro, intitulada ‘O tempo da escravidão’. Nogueira desconstrói a “argamassa” étnico-racial, quase que mascarada pelo caráter supostamente “igualitário”, observada nos tempos contemporâneos. Verifica sua origem, no período em que as distinções entre negros e brancos eram jurídica e socialmente legítimas. Examinando documentação de natureza diversificada, o autor constata a coincidência entre as nuanças da cor da pele e as posições privilegiadas nas camadas sociais, desde a fundação da vila (fins do século XVIII) até fins do século XIX, quando decretado o fim da escravidão.
Nogueira fundamenta sua análise histórica em contingências relacionadas à “cultura luso-brasileira”, capaz de nortear referências ideológicas não apenas para os “brancos”, como para a extensa camada dos “não-brancos”. Ao se referir aos dois segmentos típicos do grupo discriminado, ou seja, os escravos e os mulatos livres, ressalta, em suas atitudes rumo à restrita probabilidade de mobilidade social, a introjeção das ideologias vigentes.
No caso dos escravos, denominados “negros” (no nível mais baixo de um vasto espectro classificatório), à medida que ocorresse a interiorização dos modos de pensar, sentir e agir da cultura luso-brasileira, neles se desenvolveria uma motivação própria de um ambiente social fortemente marcado por uma ideologia de mobilidade, o que se traduziria na busca da liberdade. É interessante assinalar a análise do autor para este primeiro passo da “gente de cor”, ao observar as atitudes dos escravos, que em nada coincidiam com a “docilidade” ou a “passividade”, tão difundidas pelas concepções tradicionais. Porém, tais ações de “rebeldia”, de “insatisfação” e de “inconformismo” visavam sempre a possibilidade de ingresso em uma “via de mobilidade”, que, fundada e limitada pela “cultura luso-brasileira”, pouco significaria em termos de ascensão conjunta do grupo.
No caso dos mulatos livres, a dupla introjeção da “ideologia de mobilidade” e da “ideologia de branqueamento” refletiria, na expectativa destes, a ascensão social, através do branqueamento, no decurso de gerações, pela repetida introdução de caracteres do grupo dominante. Porém, tal expectativa é operada mais como ideologia, pouco representando na vertente social concreta, visto que o restrito segmento de “brancos” privilegiados evitava, a qualquer custo, o cruzamento e a equiparação social com o mestiço. Isto significou, na prática, a cristalização de uma estratificação social segmentada, respaldada pelas atitudes “paternalistas” e “protecionistas” dos brancos e pela consagração do sistema cultural, fomentando uma relativa acomodação social entre os “não-brancos”.
A concepção histórica prepara o olhar sócio-antropológico; apesar da transformação de uma sociedade estamentária em uma sociedade teoricamente de classes, os dados demográficos e estatísticos examinados por Oracy Nogueira revelam as permanências catalisadas, em parte, pela reprodução de um preconceito racial, que destinava à grande maioria dos descendentes da “gente de cor” a calcificação em meio a uma grande massa de indivíduos e de famílias que não teria outra forma de garantir a própria subsistência senão o alugar o próprio trabalho ou vender o produto deste aos membros das camadas superiores. Ao correlacionar a ocupação sócio-profissional e os caracteres de cor dos indivíduos, o autor constata que a exclusão de elementos de cor é cada vez mais rigorosa, à medida que se vai da classe menos favorecida para a mais favorecida.
No decorrer do século XX, período examinado na segunda parte do livro (‘Preconceito racial de marca’), Nogueira verifica a predominância de brancos em todas as camadas sociais, mesmo nas classes populares, o que o levou a constatar que, embora a cor branca facilitasse a ascensão social, não a garantia por si mesma. Por outro lado, nota a presença, ainda que em proporções reduzidas, de “gente de cor” nas camadas média e superior, inclusive sendo legitimada perante o reconhecimento dos pares “brancos”, assim como dos “pretos” das classes subalternas. Conclui, então, o caráter específico da discriminação racial verificada, implicando, antes, uma “preterição social” do que uma “exclusão incondicional”. A idéia de preterição, em oposição à de exclusão, poderia remeter a uma hipótese explicativa de que tal preconceito estaria relacionado a uma estagmentação classista e não racial. Isto é recusado, em parte, pelo autor, ao alegar que, embora sejam visíveis esporádicos casos de ascensão social da “gente de cor”, tendendo a ocorrer, sem interrupção, desde a abolição da escravatura, não parecem ter propiciado, no decorrer das gerações, uma mudança no status coletivo do grupo.
É para refutar os defensores da supremacia de uma estrutura de classes, enquanto mola mestra da manutenção do imobilismo racial, que Nogueira faz uso de uma comparação do processo de mobilidade e de ascensão social no caso dos migrantes estrangeiros, chegados à cidade em inícios do século XX, e no caso dos negros e mulatos já arraigados por gerações. Constata a possibilidade destes migrantes ascenderem socialmente, a ponto de se colocar em pé de igualdade com os membros das “famílias tradicionais”, enquanto a “gente de cor”, apesar de inicialmente posta lado a lado (como classe), tendeu a permanecer imóvel na estrutura:
comparando-se a carreira dos imigrantes e seus descendentes, de um lado, e da população de cor, de outro, na sociedade local nas décadas decorridas desde a abolição da escravatura aos dias que passam, observa-se que a estrutura social, no que toca à estratificação em classes, apresentou o máximo de permeabilidade aos primeiros, dando-lhes, pelo menos, as mesmas oportunidades de ascensão social ensejadas aos descendentes dos antigos colonizadores portugueses e possibilitando-lhes, portanto, a sucessão a uma parte considerável; destes, nas classes dominantes e médica; e, ao mesmo tempo, apresentou, aos pardos e pretos, uma quase completa impermeabilidade, com sua conseqüente retenção na camada social menos favorecida (p. 182).
A tipologia precedente confirma-se, revelando os diversos itens conformadores do “preconceito de marca”, no caso de Itapetininga. Crianças “pretas” e crianças “brancas” aprendem sobre as contra-indicações dos traços negróides e, ao mesmo tempo, são instruídas a evitar qualquer menção a tais traços, efetivando a cordialidade entre os “iguais”:
Assim, a ideologia brasileira de relações inter-raciais, ao mesmo tempo que condena as manifestações ostensivas de preconceito e concita à miscigenação e ao igualitarismo racial, encobre uma forma sutil e sub-reptícia de preconceito, cujas manifestações e cuja intensidade se condicionam ao grau de visibilidade dos traços negróides e, portanto, à aparência racial ou fenótipo dos indivíduos. No mínimo, os traços negróides inspiram a mesma atitude e o mesmo sentimento de aversão e pesar que costumam produzir os “defeitos” ou deformações físicas (p. 199).
A comparação com o preconceito norte-americano baliza a sutileza do preconceito à Itapetininga (à brasileira): se, no primeiro caso, traços paralelos, sem cruzamento, excluiriam a “gente de cor”, mantendo os grupos impermeáveis um ao outro, no caso de Itapetininga (do brasileiro) o indivíduo permaneceria ao longo de um espectro continuum, refletindo uma classificação possível de intercruzamentos e incluindo uma série de categorias intermediárias. É no interior destas categorias intermediárias que se viabiliza, a um elemento mulato, tornar-se branco, apropriando-se, individualmente, de capitais simbólicos disponíveis, tais como grau de instrução, ocupação, aspecto estético, trato pessoal, dom artístico, traços de caráter etc.
O mergulho do autor não se encerra nas relações inter-raciais da ‘gota’. Reduzindo ainda mais a escala analítica, Nogueira penetra em algumas ‘moléculas’ representativas da comunidade. “As associações de ‘gente de cor’”, último capítulo da segunda parte do livro, é a redução máxima do comprometimento empírico e “experimental” do autor. De Itapetininga, Nogueira remete-se às corporações institucionalizadas da cidade, às irmandades religiosas e aos clubes recreativos, onde se manifestariam as diferenças de sociabilidade raciais, a reprodução de ideologias, de representações, de estereótipos, assim como algumas promissoras transformações contemporâneas, observadas nas atitudes da “gente de cor” em relação ao preconceito. Esta passagem é a radicalização da ponte analítica entre as diversas escalas sobrepostas ou contrapostas: das “moléculas da gota”, vez por outra, o autor se remete à “gota”, ao “oceano tropical”, definido sempre em oposição ao “outro oceano”.
Sem se deixar combalir pelo negativismo do preconceito verificado em Itapetininga, ou em suas ‘moléculas’ conformadoras, o que seria inevitável, sem a perspectiva comparativa com o caso norte-americano, o sociólogo verifica a probabilidade de uma gradual e eficaz transformação. Por parte da “gente de cor”, a apropriação estratégica da ideologia igualitária ofereceria recursos reivindicatórios para seus protestos, nas situações de preterição. Para tanto, contaria com a opinião pública, “propensa a se exaltar e a condenar as manifestações ostensivas de preconceito, especialmente quando estas revestem a forma não apenas de disfarçada preterição, porém de exclusão ou sonegação patente ou incondicional de direitos e, portanto, de desafio aos princípios tradicionais de justiça e eqüidade” (p. 202).
Por outro lado, visualiza a possibilidade de negociação social entre os grupos envolvidos, já que tal preconceito se apresentava baseado na solidariedade antiexclusivista, que tendia a não estigmatizar em blocos separados, opondo diretamente um segmento ao outro. O transcurso para a eliminação, no entanto, deveria passar pela educação dos grupos, divulgando informações objetivas sobre as diferenças raciais e culturais, evitando, a todo custo, o conflito vigente em outras sociedades (a referência é sempre à norte-americana), marcado por um antagonismo profundo, o que tornaria “inoperantes” os processos racionais de modificação de atitudes e de concepções, no que tange à esfera de relações raciais.
A reedição de Preconceito de marca é, sem dúvida, uma grande contribuição para historiadores comprometidos com as tendências recentes da micro-história. A passagem por escalas analíticas, sem perder de vista as correlações, o estudo denso de uma determinada cidade ou grupo social específico, embora suscetível de críticas, desafia as gerações atuais a recorrer a um debate já precedente na tradição sócio-antropológica (vale conferir a tese de doutoramento, defendida recentemente por Marcos Chor Maio, A história do projeto Unesco: estudos raciais e ciências sociais no Brasil, Rio de Janeiro, IUPERJ, 1997). Por outro lado, o recorte da questão racial brasileira, que vem atraindo inúmeros pesquisadores, convoca as novas gerações à retomada crítica da, talvez, mais importante obra de Oracy Nogueira.
Resenhista
Carlos Eduardo Calaça – Historiador pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Referências desta Resenha
NOGUEIRA, Oracy. Preconceito de marca: as relações raciais em Itapetininga. São Paulo: Edusp, 1998. Resenha de: CALAÇA, Carlos Eduardo. Entre Itapetininga e o Brasil: Oracy Nogueira e o estudo étnico-racial de uma comunidade. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.6, n.2, jul./out. 1999. Acessar publicação original [DR]
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