Prazeres dissidentes. – DÍAZ-BENÍTEZ; FIGARI (REF)
DÍAZ-BENÍTEZ, María Elvira; FIGARI, Carlos Eduardo (Orgs.). Prazeres dissidentes. Rio de Janeiro: Garamond, 2009. 600 p. Resenha de: NICHINIG, Claudia Regina. Entre a perversão e a dissidência: práticas sexuais, corpos e prazeres. Revista Estudos Feministas, vol. 18, no. 3, p. 943-945, setembro-dezembro – 2010.
Ao publicizar novas pesquisas sobre formas de sexualidade no Brasil, a partir de novos e velhos enfoques revisitados, Prazeres dissidentes demonstra a importância e a efervescência do campo. A coletânea lançada em setembro em Buenos Aires, em outubro em São Paulo e em novembro de 2009 no Rio de Janeiro é fruto do encontro de pesquisadores no Grupo de Trabalho “Corpos, desejos, prazeres e práticas sexuais ‘dissidentes’: paradigmas teóricos e etnográficos”, que aconteceu em Porto Alegre no ano de 2007, durante a VII Reunião de Antropologia do Mercosul (RAM).
Permeado por autores como Michel Foucault e Georges Bataille, considerados autores clássicos no estudo do erotismo e da sexualidade, e somadas as discussões teóricas levantadas por Judith Butler, principalmente no artigo de abertura da coletânea de Vitor Grunvald,1 que traz com propriedade a discussão acerca dos conceitos de abjeção, política da performatividade e lesbianidade, o livro se divide em quatro partes – “Corpos e interações de fronteira”, “Encontros ao avesso”, “Sociabilidades fluidas” e “Jogos proibidos” -, que revelam formas de sexualidade e busca de prazeres considerados marginais.
O livro traz a discussão das possibilidades de construção de identidades.2 Do ponto de vista metodológico, além das pesquisas etnográficas, em que é possível observar as práticas sexuais dissidentes tanto do sexo pago quanto do ocasional, observado em boates,3 clubes de mulheres,4 clubes para homens5 e zona de prostituição,6 por exemplo, há uma constante relação dessas pesquisas com aquelas realizadas na Web, em blogs,7 em comunidades do Orkut e no MSN, que se traduzem em riquíssimas fontes de pesquisa, as quais possibilitam perceber, através das falas dos próprios sujeitos, os discursos sobre a sexualidade, os encontros, as formas de identificação.
No eixo “Corpos e interações de fronteira”, os textos de Larissa Pelúcio,8 Leandro Oliveira,9 Marion Arent10 e Regina Coeli Machado Silva11 tratam das práticas sexuais marginais, proibidas e indesejáveis, que nas palavras de Larissa Pelúcio “arrebata[m] e angustia[m] tanto quanto dá[ão] prazer” (p. 91). Anna Paula Vencato12 trata de grupos de crossdressing, que, apesar de não serem homogêneos, poderiam ser definidos, segundo a autora, como pessoas que “eventualmente usam ou se produzem com roupas ou acessórios tidos como do ‘sexo oposto’ ao seu ‘sexo biológico'” (p. 95). Para as drag quens, esse ato de vestir-se significa “se montar”,13 o que geralmente permanece no âmbito do privado, do segredo.
No segundo eixo, “Encontros ao avesso”, a ideia que recorta os textos é, em parte, a expressão da sexualidade através de encontros, a observação das práticas sexuais em locais destinados à interação erótica e a possibilidade de diversas formas de prazer. Nesse bloco, foram agrupados textos que tratam das práticas sexuais ocasionais entre homens, em Camilo Albuquerque de Braz14 e Alexandre Eustáquio Teixeira.15 E sobre os artigos que discutem as relações sexuais com prostitutas, tem-se o de Elisiane Pasini,16 que estuda os homens no ambiente da prostituição na Vila Mimosa, na cidade do Rio de Janeiro, mormente os clientes, tema ainda pouco priorizado nas pesquisas sobre prostituição; e o de Sandra Maria Nascimento Sousa,17 que traz à luz a memória da prostituição feminina em São Luiz do Maranhão.
“Sociabilidades fluidas” é o título dado ao terceiro eixo do livro, que se inicia com o texto de Regina Facchini,18 que, através de observações etnográficas em locais de sociabilidade na cidade de São Paulo, analisa as mulheres que têm práticas eróticas com mulheres, observando as diversidades de experiências, corporalidades e subjetividades, percebendo as intersecções de cor/raça, geração, inserção socioeconômica e trajetória afetivo-sexual. Dando visibilidade às representações dos corpos e às relações no ciberespaço, Carolina Parreiras19 analisa os perfis do Orkut para pensar as sexualidades e as homossexualidades. Para observar os jogos de sedução entre lésbicas em duas boates do Rio de Janeiro, Andrea Lacombe20 faz uma pesquisa etnográfica, trazendo uma discussão necessária e importante acerca da presença e da corporalidade da pesquisadora e do pesquisador durante a pesquisa de campo. Finalizando esse bloco, o artigo da pesquisadora Isadora Lins França21 dá visibilidade aos locais de sociabilidade de homens que se relacionam com outros homens na cidade de São Paulo, suas permanências e mudanças, priorizando as práticas sexuais de um samba GLS frequentado por clientela formada principalmente por negros homossexuais.
O último grande eixo do livro traz como título “Jogos proibidos”, que trata de temáticas polêmicas e práticas sexuais consideradas repugnantes e abjetas. Inicia-se com o artigo de Carlos Eduardo Figari,22 que analisa as relações incestuosas hetero/homossexuais consentidas entre adultos, mostrando como o tabu do incesto23 gera culpas e sanções morais aos incestuosos/as, através de riquíssimos relatos dados por informantes ao pesquisador. Sob o manto da anormalidade e da criminalidade também está o artigo de Alessandro José de Oliveira,24 que discute a possibilidade de uma nova categoria de sujeitos sexuais, do pedófilo ao boylover, trazendo as discussões propostas pela teoria queer,25 através dos insights de Judith Butler, discutindo os sujeitos performáticos que rompem com as normas de gêneros. Outras práticas sexuais dissidentes são debatidas por Bruno Dallacort Zilli,26 como o BDSM (bondage, disciplina, dominação e submissão); por Jorge Leite Jr.,27 como a escatologia, o sexo com cigarros e o “abuso facial”; e por Estéban Andrés Garcia,28 como o barebacking, demonstrando o pânico moral que se instalou a partir da prática sexual realizada entre homossexuais sem preservativo, as quais compõem este eixo temático. Por último, o artigo de María Elvira Díaz-Benítez29 enfoca as práticas de orgias, através da observação da filmagem de uma orgia pornô que tem como temática o carnaval carioca, no qual a presença da pesquisadora nos sets lhe permitiu fazer constatações precisas, pouco prováveis de serem feitas por meio de relatos. Mostra como é marcante a presença do casal formado pela mulher loura e pelo homem negro, o que confirma a reiteração da vinculação entre gênero e raça como forma de transgressão.
O livro traz contribuições importantes para os/as pesquisadores/as que se propõem a aprofundar seus estudos sobre práticas sexuais não convencionais, trazendo os debates sobre a busca por normalização de algumas condutas, questionando a criminalização de outras. Outra questão que se impõe é a não utilização, pela maioria dos artigos, do arcabouço teórico trazido pela teoria queer, o que talvez esteja relacionado ao que Adriana Piscitelli afirma no prefácio desta obra: “percebíamos que algumas linhas dos estudos ‘queer’ ignoravam gênero, enquanto abordagens sobre heterossexualidades consideravam a articulação entre gênero e sexualidade, mas em uma perspectiva na qual o gênero aparecia frequentemente aprisionado em uma distinção binária”. Assim, Práticas dissidentes, através de seus autores e autoras, questionam a heteronormatividade obrigatória como lócus do sexo e do prazer permitidos, como já sinalizou Michel Foucault,30 que mostra como a sexualidade e o prazer foram gradativamente restritos ao quarto dos pais, objetivando a reprodução, mostrando como o que destoa dessa premissa passa a ser considerado anormal. Nesses artigos o prazer é o cerne nas práticas sexuais. Também se faz imprescindível para pensar novos objetos de pesquisa, mas também novas fontes, principalmente através de sites da Web.
Notas
1 “Butler, a abjeção e seu esgotamento”.
2 O artigo de Vitor Grunvald “Butler, a abjeção de seu esgotamento” trata, através da discussão sobre abjeção de Judith Butler, dos corpos abjetos e da constituição dos sujeitos. Já Camilo Albuquerque de Braz, em “Silêncio, suor e sexo: subjetividades e diferenças em clubes para homens”, mostra que gênero, classe, raça/cor, idade e estilo estão colados na produção discursiva das subjetividades e nos corpos dos frequentadores dos clubes de sua pesquisa.
3 Em “Diversidade sexual e trocas no mercado erótico: gênero, interação e subjetividade em uma boate na periferia do Rio de Janeiro”, Leandro Oliveira trata principalmente das relações entre homossexuais masculinas. E Andrea Lacombe, em “‘Tu é ruim de transa!’ ou como etnografar contextos de sedução lésbica em duas boates GLBT do subúrbio do Rio de Janeiro”, trata de relações entre mulheres lésbicas.
4 Em “Performances de gênero em um ‘clube de mulheres'”, de Marion Arent.
5 Em “Silêncio, suor e sexo: subjetividades e diferenças em clubes para homens”, de Camilo Albuquerque de Braz.
6 Em “Sexo com prostitutas: uma discussão sobre modelos de masculinos”, de Elisiane Pasini.
7 “Gozos ilegítimos: tesão, erotismo e culpa na relação sexual entre clientes e travestis que se prostituem”.
8 “Gozos ilegítimos: tesão, erotismo e culpa na relação sexual entre clientes e travestis que se prostituem”.
9 “Diversidade sexual e trocas no mercado erótico: gênero, interação e subjetividade em uma boate na periferia do Rio de Janeiro”.
10 “Performances de gênero em um ‘clube de mulheres'”.
11 “Relações impuras: sexualidade, corpos e sujeitos na literatura brasileira contemporânea”.
12 “Negociando desejos e fantasias: corpo, gênero, sexualidade e subjetividade em homens que praticam crossdressing“.
13 Segundo Anna Paula Vencato, trata-se “do termo ‘nativo’ que define o ato ou processo de travestir-se, (trans) vestir-se ou produzir-se” (p. 94).
14 “Silêncio, suor e sexo: subjetividades e diferenças em clubes para homens”.
15 “Discursos e representações sobre territórios de ‘pegação’ em Belo Horizonte”.
16 “Sexo com prostitutas: uma discussão sobre modelos de masculinos”.
17 “Desejo proibido: práticas da prostituição feminina”.
18 “Entrecruzando diferenças: mulheres e (homo)sexualidades na cidade de São Paulo”.
19 “Fora do armário… Dentro da tela: notas sobre avatares, (homo)sexualidades e erotismo a partir de uma comunidade virtual”.
20 “‘Tu é ruim de transa!’ ou como etnografar contextos de sedução lésbica em duas boates GLBT do subúrbio do Rio de Janeiro”.
21 “Na ponta do pé: quando o black, o samba e o GLS se cruzam em São Paulo”.
22 “No ventre do pai: desejos e práticas do incesto consentido”.
23 O autor faz menção ao trabalho de Lévi-Strauss, “que demonstra como ‘a regra do tabu do incesto’ é onipresente em todas as culturas, algo ‘constante em todos os homens’, o que lhe outorga seu caráter ‘universal'” (p. 431).
24 “De ‘pedófilo’ à ‘boylover’: ilusão ou uma nova categoria sexual que se anuncia?”.
25 Além de Judith Butler, a autora utiliza os aportes daquelas/es consideradas/os precursoras/es como Gayle Rubin e Michel Foucault, este último referenciado pela maioria dos pesquisadores desta coletânea.
26 “BDSM de A a Z: a despatologização através do consentimento nos ‘manuais’ da internet”.
27 “A pornografia ‘bizarra’ em três variações: a escatologia, o sexo com cigarros e o ‘abuso facial'”.
28 “Políticas e prazeres dos fluidos masculinos: barebacking, esportes de risco e terrorismo biológico”.
29 “Retratos de uma orgia: a efervescência do sexo no pornô”.
30 Segundo Michel Foucault (1984, p. 10), “No espaço social, como no coração de cada moradia, um único lugar da sexualidade reconhecida mais utilitário e fecundo: o quarto dos pais. Ao que sobra só resta encobrir-se: o decoro das atitudes esconde os corpos, a decência das palavras limpa os discursos. E se o estéril insiste, e se mostra demasiadamente, vira anormal: receberá este status e deverá pagar as sanções”.
Referência bibliográfica
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1984. [ Links ]
Claudia Regina Nichnig – Universidade Federal de Santa Catarina