Como iniciar uma pesquisa em História? Qual a diferença entre documento e fonte? O que é método? Qual enquadramento teórico-conceitual devemos utilizar na pesquisa? Como se define um recorte cronológico? E o recorte temático? Como chegar a um problema de pesquisa? Essas são algumas perguntas, entre muitas outras insondáveis, que todo(a) pesquisador(a) de História se faz no momento em que a realidade da pesquisa científica se avizinha. À tais dúvidas que assomam nossas mentes, e que constituem verdadeiros enigmas, a professora Tânia Regina de Luca procura responder em Práticas de Pesquisa em História.
O livro, cabe destacar, integra o projeto da Editora Contexto intitulado “História na Universidade”. O objetivo da coleção, que aborda períodos históricos que vão da Antiguidade à História Contemporânea, passando pela História da África e da Idade Média, entre outros, é divulgar pesquisas acadêmicas para um público amplo, ultrapassando os muros da universidade.
No caso da obra em questão, Luca expõe em seis capítulos – além da introdução e da conclusão – uma discussão complexa sobre a pesquisa em História, seus percursores, limites e diferenças atinentes às diversas propostas de pesquisa em história dos séculos XIX e XX. Para além dos enquadramentos teóricos-conceituais, a autora torna evidente, para o leitor leigo ou iniciado, algo que todos devemos ter em mente, logo de saída: a pesquisa em História não reconstitui o passado; ela trabalha com seus efeitos e sintomas. O passado é, no máximo, compreendido a partir de indícios.
O livro inicia com uma argumentação que podemos adjetivar como “canônica”, na medida em que recupera as linhas mestras do debate acerca do ofício do historiador e da confiança cega nas fontes, característico dos manuais do século XIX. Em seguida, a históriaproblema, do grupo dos Annales, é apontada como uma propositura de redefinição dos parâmetros e defesa da própria História como área de pesquisa.
De modo amplo, a obra aborda, de forma objetiva e assertiva, problemas como o tratamento das fontes, a definição do objeto de pesquisa, a redação do texto historiográfico, o detalhamento e as funções de cada seção do projeto de pesquisa. Todos esses elementos, é importante frisar, estão sustentados por obras de historiadoras e historiadores que se tornaram leitura basilar para a escrita da História nos últimos cem anos. Voltaremos a esses nomes logo mai.
Práticas de pesquisa dialoga com a sua época; como toda pesquisa em História, que responde a questões do presente olhando para o retrovisor. Assim, o que temos é uma discussão oportuna acerca de conceitos como “verdade”, “fato histórico”, “relativismo” e “negacionismo”. A redação e o encadeamento dos argumentos nada têm de gratuito. Ela coincide e dialoga com uma cena global de posturas e políticas públicas espúrias e retrógradas.
Feitas essas considerações sobre o escopo maior da obra, consideramos apropriado, para os fins em tela, um olhar com lupa.
No primeiro capítulo, Em busca do passado, a discussão se insinua em torno do método e do instrumental teórico. Luca, ao analisar os manuais de História do século XIX, destaca a crença e confiança nas fontes como reduto da verdade do passado. O estabelecimento de dados precisos e a aposta na hierarquização das fontes (entre primárias e secundárias) garantiria aos historiadores um lugar entre as ciências modernas e na unidade nacional. A preocupação do método positivo na identificação de falsificações, “caminhava no sentido de afastar o fantasioso, o incerto, e de assegurar a confiabilidade dos dados, em consonância com a crença de que estes eram passíveis de serem estabelecidos de forma precisa”.II Como sabemos, essa crença na fonte como espelho que refletiria um passado verdadeiro e em bloco caiu por terra no século XX. Marc Bloch e seus interlocutores, como Lucien Febvre, Fernand Braudel e, posteriormente, Jacques Le Goff, entre outros, são escalados pela autora como expoentes de uma crítica interna da área. Entre outras propostas, esse grupo discutiu elementos basais do positivismo e historicismo do XIX – como a certificação da procedência, a datação e autoria das fontes – de modo a evitar tanto a prática do anacronismo quanto a necessidade do estabelecimento de um objeto de pesquisa que refletisse as perguntas possíveis de serem feitas para determinado corpus documental.
Nesse percurso, a autora retoma sua tese já presente no título. Existe uma variedade de práticas de pesquisa possível de ser executada. Variedade essa que reflete o conjunto de perguntas e o estabelecimento de objetos, sempre diferenciados e concernentes à época e às realidades de quem pergunta.
Muito embora as práticas e as perguntas sejam da ordem do ilimitado, tal fato não significa uma terra sem limites. O “ofício do historiador” passa pelo desempenho de um papel ativo na construção de uma narrativa que não mais descreve eventos e personagens. Esse ofício não inventa verdades nem fontes, sustenta as dúvidas não respondidas. Tal caminho, aberto e incerto a um só tempo, é franqueado como saída para o historiador do século XXIII.
Dessa forma, apesar de extensa, a citação abaixo contempla melhor o ponto central do que queremos demonstra, Nem neutralidade absoluta, como as prescritas no século XIX, nem subjetividade radical, que impeça o historiador de ir além do seu próprio ponto de vista – eis o difícil equilíbrio a ser mantido em relação ao tema pesquisado, seja ele próximo, seja ele muito distante no tempo. Esse ponto é fundamental, pois se o passado é reconstruído (e não revivido ou resgatado), compreende-se que os resultados dependem das perguntas que lhe forem dirigidas e que estas, por sua vez, relacionam-se com o momento vivido pelo historiador, os interesses de sua época e também com o instrumental analítico que ele tem a sua disposição (grifos da autora).IV De fato, aqui, as bases para a pesquisa pautam-se em um reposicionamento do pesquisador. O denso primeiro capítulo do livro ainda discute conceitos como fato histórico, discurso historiográfico, historicidade. A redação, leve e precisa, articula, portanto, os andaimes da própria área de História, sem perder de vista a realidade prática a que atende o livro: a execução do projeto de pesquisa.
A esse capítulo, secunda Documentos: da certeza à construção. Aqui, a autora articula historiadores como o já citado Le Goff; além de Carlo Ginzburg e de historiadoras como Natalie Zemon Davis e Michelle Perrot, para pensar tanto a fonte como um produto quanto os novos enfoques da pesquisa histórica a partir dos anos 1960.
Novamente, a autora torna evidente o trato subjetivo, consciente ou inconsciente, do historiador para com os documentos tornados fontes, à medida em que são instrumentalizados para a pesquisa histórica. E, em paralelo, e estruturando a mesma relação, Luca também aponta, a partir de Le Goff, como os documentos são resultados de uma montagem coletiva, feita no passado e nas épocas que o sucederam até o presente. Com Ginzburg e a micro-história, as escalas de observação, os sinais, indícios e as pistas organizam o discurso historiográfico, aproximando-o da figura do detetive.
Tais interpretações, que pavimentaram o debate Ocidental, e foram lidos em cursos os mais diversos, na graduação e na pós-graduação, atentam para um diagnóstico preciso: a imposição de uma verdade imanente à fonte se tornaria pouco razoável. O que também, para desespero de muitos incautos, isso não significa relativismo histórico.
Para além dessa anatomia da corporação, que seguia em sua crítica interna do ofício, a autora também se pronuncia quanto à mudança de paradigma a partir dos anos 1960 e os compromissos éticos por ela disparados.
Nesses anos, a experiência cotidiana de trabalhadores, mulheres, bruxas, loucos, crianças e mendigos não só ofertou um cardápio de novos temas e objetos como obrigou a todos a fazerem novas escolhas. Segundo François Dosse, essa virada levou os historiadores a enfrentarem uma reviravolta metodológica que pôs em xeque, mais uma vez, mas em outros parâmetros, a cientificidade da História.
Nesses anos, as linhas de defesa foram cerradas em torno da incorporação de métodos e técnicas de pesquisa da Antropologia, “o preço a pagar por essa nova readaptação é o abandono dos grandes espaços econômicos braudelianos, o refluxo do social para o simbólico e para o cultural”.V Para Dosse, como para Luca, não parece ser o caso de fazer um ranking de prioridades entre cultural, social ou econômico. Ambos sustentam que as escolhas feitas, principalmente as de ordem cultural/simbólica, não implicam no abandono dos aspectos sociais e econômicos.
Tais discussões são enfrentadas sem receio pela autora ao longo dos dois primeiros capítulos somando praticamente a metade do livro. Tal divisão denota um investimento da autora muito evidente nos debates teórico-metodológicos dos últimos duzentos anos e convida o leitor a familiarizar-se com esse percurso antes mesmo de abrir qualquer conjunto documental.
Os dois capítulos seguintes, Da área ao objeto de pesquisa e Circunscrever as fontes alvejam, a um só tempo, dois alvos: a operacionalização prática dos programas teóricos discutidos no início do livro; e a escolha do tema e definição do problema de pesquisa. Vamos ao segundo alvo, tendo em vista que o primeiro foi debatido a contento.
A definição de um problema de pesquisa é, na definição de Luca, o primeiro problema de qualquer pesquisa. Exige leitura e apropriação da bibliografia especializada (relativa ao tema) e demanda uma série de outras escolhas feitas previamente, de forma consciente ou não.
Assim, a autora nos lembra daquela famosa frase que nós dizemos uns aos outros: “pesquise algo que você goste”. No entanto, a afinidade por determinado tema/assunto não tem nada de natural. Como bem apontou Michel Certeau, a quem a autora recorre, nossas escolhas são o resultado de uma série de subjetivações advindas do lugar social e institucional que ocupamos.
À tal “detalhe”, se soma a busca pelo problema interno ao tema/assunto. Esse problema diz respeito não somente ao conhecimento extenso da bibliografia sobre o assunto escolhido “ao gosto” do pesquisador, mas à sua mobilização em relação a documentos que se tornarão as suas fontes.
O caminho é sinuoso e exige paciência, sabemos. Assim, a imagem que a autora mobiliza para entendermos o percurso de pesquisa, sempre singular, é potente. Nessa figura, teríamos uma pirâmide invertida. Na parte de cima, no caso a base, estaria, por exemplo, o assunto “Brasil Republicano”. Na parte de baixo da pirâmide, no caso o topo invertido, estaria o objeto de pesquisa que, entre outros, poderia ser “a política cultural do Governo Vargas na revista Cultura Política”. Entre os dois extremos, teríamos o percurso das leituras acerca de outros temas que circundam e dialogam com o objeto da pesquisa.
Nesses dois capítulos, cabe frisar, fica evidente o papel ativo do pesquisador.
Entrementes às questões institucionais e sociais, a escolha do objeto é resultado de um investimento intelectual, “que embasa e justifica o recorte proposto e suas balizas espaçotemporais, daí a sua originalidade e caráter autoral”.VI Nos últimos dois capítulos, O texto historiográfico e Unir os fios e construir o projeto a autora se debruça sobre aspectos não menos importantes. Nesses, a narração histórica e o recorte cronológico, no caso do primeiro; e a definição/descrição das seções do projeto de pesquisa, no segundo, encerram o livro.
Em O texto historiográfico, a autora disserta sobre questões basilares da narrativa histórica e de sua diferença para com a narrativa de ficção. Aqui, o compromisso ético, as notas de rodapé, a publicização das fontes, a polifonia de temporalidades, as citações e a bibliografia funcionam como a fundação do prédio/texto. Para tal, o texto deve deixar claro para o leitor a escolha dos conceitos; o escopo argumentativo; a definição da periodização que nada tem de ocasional, mas que se refere às conexões dos eventos em foco; as possibilidades de sua averiguação; as fontes disponíveis e onde encontrá-las. Tal aparato denota uma diferença fundamental da narrativa histórica da ficcional.
Por último, em Unir os fios e construir o projeto, a autora aproxima sua discussão dos demais manuais da área, apontando as especificidades de cada seção do projeto de pesquisa, da escolha do título à metodologia mobilizada. A título de exemplo, na seção metodologia e fontes, o projeto é o momento de “apresentar considerações acerca de como esse material tem sido abordado pelos historiadores, suas potencialidades e limitações. (grifos da autora)”.VII Em síntese, a área de História recebe, certamente, não um manual que discorre sobre as etapas e os sentidos técnicos de um projeto de pesquisa – sem qualquer demérito para esse tipo de publicação, posto que o mercado oferta uma cesta variada desses produtos. Com Práticas de pesquisa em História, recebemos, todos, uma obra que estimula a reflexão crítica e fundamentada, tão presente em trabalhos anteriores da autora.
Elanos lembra de protocolos há muito pactuados e reatualizados, dos dois lados do Atlântico. Protocolos esses que, seguramente, não são assimilados em modo expresso, na velocidade e no imediatismo contemporâneos.
É nesse sentido que o livro aposta em “dois cavalos” que competem no mesmo turfe..
No primeiro, temos a atualização do debate teórico e de sua instrumentalização prática na redação dos projetos de pesquisa, tão cara a alunos e alunas em início de formação. No segundo, vemos a parcimônia (moeda rara) e a ciência histórica, tão fundamentais contra o negacionismo, travestido de patriotismo, cavalgar em outra raia. Que ambos vençam.
Notas I Professor adjunto na Universidade Estadual do Piauí – UESPI – Campus Parnaíba, onde ministra aulas no curso de licenciatura em História e no Mestrado Profissional em Ensino de História – PROFHISTÓRIA. É vice-líder do Laphic – Laboratório de Pesquisa em Política, História, Identidades, Cultura e Contemporaneidade, onde desenvolve e orienta pesquisas sobre a cultura no Brasil Republicano. E-mail: danilobezerra@phb.uespi.br.
II LUCA, 2020, p. 15 III BLOCH, 2001, p. 19, 52, 76 IV LUCA, 2020, p. 21 V DOSSE, 1992, p. 169 VI LUCA, 2020, p. 72 VII LUCA, 2020, p. 132 Referências BLOCH, Marc. Apologia da história ou O ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
DOSSE, François. A História em Migalhas. Dos Annales à Nova História. Campinas: Unicamp, 1992.
LUCA, Tania Regina de. Práticas de pesquisa em história. São Paulo: Contexto, 2020.
Resenhista
Danilo Alves Bezerra
Referências desta resenha
LUCA, Tania Regina de. Práticas de pesquisa em história. São Paulo: Contexto, 2020. Resenha de: BEZERRAQ, Danilo. Práticas de pesquisa em História. Boletim Historiar. São Cristóvão, v.9, n.1, jan./mar. 2022.
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