Power in the Village: Social Networks/ Honor and Justice among Immigrant Families from Italy to Brazil | Maíra I. Vendrame
O livro de Maíra Vendrame, agora publicado em inglês, é uma versão reduzida de sua tese de doutoramento em história defendida em 2013 na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. O estudo tem como fio condutor a trajetória do padre Antônio Sório, imigrante italiano que se instalou no núcleo colonial de Silveira Martins, Rio Grande do Sul, na década de 1880. Quase vinte anos depois, em 1900, o sacerdote faleceu em decorrência de um grave ferimento no “baixo ventre”. A “morte trágica” gerou várias versões explicativas na comunidade, as quais foram utilizadas por Vendrame como motivação para adentrar no universo camponês e investigar os costumes do grupo. Desse modo, a morte de Sório aparece como pretexto para pesquisar temas mais amplos, como a emigração da Itália, questões de honra familiar e práticas de justiça camponesas que podiam ou não se relacionar com a justiça do Estado.
As versões sobre a morte do padre são apresentadas já no primeiro capítulo, intitulado Versions of a tragedy. Na noite em que Sório ficou ferido, ele estava em uma das ruas do núcleo colonial, a cavalo, provavelmente retornando para casa. As explicações que circularam entre a população de Silveira Martins defendiam que o sacerdote teria sofrido uma queda do cavalo ou sido vítima de uma emboscada com motivações políticas ou vingativas. Aqueles que afirmavam que havia ocorrido um crime político, sustentavam como mandante a maçonaria, pois essa se encontrava presente na comunidade e travava um conflito de ideias com Sório, defensor e representante da Igreja Católica. Por outro lado, as pessoas que acreditavam em um crime de vingança, declaravam que o pároco havia desonrado uma jovem do lugar. Como não foi aberto um processo judicial para investigar o ocorrido, que talvez pudesse apontar para uma única explicação, os diferentes relatos registrados em entrevistas orais, publicações periódicas e de padres e imigrantes locais, oferecem um horizonte de possibilidades.
Nos capítulos seguintes, The trajectory of an “ambitious” peasant e On both sides of the Atlantic: Family strategies and migratory networks, são enfocadas as estratégias de deslocamento e adaptação dos imigrantes italianos que saíram do Vêneto e se estabeleceram nos núcleos coloniais do sul do Brasil. No primeiro, recebe atenção a trajetória de Paulo Bortoluzzi, um camponês da comuna de Piavon que, influenciado por um padre local, Solerti, liderou o grupo parental para fundar uma comunidade de imigrantes no Rio Grande do Sul. Bortoluzzi era um pequeno proprietário de terras, que vendeu os bens para imigrar para o sul do Brasil com a família, sendo uma de suas motivações para sair da Itália a vontade de propagar os valores cristãos. O imigrante se estabeleceu na região de Silveira Martins, e atuou como líder local, empenhando-se na organização da nova paróquia. A redução da escala de análise sobre indivíduos como Bortoluzzi mostrou que os primeiros grupos de emigrantes que partiram da região do Vêneto não eram miseráveis que estavam fugindo desordenadamente do processo de industrialização do campo. Eles emigravam porque podiam, eram pequenos proprietários que possuíam sólidas redes de apoio e um razoável capital em moeda.
No terceiro capítulo do livro, a autora traz uma visão mais complexa dos movimentos migratórios praticados pelos camponeses italianos. Esses, antes de existir a possibilidade de emigrar para o Brasil, já tinham o costume de se deslocar temporariamente dentro da Itália. Os deslocamentos sazonais faziam parte da estratégia de reprodução do modo de vida daqueles indivíduos que, em determinados períodos do ano, buscavam trabalho nas cidades e depois retornavam para suas casas. Tentar a vida do outro lado do Atlântico, portanto, era também uma maneira de manter o estilo de vida camponês que vinha apresentando obstáculos, uma vez que o Estado italiano recém-unificado havia criado novos impostos, bem como os patrões diminuíam a liberdade dos camponeses que não eram proprietários. Além disso, demonstra-se que a emigração podia ser ocasionada por vários motivos e não apenas por fatores econômicos de expulsão e atração.
No mesmo capítulo, são perseguidas as relações estabelecidas entre os dois lados do Atlântico principalmente através de correspondências trocadas entre familiares e amigos. As cartas auxiliaram na compreensão do funcionamento do processo de emigração, evidenciando que o deslocamento para o além-mar era um projeto familiar e coletivo, planejado com antecedência e que se dava em etapas, ou seja, os parentes não emigravam todos juntos de uma só vez. Para que tudo ocorresse com segurança, as pessoas buscavam se informar antes de efetuar a transferência, e aqueles que já estavam instalados nos núcleos coloniais convidavam os conterrâneos a emigrar, fazendo propaganda da facilidade em adquirir terras, da abundância de alimentos e da possibilidade de ter autonomia no Brasil. A reconstrução de redes sociais, a partir do método onomástico (GINZBURG; PONI, 1989), permitiu entender que essas eram de fato um patrimônio imaterial das famílias e indivíduos, constituindo redes de solidariedade e reciprocidade importantes para a autoproteção do grupo. Por meio da troca de cartas, as pessoas conseguiam manter os vínculos mesmo com a distância, e, assim, podiam planejar o deslocamento para se estabelecerem próximos aos parentes e amigos. Aqueles que tinham acesso a indivíduos que atuavam como mediadores, orientando a transferência, facilitando a viagem e reservando lotes de terra, possuíam vantagens e migravam com mais segurança.
A relevância das relações sociais também pode ser visualizada nos capítulos quarto e quinto, Networks of Compadrio e Don Antonio Sorio and his authority, respectivamente. Nestes, a figura principal volta a ser Antônio Sório e o poder que o pároco conseguiu adquirir em Silveira Martins. Após se tornar sacerdote no núcleo colonial, Sório passou a fazer uso de diferentes estratégias para fortalecer laços com as famílias locais. Através do apadrinhamento de diversas crianças da comunidade, o padre conseguiu inserir-se em redes de compadrio que lhe garantiram apoio nos momentos de necessidade, bem como lhe permitiram ter sucesso nos investimentos econômicos. Contudo, a sua verdadeira riqueza eram as redes sociais, possíveis de serem visualizadas, por exemplo, na participação do pároco como procurador no mercado de terras, intermediando transações entre os imigrantes, bem como nas redes de crédito em que estava inserido. Conquistou respeito e prestígio local exercendo liderança religiosa, se empenhando na construção da igreja matriz e novas capelas, auxiliando na fundação de sociedade de mútuo socorro e agindo como mediador entre as famílias imigrantes e as autoridades públicas e entre os imigrantes e o governo italiano, pois Sório era agente consular.
Nos dois últimos capítulos, Family matters: honor and reparation e Winds of vengeance, são acessadas as práticas de justiça entre os imigrantes. O interesse em investigar o tema foi motivado não para se chegar à verdade em relação à morte do padre Sório, mas em verificar se as versões da morte eram possíveis de ocorrer naquele contexto. A análise de inúmeros processos criminais, tanto de Silveira Martins como da região de Caxias do Sul, outro núcleo colonial com predominância de imigrantes italianos, mostrou as possibilidades de ação dos indivíduos pertencentes ao grupo quando se deparavam com situações de conflito e violência. A partir das declarações dos imigrantes nos processos, alcançou-se as normas que orientavam o comportamento das pessoas, assim como compreendeu-se que a aplicação de punições, perseguições e linchamentos eram práticas de justiça extrajudiciais utilizadas e legitimadas pelo grupo. Esses hábitos também faziam parte do cotidiano de povos mediterrânicos já no período moderno, evidenciando que os imigrantes trouxeram junto a cultura de origem. Percebeu-se ainda que os imigrantes italianos recorriam à justiça do Estado brasileiro somente em último caso, pois, antes, eles buscavam resolver os conflitos por meio das próprias concepções de justiça.
Ao lermos o livro, temos a impressão de que o mesmo aborda temáticas diversas atinentes a um contexto específico, Silveira Martins, nas últimas décadas do século XIX e início do XX. Isso se deve ao método do recorte horizontal (VENDRAME; KARSBURG, 2016) empregado sobre uma variedade de fundos documentais, analisados exaustivamente, que permitiu levar em consideração aspectos sociais, políticos, culturais e econômicos que faziam parte da vida dos imigrantes italianos e que regiam seus costumes. Essa estratégia de pesquisa, assim como muitas outras utilizadas no trabalho de Vendrame, está vinculada à micro-história italiana, principalmente às ideias de Edoardo Grendi, quando o autor defende uma abordagem holística sobre as fontes históricas, inspirado na antropologia (GRENDI, 2009[1977]).
Combinada ao recorte horizontal, a reconstrução de trajetórias e redes sociais facilitou a apreensão das possibilidades de ação dos indivíduos que se encontravam diante de situações semelhantes, como no caso dos agentes de emigração italianos (padres e camponeses), dos sujeitos que participavam do mercado da terra ou no momento de solucionar conflitos. Mostrando mais de uma experiência, ou seja, indo além das atuações da família Sório e de Paulo Bortoluzzi, por exemplo, a autora conseguiu colocar em relevo mecanismos de comportamento social invisíveis aos modelos estruturais (MÍGUEZ, 1995). A ideia não é defender que existem indivíduos representativos do grupo, mas mostrar as brechas e espaços abertos pelas incoerências do sistema (LEVI, 2002).
A conexão estabelecida entre Brasil e Itália demonstra a aproximação da pesquisa com perspectivas do que tem sido chamado pela historiografia de “micro-história global” (TRIVELLATO, 2011). A imigração por si só já é um tema amplo que facilita investigações que pensem a ligação entre lugares e culturas diferentes. Deste modo, seguir sujeitos e grupos que circularam por locais distintos é uma forma de aproximar tradições micro-históricas e correntes da história global. Nesse sentido, o que podemos visualizar em Power in the Village é um trabalho de fôlego em arquivos italianos e brasileiros que permitiu conectar os dois lados do Atlântico.
Por fim, a redução da escala de análise – ora sobre sujeitos, ora sobre lugares – e o cruzamento de fontes diversas, permitiram colocar à prova interpretações historiográficas sobre a imigração, ou seja, a microanálise possibilitou a visualização de aspectos impossíveis de serem percebidos em escala mais ampla, de modo a complexificar o estudo. Em primeiro lugar, as sociedades coloniais apresentadas como homogêneas, tranquilas, submissas às instituições e imóveis aparecem na pesquisa de Vendrame permeadas por conflitos, tensões, solidariedades e iniciativas autônomas, onde crimes de vingança eram uma alternativa possível para reparar atentados à honra de um indivíduo ou de uma família. Em segundo lugar, nem todos os emigrantes eram miseráveis, muitos possuíam propriedades e uma rede de apoio e informações que garantiam um deslocamento mais seguro. Essas são algumas das contribuições presentes no livro agora publicado em inglês pela prestigiosa editora anglo-americana Routledge, pertencente ao grupo Taylor & Francis.
Referências
GINZBURG, C.; PONI, C. O nome e o como: troca desigual e mercado historiográfico. In: GINZBURG, C.; CASTELNUOVO, E.; PONI, C. (Org.). A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Difel. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 1989, pp. 165-178.
GRENDI, E. Microanálise e história social. In: OLIVEIRA, M. R. de; ALMEIDA, C. M. C. de (Orgs.). Exercícios de micro-história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009, pp. 19-38.
LEVI, G. Usos da biografia. In: AMADO, J.; FERREIRA, M. de M. (Orgs.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002, pp. 167-182.
MÍGUEZ, E. Microhistoria, redes sociales e historia de las migraciones: ideas sugestivas y fuentes parcas. In: BJERG, M.; OTERO, H. (Comp.). Inmigracion y redes sociales en la Argentina Moderna. Tandil: CEMA – IEHS, 1995, pp. 23-33.
TRIVELLATO, F. Is There a Future for Italian Microhistory in the Age of Global History? California Italian Studies, v. 2, n. 1, 2011.
VENDRAME, M. I. Power in the Village: Social Networks, Honor and Justice among Immigrant Families from Italy to Brazil. 1ª ed. London, UK; New York, NY: Routledge/Taylor & Francis Group, 2020. 248p.
VENDRAME, M. I.; KARSBURG, A. Investigação e formalização na perspectiva da Micro-História. In: VENDRAME, M. I.; KARSBURG, A.; MOREIRA, P. R. S. (Org.). Ensaios de micro-história: trajetória e imigração. São Leopoldo: Oikos; Editora Unisinos, 2016, pp. 86-113.
Resenhista
Júlia Leite Gregory – Doutoranda e Mestra em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Bolsista PROSUC/CAPES. E-mail: jlgregory@universo.univates.br ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8955-7822
Referências desta Resenha
VENDRAME, Maíra I. Power in the Village: Social Networks, Honor and Justice among Immigrant Families from Italy to Brazil. London, UK; New York, NY: Routledge; Taylor & Francis Group, 2020. Resenha de: GREGORY, Júlia Leite. Imigração, crime e justiça. Projeto História. São Paulo, v. 71, p. 400-406, mai./ago. 2021. Acessar publicação original [DR]