A Revista Brasileira do Caribe, sob a direção atual da professora Isabel Ibarra Cabrera, historiadora da Universidade Federal do Maranhão que já organizou vários fascículos e se encontra vinculada à Revista desde sua fundação, conta também com o apoio da fundadora e diretora anterior de longos anos, professora Olga Cabrera. A Revista está fortemente comprometida com o projeto de desenvolver os estudos do Caribe no Brasil vinculados também com outras culturas e com suas matrizes africanas.
Foi-me uma grande honra receber convite da professora Isabel Ibarra para colaborar na organização de um dossiê que abrangesse, entre outros temas, artigos que tratam da questão indígena na região do Caribe. Ao abordar povos indígenas no Caribe, resolvi incluir artigos que versam sobre alguns povos indígenas contemporâneos em toda a região do Maciço Guianense do norte da América do Sul, região de maior concentração dos povos indígenas que pertencem à família linguística Caribe, incluindo, também, o litoral norte da América do Sul, as ilhas do Caribe e a região Circum-Caribe mexicana. Além de povos indígenas da família linguística Caribe, essa região também abarca outros povos indígenas da família linguística aruaque, alguns povos da família tupi e outros povos de famílias linguísticas menores. Em uma tentativa de caracterizar ospovos de línguas caribe da América do Sul na década de 1970, Ellen Basso (1977) separa oito características que julga serem tipicamente caribes, relacionadas, em parte, a fatores ecológicos. Entretanto, esses traços são encontrados em muitas sociedades indígenas, revelando que diferenças linguísticas não coincidem necessariamente com diferenças socioculturais. Focalizando os povos indígenas do maciço guianense, Peter Rivière (2001 [1984]), na década seguinte, desenvolve uma teoria a partir de um estudo comparativo da organização social ameríndia,
de que os povos da região guianense representariam, ao serem comparados com os povos de línguas jê e os povos do Alto Rio Negro, a cultura das Terras Baixas da América do Sul em sua forma mais simples de todas as possibilidades, referindo-se a possibilidades lógicas, e não como a origem da cultura. Segundo esse autor a economia política das sociedades indígenas da região guianense preocupa-se com o gerenciamento das capacidades produtivas e reprodutivas dos indivíduos, homens e mulheres, sobretudo das mulheres que constituem um recurso escasso. A partir de estudos realizados por pesquisadores do seu grupo de pesquisa centrado na Universidade de São Paulo, sobre os sistemas indígenas multilocalizados de comunicação e intercâmbio na região das Guianas, Dominique Gallois (2005) implode qualquer tentativa de fazer um recorte étnico dos povos indígenas dessa região por ser inadequado para explicar essas sociedades indígenas,ressaltando a importância de estudos da história. Em trabalho publicado no mesmo volume organizado por Gallois, a pesquisadora Denise Fajardo Grupioni (2005) questiona a caracterização típica feita por Rivière e propõe, a partir de uma abordagem que leva em consideração o espaço e o tempo, em que “abertura e fechamento, dispersão e isolamento, exogamia e endogamia, descendência e aliança não se excluem, mas se opõem de forma complementar (2005, p.50)”. Enquanto crescer o número e a qualidade das pesquisas etnológicas com povos indígenas nas Guianas, revela-se uma enorme diversidade sociocultural entre os povos dessa região, e histórias particulares e regionais do contato interétnico entre povos indígenas e as sociedades nacionais, em que as pesquisas sobre temas diversos se complementam. A obra de Nádia Farage (1991) sobre a colonização do rio Branco apresenta uma rica história dos povos indígenas da região guianense, como também o livro de Paulo Santilli (1994) sobre as fronteiras da República do Brasil, e a obra de Niel Whitehead (1988) sobre a história dos povos caribes na Venezuela e na Guiana em tempos coloniais.
O dossiê “Povos Indígenas no Caribe contemporâneo” inclui seis artigos sobre povos indígenas atuais e cinco artigos históricos e literários.
O primeiro artigo, “Dispersão e Concentração Indígena nas Fronteiras das Guianas: análise do caso kaxuyana” de autoria do professor Ruben Caixeta de Queiroz da Universidade Federal de Minas Gerais junto com Luisa Gonçalves Girardi, aborda o povo indígena kaxuyana que habita um tributário direito do médio rio Trombetas, localizado na porção brasileira da Amazônia Setentrional. No final dos anos 1960, esse povo, assolado por doenças trazidas pelas frentes de colonização, dividiu-se, uma parte mudando para o rio Paru de Oeste, outra parte para o rio Nhamundá. Por meio de casamentos com índios Tiriyó no Paru de Oeste, e com os índios Hixkaryana no Nhamundá, a população kaxuyana voltou a crescer, e após quatro décadas separadas, estas duas frentes voltaram a se reunir no seu lugar de habitação tradicional, onde fundaram duas aldeias próximas e distantes ao mesmo tempo para garantir a boa relação dos grupos.
O artigo seguinte, “A Vontade de Saber – a escola e o mundo das profissões entre os Ye’kuana”, escrito por Karenina Vieira Andrade, professora do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais, trata da busca da educação superior por parte do povo indígena Ye’kuana, cujas terras se localizam na fronteira entre o noroeste do estado de Roraima no Brasil e os estados de Bolívar e Amazonas no sul da Venezuela. Na mitologia ye’kuana, Wanaadi, o demiurgo ye’kuana, criou, dentre outras coisas, o papel e a escrita para enganar o anti-herói Odo’sha. Nos últimos anos os Ye’kuana têm se envolvido em um processo acelerado pela formação dos
primeiros professores ye’kuana na licenciatura intercultural do Instituto Insikiran da Universidade Federal de Roraima, e de repensar a escola indígena. Apesar da sua história violenta de contato com a população não-indígena, os Ye’kuana buscam se reinventar novamente por meio da profissionalização no mundo dos brancos, mantendo sua própria cultura.
O terceiro artigo, “Una montaña bañada por el mar: La Sierra Nevada de Santa Marta en el Caribe Colombiano” de autoria de José Arenas Gómez, aluno de Pós-Graduação do Departamento de Antropologia da UnB, aborda a Sierra Nevada de Santa Marta no litoral Caribe da Colômbia, região onde, conforme ressalta esse autor, os estudos
que se têm realizado nos diferentes campos do conhecimento não parecem transcender as fronteiras físicas da zona, e em decorrência disso muitos dos elementos mais interessantes dos grupos ijka, kággaba, viwa y kankuamo, seus habitantes indígenas, são desconhecidos no âmbito acadêmico internacional. O autor analisa aspectos destas comunidades indígenas com o objetivo de abrir possibilidades de diálogo tanto com as zonas vizinhas quanto com outras regiões geograficamente distantes como a Amazônia, que compartilham elementos etnológicos.
O quarto artigo do dossiê, “Estratégia de Aumento de Valência: A Construção Causativa em Waimiri Atroari (Carib do Norte)” da antropóloga e linguista Dra. Ana Carla Bruno, pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – INPA/CSAS propõe descrever e analisar alguns aspectos da morfologia verbal concentrando-se em algumas questões comoa estratégia de aumento de valência e a construção causativa na língua waimiri-atroari. Os Waimiri Atroari, povo indígena que habita o norte do estado do Amazonas e sul de Roraima, no Brasil, em comum com outras línguas da família Carib, falam uma língua cuja estrutura do verbo é basicamente prefixo-raiz sufixo. A análise linguística revela que os prefixos, nesta língua, usualmente marcam a pessoa e os sufixos marcam tempo/aspecto/ modo, negação, nominalização e mudança de valência através do processo de causativização.
O quinto artigo “Os povos indígenas Wapichana e Makuxi na fronteira Brasil-Guiana, região do Maciço Guianense”, de autoria de Stephen G. Baines, professor do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília e pesquisador do CNPq, aborda as estratégias narrativas entre os Makuxi e Wapichana que vivem ao longo da fronteira internacional entre o Brasil e a Guiana de se reafirmarem etnicamente a partir da crescente consolidação do movimento indígena desde a década de 1970 até o momento. A história indígena é acionada por lideranças dentro do contexto dos Estados nacionais como uma apropriação do passado para fortalecer as identidades indígenas em lutas políticas atuais. Os discursos dos Makuxi e dos Wapichana, cujos territórios tradicionais foram divididos pela fronteira internacional em 1904, revelam as contradições e as ambiguidades dos discursos governamentais dos respectivos Estados nacionais a respeito de nacionalidade e etnicidade.
O sexto artigo “Migraciones mayas y yucatecas a Cuba; notas etnográficas”, escrito pela antropóloga Victoria Novelo O. do Centro de Investigaciones y Estudios Superiores en Antropología Social (CIESAS), México, versa sobre os Yucatecos que, desde
o início da colonização do México participaram de um processo migratório à Ilha de Cuba. Segundo a autora, os maias foram, na maioria dos casos, levados pela força à Cuba colonial para servir como trabalhadores domésticos e da construção. No séculoXIX foram enviados como prisioneiros feitos durante o conflito conhecido como “guerra de castas” em Yucatán e vendidos como escravos. No século XX os migrantes são mais variados, incluindo diaristas e operários, políticos, professionais, artesãos, músicos, artistas, sacerdotes e outros. A migração yucateca e mexicana ao longo dos séculos deixou uma herança cultural visível na cultura popular cubana.
O sétimo artigo, em Artigos históricos e literários, “La apuesta por el “Guano” en Puerto Rico: exploraciones científicas, desempeño empresarial y mercado internacional”, escrito pelos professores María Teresa Cortés Závala e José Alfredo Uribe Salas da Universidad Michoacana de San Nicolás de Hidalgo, México, trata da história do “guano” das ilhas caribenhas de Mona e Monito que, a partir da metade do século XIX, havia penetrado no imaginário científico e popular de Espanha como a panaceia para potenciar a produção agrícola e diversificar seus cultivos, e como uma saída à crise do açúcar nos domínios espanhóis de Cuba e Puerto Rico. O crescimento de demanda levou o governo da Espanha a financiar expedições nas ilhas Mona e Monito, no Caribe, com a finalidade de determinar seu valor no mercado. O resultado revelou que se tratava de um mineral com rico conteúdo de cal-fosfato A exploração do minério utilizou mão de obra barata das ilhas de Guadalupe e Bahamas, e deixou pouco para a economia local, até que nos anos de 1920 e 1930 o crescimento da indústria química tornou sua extração obsoleta.
O oitavo artigo, “Uma janela sobre o Haiti: estórias andantes de uma blanc no Caribe” escrito por Pâmela Marconatto Marques, da Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, propõe uma estética híbrida: é testemunho de viagem atravessado por elaborações poéticas de uma brasileira em sua “viagem de descobrimento” ao Haiti. Conforme a autora, se a estética é ambígua, a ética do trabalho, entretanto, é uma e bem definida: “contar” um Haiti pouco conhecido dos brasileiros, sendo mais complexo e mais humano.
O nono artigo, “A Guiana Francesa, entre o pós-colonialismo e a afirmação nacional” de autoria de Charles Benedito Gemaque Souza, pesquisador do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos/UFPA, aborda a Guiana Francesa, região administrativa da França metropolitana no litoral norte da América do Sul, sociedade etnicamente diversificada que abarca todas as contradições do pós-colonialismo. O modelo estatal francês universalista e integracionista não tolera as diferenças seja aquelas trazidas pelos imigrantes ou originárias dos povos indígenas, e o processo de descolonização reproduz as velhas políticas de dominação colonial.
O décimo artigo desse dossiê, “Notas historiográficas sobre la elección presidencial de Tomás Estrada Palma y el establecimiento de la República cubana, 1902”, escrito pela pesquisadora María del Rosario Rodríguez Díaz, do Instituto de Investigaciones Históricas, da Universidad Michoacana de San Nicolás de Hidalgo, objetiva mostrar as tendências gerais da historiografia cubana referente às diferentes discussões que a primeira eleição presidencial na Ilha provocou na narrativa histórica cubana em datas recentes. A autora focaliza textos de dois acadêmicos cubanos, Ana Cairo e Yoel Cordoví, ambos representantes ambos do mais atual da historiografia em torno ao estabelecimento da República em Maio de 1902.
O décimo primeiro e último artigo, escrito pelo professor Amailton Magno Azevedo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, intitulado “Gilberto Gil e Caetano Veloso: ser jovem nos alegres tristes trópicos” visa à identificação e à reconstrução de rastros de um modo de juventude no Brasil a partir das trajetórias musicais de Gilberto Gil e Caetano Veloso nos anos 1960 ao início dos anos 1980. O autor enfatiza que, com as obras desses dois artistas musicais, surgiu a construção de uma nova experiência juvenil no Brasil que moldou uma estética de ser e estar no mundo.
O dossiê apresenta uma variedade de temas, todos versando sobre a região Caribe tomado em sentido amplo. Espera-se que este dossiê apresenta uma contribuição para os estudos dessa região.
Referências
BASSO, Ellen B. Introduction: The status of Carib ethnography, p. 9-22, In: BASSO, Ellen B. (org.). Carib-Speaking Indians: Culture, Society and Language. Anthropological Papers of the University of Arizona nº 28, Tucson: The University of Arizona Press, 1977.
FARAGE, Nádia. As Muralhas do Sertão: os povos indígenas no rio Branco e a colonização. Rio de Janeiro: Paz e Terra; ANPOCS, 1991.
GALLOIS, Dominique Tilkin. Introdução: percursos de uma pesquisa temática. In: GALLOIS, Dominique Tilkin (org.) Redes de relações nas Guianas. São Paulo: Associação Editorial Humanitas: Fapesp, 2005, p. 6-22.
GRUPIONI, Denise Fajardo. Capítulo 1 Tempo e espaço na Guiana indígena. In:
GALLOIS, Dominique Tilkin (org.) Redes de relações nas Guianas. São Paulo: Associação Editorial Humanitas: Fapesp, 2005, p. 23-57.
RIVIÈRE, Peter. O Indivíduo e a Sociedade na Guiana: um estudo comparativo da organização social ameríndia. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001 [Cambridge University Press, 1984].
SANTILLI, Paulo. As Fronteiras da República: história e política entre os Makuxi no vale do rio Branco. São Paulo: NHII – USP; FAPESP, 1994.
WHITEHEAD, Niel. Lords of the tiger spirit: a history of the Caribs in colonial Venezuela and Guya na, 1498-1820. Dordrecht, Holland; Providence, U.S.A.: Foris Publications, 1988.
Stephen G. Baines – Professor Associado 3, Departamento de Antropologia, UnB; Pesquisador 1A do CNPq.
BAINES, Stephen Grant. Povos indígenas no Caribe contemporâneo. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.13, n.25, p.7-14, jul./dez. 2012. Acessar publicação original. [IF].
Décima sexta edição. Esta edição foi publicada em 2023 visando o ajuste de publicações em…
Décima sétima edição. Esta edição foi publicada em 2023 visando o ajuste de publicações em…
Vigésima segunda edição. N.03. 2023 Edição 2023.3 Publicado: 2023-12-19 Artigos Científicos Notas sobre o curso de…
Publicado: 2024-06-19 Artigo original A rota dos nórdicos à USPnotas sobre O comércio varegue e o…
Quem conta a história da UFS, de certa forma, recria a instituição. Seus professores e…
Publicado: 2023-06-30 Edição completa Edição Completa PDF Expediente Expediente 000-006 PDF Editorial História & Ensino 007-009…
This website uses cookies.