Dossiês temáticos sobre os povos indígenas na História em revistas acadêmicas têm se tornado cada vez mais frequentes nos últimos anos. No mínimo, isso já demarca dois aspectos a se destacar, a fim de medir o impacto desta produção. O primeiro, ao considerar a quantidade de autores e autoras que compõem esta historiografia, evidencia que há trabalhos e pesquisas sendo desenvolvidas de maneira suficiente para tornar estes dossiês factíveis. O segundo, que complementa o primeiro, se dá através da demanda por este material, revelando um interesse por parte da academia e do público leitor em conhecer tal produção, apropriando-se do conhecimento gerado.
Há alguns anos atrás, a temática indígena entrou na fila dos temas elencados pelos então editores da Revista Faces da História para figurar como um dos dossiês que seriam feitos no futuro. Naquela ocasião, eu fui uma das pessoas chamadas para auxiliar na organização do mesmo. Alguns anos se passaram, finalmente chegou a vez deste Dossiê vir à luz e o produto final é este que os leitores agora têm acesso. Agradeço às colegas que em alguma fase deste processo dividiram a tarefa comigo, as professoras Mariana Albuquerque Dantas e Ana Raquel Portugal. Cabe outro destaque aos atuais editores da Revista, especialmente Benedito Inácio Ribeiro Junior, editor deste Dossiê, que de uma maneira heroicamente profissional tornaram esta edição possível. Lembrando que esta é uma revista criada e administrada por pós-graduandos da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Programa de Pós-Graduação em História de Assis, o que denota a seriedade com que estes historiadores, que são ao mesmo tempo profissionais e estudantes, dedicam-se ao seu ofício e à tarefa de manter esta revista de História existindo e resistindo, com muita qualidade.
Poucas linhas acima falei em termos quantitativos sobre a produção aqui refletida. Desde os autores e autoras dos artigos que submeteram suas pesquisas a este Dossiê, aos pareceristas mobilizados para avaliarem os mesmos, tivemos um universo de mais de 200 profissionais na área de história indígena, ou estudiosos com pesquisas que envolvem os povos indígenas, colocados para dialogar. Profissionais que expressam uma gama diversa de origens, formações e filiações teóricas. Destaco a fecundidade dos diálogos indiretos, por meio de pareceres anônimos emitidos por renomados historiadores e antropólogos no Brasil e no exterior, que puderam ajudar os autores a burilarem seus textos até chegarem no formato que agora vêm a público. Agradeço a todos e todas pela confiança e paciência que depositaram na revista e nos organizadores do Dossiê. O que torna o empenho de todos ainda mais excepcional, é que isso aconteceu em meio a um cenário pandêmico, algo que não podia deixar de ser mencionado.
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A pandemia do novo coronavírus, causador da COVID-19, não pode ser ignorada aqui, já que alterou a vida da maior parte da humanidade. Foi dentro deste cenário de doença, mortes, medo, isolamento social, cancelamento de inúmeras atividades cotidianas, desemprego e desabastecimento que este Dossiê foi produzido. Diante disso, a situação das populações indígenas é hoje particularmente mais dramática, não bastassem as ameaças cotidianas que enfrentam, com o atual presidente do Brasil e seus gabinetes manifestando publicamente uma postura anti-indígena e genocida. O mesmo governo que desdenha do impacto da doença sobre o Brasil.
As lutas dos povos indígenas do Brasil no cenário da pandemia dão-se em várias frentes. De um lado, garantir que o acesso à saúde pública e universal, conforme garante a Constituição Federal de 1988, chegue às aldeias e comunidades e que os indígenas possam ser atendidos nos hospitais, caso necessitem de cuidados especiais e leitos para internação. Diante de um sistema público de saúde colapsado, o atendimento às populações marginalizadas, como os indígenas, torna-se ainda mais dramático e mais de 200 indígenas morreram por conta do COVID-19 nos últimos três meses.
Feito este adendo importante em relação à realidade que aflige todos nós, é importante frisar que, para os indígenas, as disputas não se dão somente na esfera humana, pois enxergam que “natureza e cultura são parte de um mesmo campo sociocósmico”. (VIVEIROS DE CASTRO, 1992, p. 124). Assim, as questões que se referem ao corpo, às doenças, aos fenômenos da natureza, aos modos indígenas de ler e se relacionar com o mundo, podem nos fazer rememorar uma passagem célebre de um cronista colonial. Descrevendo as relações entre espanhóis e indígenas, Nicolas Oviedo contou uma passagem curiosa em que os indígenas queriam compreender que tipo de criatura seriam os invasores espanhóis, acreditando que somente sua imortalidade poderia explicar tantas vitórias contra os povos nativos da América. Assim, na ilha de San Juan, o cacique Urayoan, que dominava o povo Yacuaca, resolveu tirar a prova desta dúvida e atestar a imortalidade dos espanhóis. Conseguiu atrair ao seu povoado o espanhol Salzedo, que cruzava por suas terras para chegar ao local onde os espanhóis já estavam instalados. Ganhando a confiança daquele homem, Urayoan ordenou à sua gente que o alimentassem e tratassem bem, conduzindo-o até o seu caminho, acompanhado de uma comitiva de 15 indígenas. Quando Salzedo teria que cruzar um rio, estes homens ofereceram-se para carregá-lo evitando que o mesmo se molhasse. Durante a travessia afogaram-no, esperando durante dias que o corpo mostrasse uma transformação diferente da humana. Mas depois de três dias, perceberam que Salzedo não voltava à vida e que seu corpo apodrecia da mesma forma que eles, mostrando sua natureza genuína humana. Já que não eram imortais, xamãs ou deuses, os espanhóis poderiam ser derrotados, acreditava Urayoan e, por isso, declarou guerra aos invasores. (OVIEDO, 1547, Folios CXXIII verso – CXXIIII)
Bruno Latour [2018 (2004)] retomou mais uma vez a passagem acima, reiterando o caráter científico da investigação que o cacique Urayoan e seu povo fizeram do corpo espanhol. Por meio desta passagem, Latour visa confirmar sua hipótese, de que os povos indígenas atuam segundo suas cosmopolíticas. Isso significa dizer que os indígenas interpretam e agem sobre o mundo segundo visões que articulam várias esferas, envolvendo os mundos dos vivos e dos mortos, dos humanos e de outros seres, do corpo material e da dimensão etérea, não corpórea. Esta é uma questão clássica que alimentou muitos outros antropólogos, como Claude Lévi-Strauss [2017(1955)], Eduardo Viveiros de Castro (1996) e Anthony Pagden (1982).
Assim, desde o início da invasão da América, acompanhando a morte e a devastação que promoveram entre os indígenas, os ocidentais vêm tentando traduzir e decifrar os pensamentos ameríndios. No cenário atual, com toda a humanidade vivendo uma onda epidêmica, como inúmeras daquelas que vitimaram milhões de vidas indígenas no passado, é interessante reverberar algumas de suas visões. De acordo com o escritor e ativista indígena Ailton Krenak, a impossibilidade da humanidade controlar o vírus da COVID-19 poderia ser encarado como um alerta:
Todos precisam despertar. Se, durante um tempo, éramos nós, os povos indígenas, que estávamos ameaçados de ruptura ou da extinção dos sentidos das nossas vidas, hoje estamos todos diante da iminência de a terra não suportar a nossa demanda. Tomara que, depois de tudo isso, não voltemos à chamada “normalidade”, pois se voltarmos é porque não valeu nada a morte de milhares de pessoas no mundo inteiro. Aí, sim, teremos provado de que a humanidade é uma mentira. (KRENAK, 2020)
Nos limites desta Apresentação de Dossiê, a proposta foi pincelar algumas passagens e relatos sobre os indígenas como um convite para seguirmos por estas histórias e visões dos e sobre os povos indígenas na América, conhecer um pouco mais sobre seus modos, pensamentos e as formas como compuseram e compõem a história do continente americano.
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Os dezessete textos aqui apresentados (15 artigos e 2 resenhas) são resultados de pesquisas realizadas desde estudantes a profissionais em vários estágios da carreira. Mesmo em se tratando de uma revista de História, este Dossiê, problematizando as histórias indígenas, tem por princípio incorporar e receber contribuições de áreas afins. Assim como a Antropologia e a Etnologia nos ajudam a entender os modos e pensamentos ameríndios, neste Dossiê vemos também como a Literatura e o Patrimônio compreendem as presenças indígenas nas Américas.
A diversidade de temas, objetos e espaços foi propositalmente estimulada na chamada para o Dossiê, que pensava em falar dos povos indígenas das Américas, não se restringindo nem à América portuguesa e nem mesmo à América Latina, querendo ampliar a discussão para a escala continental. Além disso, procurou-se deixar o recorte temporal extenso, visando abordar desde as comunidades indígenas pré-coloniais aos povos indígenas contemporâneos.
O atendimento destas pretensões pode ser atestado pela pluralidade de textos e temas aqui apresentados. Embora tão diversas, um aspecto que se nota de maneira geral em todas as pesquisas é o trabalho minucioso com fontes, um recorte verticalizado, especializado no objeto pesquisado, um cuidado em evitar generalizações, apoiando-se em importantes referenciais teóricos e pesquisas que vão mostrando a solidez do campo de estudo da história dos índios. Assim, definitivamente não se pode mais falar de um “índio genérico”, dos “índios do Brasil” ou de outra parte da América de maneira abstrata, mas especificando de qual(is) sociedade(s) se está falando, quais características se podem perceber e como estes indígenas buscavam defender seus interesses, manter e reinventar suas tradições.
Percorremos do México (artigo de Marcelo Felício Martins Pinto e resenha de Horacio Miguel Hernán Zapata) aos Andes (artigo de Lorena Gouvea de Araújo). Andamos pela Amazônia (artigo de Marina Sousa e artigo de André Luis dos Santos Andrade) às populações indígenas dos Centro-oeste (artigo de Wedster Felipe Martins Sabino e Vasni de Almeida). No Brasil, também vamos pelo Nordeste (artigo de João Paulo Peixoto Costa e artigo de Maria Alda Jana Dantas de Medeiros), pelo Sudeste (artigo de Rodolfo Rodrigues de Almeida) e pelo Sul (Luís Fernando da Silva Laroque e Ernesto Pereira Bastos Neto).
Especificando sobre as temáticas, ora nos detemos em vestígios arqueológicos e a discussão sobre patrimônio (novamente menciono o artigo de André Luis dos Santos Andrade), depois percebemos os mecanismos usados para reivindicações de direitos e participações indígenas nos aldeamentos e vilas em suas lutas por liberdade, no seu direito às terras (artigo de Maria Rosalina Bulcão Loureiro e de novo menções aos artigos de João Paulo Peixoto Costa e Rodolfo Rodrigues de Almeida). Passamos pelas imagens produzidas pelos europeus sobre os nativos da América desde o início da invasão do continente pela Europa (artigo de Beatriz Cantuária Jakubowski dos Santos), até à forma como estas imagens têm sido relidas nas salas de aulas contemporâneas através dos livros didáticos (artigo de Chrislaine Janaina Damasceno).
Um segmento que emergiu em diversos textos foi o papel das mulheres indígenas em diferentes sociedades e contextos, demonstrando importantes poderes que representavam junto aos seus coletivos (artigo de Alexandre Navarro e Karen Cristina Costa Conceição, e novamente citados os artigos de Maria Rosalina Bulcão Loureiro e de Lorena Gouvea de Araújo). No espectro das comunidades indígenas silenciadas pela História e pelos agentes em disputa, menciono novamente os artigos de Luís Fernando da Silva Laroque e Ernesto Pereira Bastos Neto, que abordam duas comunidades kaingang do Rio Grande do Sul e Maria Alda Jana Dantas de Medeiros sobre as origens indígenas de uma cidade no interior no Rio Grande do Norte.
Finalizando a exposição dos temas aqui visitados, tem-se uma análise sobre a missionação batista no Tocantins no início do século XX (nova menção ao artigo de Wedster Felipe Martins Sabino/Vasni de Almeida), sobre o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) do México na década de 1990 (referencio de novo o artigo de Marcelo Felício Martins Pinto), uma abordagem interdisciplinar sobre o mecanismo da guerra justa no Império português, face às formas como os “Kayapó” significam e ressignificam a guerra (artigo de Sofia Theodoro e Tayná Mazza). No campo da Literatura, a análise da temática e personagem indígena num poema de Cassiano Ricardo (artigo de George Leonardo Seabra Coelho). Abordando obras de escopo mais amplo, uma das resenhas contempla um livro que se deteve sobre os indígenas no universo colonial ibero-americano (resenha de Lana Gomes de Araújo), ao passo que a outra analisou os indígenas durante a construção nacional tanto no México, quanto na Argentina (novamente cito a resenha de Horacio Miguel Hernán Zapata).
Em síntese, há assuntos, períodos e abordagens para tantos quantos podem ser os interesses dos leitores que buscam aqui algumas destas histórias indígenas. Falando de maneira coletiva, esperamos com este Dossiê deixar registradas as evidências da profusão e relevância destas populações na história do continente americano.
Referências
LATOUR, Bruno. Qual cosmos, quais cosmopolíticas? Comentário sobre as propostas de paz de Ulrich Beck. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. Nº 68, p. 428-441, abr. 2018.
LEVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. São Paulo: Ed. 70, 2017.
KRENAK, Ailton. Entrevista. “‘O modo de funcionamento da humanidade entrou em crise’, opina Ailton Krenak”. Diário de Minas. 3 abr. 2020. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/pensar/2020/04/03/interna_pensar,1135082/funcionamento-da-humanidade-entrou-em-crise-opina-ailton-krenak.shtml17. Acesso em: jun 2020.
OVIEDO Y VALDEZ, Gonzalo Fernandez de. Coronica delas Indias. La hystoria general de las Indias agora nueuamente impressa corregida y emendada. 1547: y con la conquista del Peru. Impreso en Salamanca: por Iuan de Iunta:, acabose a cinco dias del mes de julio año del nascimiento de nuestro señor Iesu Christo, de mil [y] quinientos [y] quarenta [y] siete años. [5 July 1547].
PAGDEN, Anthony. The Fall of Natural Man: The American Indian and the Origins of Comparative Ethnology (Cambridge Iberian and Latin American Studies). Cambridge/New York: Cambridge University Press; 1982.
CASTRO, Eduardo Viveiros de. Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio. Mana. v. 2, nº 2, p. 115-144, out. 1996. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104- 93131996000200005&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 17 jun. 2020.
Organizadora
Fernanda Sposito – (UNIFESP/Brown University)
Referências desta apresentação
SPOSITO, Fernanda. Apresentação. Faces da História. Assis, v.7, n.1, p.19-24, jan./jun. 2020. Acessar publicação original [DR]
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