O dom de despertar no passado as centelhas de esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. 2
O momento atual é crucial para aprofundar o conhecimento sobre a Amazônia e refletir acerca do seu processo histórico através das muitas concepções teóricas à disposição. Como pensála de outro modo em História? Dos estudos culturais com enfoque nos inúmeros povos, etnias e identidades ali engendradas, aos estudos sociais e econômicos que compreendem a expansão das frentes pioneiras, os processos migratórios, as formas de exploração sob a égide e inserção do capitalismo predatório e rudimentar, é preciso abarcar outras possibilidades. O presente e o futuro requerem para a Amazônia estudos históricos do tempo presente, da história do clima, da história ambiental…
A partir do golpe de 1964 no Brasil, a expansão da fronteira Amazônica se processou dentro de uma lógica singular mediada pelo Estado por meio da Doutrina de Segurança Nacional, onde o Poder Público se colocou como mediador dos interesses da grande empresa privada e do capital internacional, no intuito de promover um crescimento econômico rápido e a qualquer preço. De acordo com Berta Becker,3 para realizar seu projeto, o Estado impôs uma nova malha técnico-política que incorpora as tendências expansionistas e transformadoras já existentes nas sociedades próximas dos grandes centros políticos e econômicos na Amazônia, por meio das concepções ideológicas trazidas pelos milhares de migrantes que chegavam à região a partir dos projetos de colonização autoritários. Na fronteira, desenvolveu-se um jogo simbólico denso e dramático da nação com seus propósitos. É preciso compreender e conhecer objetivamente a fronteira para além das concepções ideológicas simplificadoras do processo autoritário de ocupação, que é incapaz de captar a magnitude e a complexidade em curso na sociedade brasileira. Mais que uma definição geográfica, a fronteira é uma categoria histórica. De acordo com José de Souza Martins, a história contemporânea da fronteira no Brasil é marcada pelas lutas étnicas e sociais. Neste sentido, a Fronteira é eminentemente o lugar da alteridade. É o local de descoberta do outro e do desencontro. Desencontro de povos que vivem em regimes de temporalidade diferentes.4
Com a floresta cada vez mais ameaçada pelo avanço do desmatamento nos últimos anos, olhares de todo o mundo têm se voltado ainda mais para a Amazônia e importantes vozes denunciam as ameaças à sua fauna, flora, rios e populações originárias. De forma urgente, é preciso compreender e considerar o real impacto das inúmeras formas de agressão ao solo e subsolo da floresta e aos leitos dos rios, que têm sido atingidos com a voracidade das queimadas desproporcionais, que em certo sentido, a floresta sempre suportou e foi capaz de recuperar. É preciso esclarecer e debater acerca dos volumes cada vez maiores de agrotóxicos lançados nas áreas de monocultura do agronegócio, o enorme avanço do garimpo ilegal, que vilipendia territórios indígenas, que contamina águas outrora piscosas e límpidas, que deforma irreversivelmente o solo.
Este dossiê surgiu com o objetivo primordial de reunir discussões sobre as populações amazônicas, centralizando-as nos debates e lançando a lugares de protagonismo os inúmeros e diversificados povos nativos, os escravos e quilombolas levados no processo de colonização, os caboclos, posseiros e os diversos tipos de trabalhadores que se entranharam floresta a dentro e constituíram formas de vida próprias ligadas às condições locais, do mais remoto passado até os dias atuais. Discussões sobre os processos envolvendo suas vivências, culturas e crenças, transmigrações e movimentações, formas de colonização, avanços das frentes de expansão, resistências e lutas na longa duração da temporalidade histórica. No entanto, foi a Floresta que se mostrou central em todos os artigos submetidos e analisados para a composição deste dossiê. A Floresta atingida pelas transformações socioeconômicas operadas pelas ações humanas e os sujeitos que, junto com ela, sofreram e sofrem processos de violência, exploração, esgotamento, que padecem sob a imposição de transmutações, de contínuos trânsitos e migrações, desenvolvendo lutas pela sobrevivência, lutas de resistência e re-existência.
Desta feita, reunimos sete artigos no dossiê “Povos e Culturas da região amazônica”. O artigo “A trajetória de lutas indígenas em universidades na Amazônia: um olhar sobre as identidades de universitários indígenas em reportagens de jornais on-line”, de Viviane Braz Nogueira e Fernando Zolin-Vesz, analisa a trajetória de lutas de estudantes universitários indígenas da Amazônia brasileira, compreendendo como eles constroem suas identidades. A partir de pesquisa qualitativa e documental e tendo três reportagens de jornais on-line como fontes, o estudo conclui que os movimentos identitários indígenas estão cada vez mais fortalecidos em suas lutas pela autoafirmação étnica e combate ao preconceito.
Avelino Pedro da Silva, em “História, cultura e justiça: processos trabalhistas e experiências de trabalhadores em Itacotiara-AM (Amazônia Brasileira, 1977/1988)”, analisa processos trabalhistas deste município no período da ditadura-civil militar (1964-1985) e revela as experiências de sofrimento e exploração que foram registradas nestes documentos. O artigo contribui para demonstrar perspectivas de resistência dos trabalhadores incorporadas ao seu modo de vida na Amazônia e a contribuição de suas histórias para a constituição da Justiça do Trabalho no Brasil.
Marcos Lucas Abreu Braga apresenta “Migrantes nordestinos no movimento operário amazonense: as trajetórias de José de Calazans Bezerra, Nicolau Pimentel, Otelo Mavignier e Hemetério Cabrinha (1900-1930)”. Tendo a imprensa como fonte, o autor evidencia a participação de migrantes oriundos dos estados que atualmente compõem a região Nordeste do Brasil na classe e especialmente no movimento operário do estado do Amazonas, a partir das trajetórias de quatro lideranças operárias que atuaram na capital amazonense nas primeiras décadas do século XX.
Leidiane Gomes de Souza e Vitale Joanoni Neto, em “Amazônia Legal: uma perspectiva de análise para os pequenos municípios do Sudeste de Mato Grosso em meio ao processo de Modernização agrícola”, analisam as diferentes existências e lógicas presentes no contexto da colonização promovida pelo governo a partir de 1970 na região onde hoje se localiza o município de Rondonópolis. De um lado temos as cidades regidas pelo modo de produção e lucratividade, de outro as cidades pequenas que fogem dessa lógica e recebem o estigma de atrasadas. Para além da materialidade, os autores propõem a análise do processo pelo viés da história das sensibilidades, compreendendo que o processo de colonização constrói espaços portadores de significados, memórias, identidades e novas sociabilidades.
Maria Arlinda da Silva traz à tona “O Projeto Terranova – colonização recente na fronteira amazônica”, no qual, a partir de relatos orais, fotografias, jornais, documentos oficiais e bibliografias sobre o tema, problematiza o impacto da chegada de garimpeiros na área destinada à colonização pelo projeto Terranova, implantado na década de 1970 na região norte do estado de Mato Grosso. A ocupação inesperada da área pelos trabalhadores de garimpo foi irreversível e obrigou a colonizadora a modificar o projeto, comprovando que o espaço amazônico não serviu apenas aos propósitos de migração dirigida, mas também foi palco de migrações espontâneas.
O artigo “Necrodesenvolvimento da Amazônia: Integrar, Matar e Deixar Morrer” de Andreia Marcia Zattoni, direciona seu olhar para o projeto político-econômico que fundamentou o modelo de desenvolvimento da Amazônia brasileira implementado pela Ditadura Militar, que promoveu diversas violências contínuas sobre as populações indígenas da região. Exemplos dessas violências vão desde a guerra biológica perpetrada pela introdução deliberada de doenças para as quais os nativos não tinham anticorpos, passando pela remoção forçada de aldeias inteiras de seus territórios originários, até assassinatos diretos. A autora embasa sua análise nos documentos oficiais apurados pela Comissão Nacional da Verdade, se utilizado do conceito de Necropolítica de Achille Mbembe. Esses elementos fortalecem o embate que a historiografia tem travado com a propaganda de que a colonização recente foi um projeto de ocupação da região amazônica marcada pelo vazio demográfico.
Em “Os Recursos Hídricos dos países Amazônicos: Um estudo comparativo das práticas Governamentais de Brasil, Colômbia, Bolívia e Venezuela”, Leonardo Lopes Mendonça e Wanessa Thayna Soares de Carvalho examinam comparativamente as políticas públicas de manejo dos recursos hídricos dos quatro países referidos. Buscam compreender o impacto dessas Nações que têm consideráveis porções de seus territórios banhados pela bacia amazônica, e como este processo de gestão dialoga e sofre transformações a partir das mudanças políticas e econômicas de cada realidade nacional. Outro elemento fundamental abordado pelos autores é o impacto desses processos sobre os povos indígenas que ocupam territórios banhados pela bacia amazônica, além de sofrerem com o desmatamento e o avanço das grandes monoculturas sobre seus territórios tradicionais, têm suas águas poluídas e inviabilizadas pela contaminação advinda da exploração mineral ou pela poluição dos agrotóxicos.
Na seção Artigos de tema livre, temos o trabalho de Alan da Silva Dias e William Gaia Farias intitulado “Investigação criminal, História e Literatura policial: o paradigma indiciário e os processos de homicídios em Belém do Pará (1931-1933)”. O artigo analisa dois processos de homicídio ocorridos na capital do Pará nos anos de 1931 e 1933 à luz das concepções teóricas do paradigma indiciário, da criminologia e da literatura criminal. Em “Um sujeito em dois grossos volumes”: o Dicionário do Folclore Brasileiro e a problematização em torno da função-autor”, Raquel Silva Maciel problematiza o processo de autoria do Dicionário do Folclore Brasileiro, de Luís da Câmara Cascudo. Pondera o uso da função-autor no discurso dicionarístico e os papéis desempenhados pelo outrem na confecção do projeto folclórico vinculado na obra, assim como a função que exercem na constituição de Câmara Cascudo como autor e na forma que sancionam e autorizam a construção de narrativas acerca do elemento folclórico.
Pablo Gatt e Irlan Cotrim em “Um breve Estudo sobre as relações de Gênero nos discursos cristãos” discorrem sobre as construções sociais e religiosas de masculinidade e feminilidade dando atenção especial às representações cristãs de Eva, Maria Madalena e Maria mãe de Jesus, elencadas como modelos do feminino. Essa construção, que se iniciou nos primeiros anos da era cristã e se estendeu pelo período medieval, colocava o fardo do pecado sobre as mulheres, fazendo com que essas necessitassem de vigilância constante do pai ou do marido. Quando desacompanhadas, elas eram consideradas perigosas e subversivas. Diante disto, a partir dos referenciais teóricos do gênero e da nova história cultural, os autores pretendem desmitificar a imagem da mulher no medievo como algo estático e fixo, desnudando as intencionalidades por trás da construção do papel do feminino.
Para finalizar, trazemos um relatório de PIBIC aprovado que foi analisado pela equipe editorial para publicação. André Luís Domingos escreveu sob a orientação do professor Marcelo H. Steffens o trabalho “O futebol tabela com a política: o futebol e as ‘Diretas Já’ nos editoriais da Revista Placar (1982-1984)”. O autor percebeu como a revista foi gradativamente se envolvendo e se posicionando politicamente em meio aos protestos do movimento das Diretas, que exigia a redemocratização do Brasil.
A “história aberta” pelos diálogos apresentados no decorrer dessa apresentação considera um ponto de vista plural, “pois o perigo de uma derrota atual aguça a sensibilidade pelas anteriores, suscita o interesse dos vencidos pelo combate, estimula um olhar crítico voltado para a história.”5 O plano cognitivo aberto por Benjamim e reavivada pelos diálogos realizados pelos autores nos apresenta um horizonte novo de reflexão, de busca de uma racionalidade dialética que visa quebrar a ilusão de uma temporalidade lisa, recusa as armadilhas de “previsão científica”, considera os desvios imprevisíveis e o tempo cheio de oportunidades estratégicas. Assim, presente, passado e futuro se abrem de forma associada nas leituras históricas e em nossas criações, pois, os combates travados por nós historiadores estão primordialmente no campo das opções éticas, sociais e políticas, ora situados no lugar dos agentes do processo histórico analisado ou ainda opções do próprio historiador que escolhe o objeto, recorta-o, alinhava e o costura, realizando suas análises diante de condições objetivas, que inclui métodos, técnicas e abordagens teórico-metodológicas. Em uma época que as ameaças de catástrofes ressurgem com o avanço da xenofobia, do racismo, das violências de gênero, das calamidades e destruições ambientais, aqueles que lutam por valores democráticos encontram-se cada vez mais em perigo. Contudo, os agentes históricos são interceptados pelas novas possibilidades e lutas emancipatórias/utópicas, abrindo-se assim a necessidade e possibilidades de organizar o pessimismo.
Dito isso, sobre tais evidências, é preciso saber voltar de tempos em tempos com a responsabilidade de propor novas interrogações – sobre a Amazônia –, colocadas na urgência do tempo presente e sob a diligência da escritura historiográfica. Pois eis aqui: a história de gente simples e o testemunho de luta em favor da vida, substância fulcral da reflexão histórica. E tais operações conduzem as pesquisas, norteiam o projeto de edição que cada uma de nós, editoras, arquitetamos e com cuidado articulamos, organizando essas narrativas ruidosas para que o interlocutor tenha à disposição textos acadêmicos e possa interpretá-los a partir da ótica do discurso do historiador.
Notas
2 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história cultura. São Paulo: Brasiliense, 2012, p.244. (Obras Escolhidas V.1.).
3 BECKER, Bertha K. Significância contemporânea da fronteira: Uma interpretação geopolítica a partir da Amazônia brasileira. In AUBERTIN, C (ed.). Fronteiras1988. Brasília: Universidade de Brasília (UNB)/ ORSTOM 1988. p. 60-89.
4 MARTINS, José de Souza. O tempo da fronteira. Retorno à controvérsia sobre o tempo histórico da frente de expansão e da frente pioneira. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 8(1): 25-70, maio de 1996, p. 27.
5 Löwy, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: Uma leitura das teses ‘Sobre o conceito de História’. São Paulo: Boitempo, 2005. p.65 (Grifo nosso).
Organizadores
Francieli Aparecida Marinato – Editora da Revista Discente Outras Fronteiras (Biênio 2020-2022) e doutorandas do Programa de Pós-Graduação em História/ UFMT.
Luciana Coelho Gama – Editora da Revista Discente Outras Fronteiras (Biênio 2020-2022) e doutorandas do Programa de Pós-Graduação em História/ UFMT.
Rhaissa Marques Botelho Lobo – Editora da Revista Discente Outras Fronteiras (Biênio 2020-2022) e doutorandas do Programa de Pós-Graduação em História/ UFMT.
Viviane Gonçalves da Silva Costa – Editora da Revista Discente Outras Fronteiras (Biênio 2020-2022) e doutorandas do Programa de Pós-Graduação em História/ UFMT.
Referências desta apresentação
MARINATO, Francieli Aparecida; GAMA, Luciana Coelho; LOBO, Rhaissa Marques Botelho; COSTA, Viviane Gonçalves da Silva. IMIGRAÇÃO, Trabalho e luta na Amazônia. Outras Fronteiras, v. 8, n. 2, p. 4-9, 2021. Acessar publicação original [DR]
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