Travessias, “SERTÃO” e Águas Amazônicas
“Aquilo era a tristonha travessia, pois então era preciso”.
Guimarães Rosa
Os organizadores do dossiê Povos, comunidades tradicionais e grupos populares latino-americanos: oralidades, memórias e imagens, não poderiam deixar, em estilo de apresentação, de prestar uma discreta, mas justa homenagem à professora, pesquisadora e, acima de tudo, Amiga, Jerusa Pires Ferreira, que fez a sua travessia, pelo testemunho de pessoas queridas ali presentes, em 21 de abril de uma tarde triste, com céu limpo rumo ao Orum. Pelo contexto, imaginamos também a presença viva dos sons dos tambores.
De Feira de Santana (BA) para o mundo, incluindo o verde vagomundo amazônico,1 a pesquisadora dedicou estudos à oralidade e suas questões transversais: performances, literaturas e culturas “populares”, semiótica da cultura, novelas de cavalaria e as inúmeras traduções do tecido fáustico. Publicou aproximadamente 20 livros e 180 artigos, quando docente da UFBA, livre-docente da Universidade de São Paulo (USP) e professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).
Em espaços provocantes, como as astuciosas aulas friccionando afetividade, verdadeiros transes, recepção atenta, performances e reflexões teóricas, Jerusa desvelava memórias vivas pela não menos ardilosa trajetória de vozes em busca de novas territorialidades ou como ela mesma poderia dizer: “oralidades, dotadas de memórias vivas, em busca de novos corpos.”
Seu percurso pelo que chamou de “Cultura das Bordas” nos dá relevo para uma incursão iniciática e fascinante pelo mundo das forças “ocultas”. Destacamos seus estudos pelo almanaque cristão-ibérico-afro-mágico, cujas inúmeras edições se espalham pelo mundo, incluindo o Brasil, o Livro de São Cipriano. Dessa Literatura “Maldita”, um convite à transgressão, Jerusa extrai, discute e, às vezes, “decifra” uma profusão de signos/cripto-textos advindos de tradições vivas: agricultura, fases da lua, esoterismo, bulas de remédio, piadas, literatura, receitas, feitiçarias e exorcismos.
Esse trânsito de Jerusa pelas “Capas Pretas” ou seus devires pelo mundo “sacroprofano” nos permite, pela força da Amizade, algumas digressões… A melhor lembrança, ou como diria Goldman (2003) ao conferir um grau de dignidade à Jerusa e às suas afecções com os mundos das feitiçarias repartidas com seus leitores, será re-territorializada para os universos simbólicos dos (as) encantados (as) do Sertão,22 inicialmente, e depois pelo vasto vale e mundo amazônico, de braços dados com uma de suas orientadas e pupila querida, a professora doutora Josebel Akel Fares, que com ela caminhou no incrível campus flutuante do projeto Imaginário nas Formas Narrativas Orais Populares da Amazônia Paraense (IFNOPAP). Encantamento, sob o maracá simétrico do professor Raimundo Maués, permite refletir que:
(…) neste processo não interfere nenhum mérito moral, como no caso dos santos, que são frequentemente pensados como pessoas que praticaram o bem enquanto eram vivas. As pessoas se encantam porque são atraídas por outros encantados para o “encante”, seu local de morada. O encante se encontra “no fundo”, normalmente no dos rios e lagos, em cidades subterrâneas ou subaquáticas. Para que alguém seja levado para o fundo, por um encantado, é preciso que este “se agrade” da pessoa, por alguma razão. (Maués, 2005, p. 265).
O sertão de Jerusa, em suas vocigrafias,33 jamais foi restrito a um espaço geográfico. Sempre experimentou intensas gradações: da floresta ao deserto; do inserto ao exposto e de um longe a um perto, bem como preocupações com:
(…) o desastre de tantas vozes silenciadas, de tantos idiomas extintos. Constata o silêncio que pesa sobre nós, quando se cala um imenso saber, uma sabedoria, a fidelidade à vida. Continua pontuando que a destruição de culturas veneráveis vitima a humanidade inteira, privada de seu trabalho milenar, de sua memória e de seus mortos. (Ferreira, 2006, p. 194).
Memórias refletidas no espelho das águas marajoaras trazem o encontro de Jerusa Pires com Agenor Sarraf Pacheco e as conexões com Maria Antonieta Antonacci. O tempo remonta ao ano de 2001, quando Jerusa conheceu Agenor, sob a apresentação de Josebel Fares, numa das viagens pela cidade de Breves, no Marajó das Florestas, do IFNOPAP. Sempre disposta a novas aventuras, Jerusa partiu com Bel e Agenor para conhecer a cidade de Melgaço (Amazônia Marajoara) e o santo justiceiro, padroeiro do lugar, São Miguel Arcanjo, morador e protetor de um templo sagrado cujas memórias remontam à era barroca do Brasil, tatuada de sul a norte, em suas variadas formas, expressões e sentidos.
Num profundo (re)fazer-se e multiplicar-se como memória viva rizomática, Jerusa segue presente e imortal não apenas em seus escritos, mas especialmente em corpos de pesquisadores, educadores, alunos e amigos que, entre a academia e suas fímbrias, revitalizam sua luta em defesa da sabedoria das poéticas orais na esperança de que outros Brasis possam existir e ainda precisem ser desvelados e valorizados.
Em simbiose com essas batalhas por outras memórias frente à necessidade constante de vigílias contra o emergente e poderoso Estado de Exceção que avança em solo brasileiro para silenciar “balbúrdias” de renitentes vozes que historicamente se recusam a viver na cultura do esquecimento, o dossiê Povos, comunidades tradicionais e grupos populares latino-americanos: oralidades, memórias e imagens imana, com alegria, escritos versados em experiências da diversidade humana, reafirmando a compreensão de que as memórias, em seus múltiplos dispositivos intertextuais (voz, corpo, letra, imagem, ritmo, performances, experimentos áudio visuais, dentre outros), descrevem, desvelam e potencializam a contínua (re)existência de humanidades historicamente “subalternizadas”.
Entre os diferentes artigos recebidos por História Oral, dezesseis trouxeram temáticas afinadas à proposta do dossiê, articulando diálogo epistemológico e densidade empírica numa composição capaz de fazer avançar repertórios sobre oralidades, memórias e imagens no seio das vivências, embates e desafios de povos, comunidades tradicionais e grupos populares latino-americanos. Por esse enredo, Eliane Miranda Costa em No rastro da tradição oral: a cultura material nas vozes de povos tradicionais da Amazônia marajoara descreve “tática para que as vozes emudecidas desses povos, que não só convivem com as coisas, mas delas guardam histórias, sentidos e significados de seus usos e existência, questionem discursos uniformizantes orientados por visões ocidentalizadas”. “Batucando a memória vem”: rememorações de uma matriarca amazônida, de Sil Lena Ribeiro Calderaro Oliveira e Elison Antonio Paim, analisa “rememorações de mulheres/mestras que compõem o grupo, bem como seus diferentes saberes, fazeres, ensinamentos e experiências, identificando como se constituem as identidades, resistências e suas culturas no contexto do carimbó”. Já Diego Omar da Silveira e Clarice Bianchezzi, no artigo Vozes e identidades plurais: uma análise da diversificação do campo religioso em Parintins (AM) a partir de relatos orais, fazem emergir do escrito, pela análise de dados estatísticos, “a presença de grande quantidade de templos, grupos e movimentos religiosos na região, revelando uma situação concorrencial entre as confissões religiosas que, aos poucos, contesta a paisagem religiosa, as identidades constituídas e coloca em disputa espaços de poder”.
Nos itinerários de saberes e fazeres, Memórias amazônicas nas narrativas de pescadoras de camarão da comunidade São Sebastião da Brasília, Parintins (AM), de Júlio Claudio da Silva e Iraildes Caldas Torres, explicita como “a pesca do camarão expressa a divisão sexual do trabalho e demarca a relação de gênero na comunidade de São Sebastião da Brasília, zona rural do município de Parintins, Amazonas”. Em Caiana dos Crioulos e seus “encantos”: problematizando a constituição de lugares de memória em uma comunidade quilombola paraibana, Janailson Macêdo Luiz “problematiza algumas apropriações do passado constituídas por parte dos quilombolas de Caiana dos Crioulos, Alagoa Grande (PB), que nos últimos anos vêm efetuando ressignificações das heranças legadas pelos seus antepassados, ao confrontá-las perante os desafios e demandas do tempo presente”. Carolina Pazos Pereira, por sua vez, em Trabalhei mutcho: experiências de trabalho nas comunidades quilombolas do Piemonte da Chapada Diamantina (BA), “analisa alguns relatos de experiências de trabalho em quatro comunidades quilombolas de Morro do Chapéu, Bahia”, sem manter-se “condicionada ao ponto de vista cronológico, cruza camadas, respeitando o tempo vago da memória” e “características particulares da escravidão sertaneja”.
Explorando o campo das imagens, por território de povoados negros, Levy Felix Ribeiro e Waldson de Souza Costa, em A fotografia como instrumento para valorização da identidade negra: a experiência e metodologia do projeto “Autorretrato Nordeste – Quilombos de Alagoas”, discutem “metodologias possíveis de trabalhar o uso da fotografia como instrumento em pesquisas etnográficas com comunidades negras”. Por outro ângulo, no trato com a fonte oral, Cercas e memórias: a experiência histórica do uso comum da terra no Faxinal Rio do Couro (Irati-PR), de Marisangela Lins de Almeida, Marcos Fábio Freire Montysuma e Ancelmo Schorner, problematiza “aspectos referentes ao processo (inconcluso) de dissolução do criadouro comum do Faxinal Rio do Couro, situado no município de Irati-PR”. Em “Eu disse a ideia, tem que ter isso aí, para beneficiar o pescador”: tradições, memórias de trabalho e vivências de marisqueiras e pescadores artesanais em Ilhéus (BA), 1960-2008, Luiz Henrique dos Santos “trata das lutas por tradições, memórias de trabalho e vivências de pescadores artesanais e marisqueiras em Ilhéus, Bahia, no período de 1960 a 2008”. Nesse mesmo veio, “Eles podem acabar com a carroça, mas não vai ser do jeito que eles quer não”: conflitos e resistências no cotidiano dos trabalhadores que utilizam veículos de tração animal, Pedro Jardel Fonseca Pereira descreve como, “no cotidiano, os trabalhadores que utilizam veículos de tração animal precisam lidar com diversos desafios, como a desvalorização e a marginalização do ofício.”
O número adensa as complexas relações de poder, dominação e resistência em Narrativas nos castanhais: da submissão ao patrão à construção de um sistema autônomo de produção agrícola – o caso da comunidade de Jatuarana, Manicoré (AM), de Lindomar de Jesus de Sousa Silva, Gilmar Antonio Meneghetti, José Olenilson Costa Pinheiro e Kátia Emídio da Silva. O artigo descreve “a experiência vivenciada pelos extrativistas no processo de desenvolvimento do seu sistema de produção agrícola”, considerando “o processo de formação socioeconômico de uma região rica em castanhais: a comunidade do Jatuarana, no município de Manicoré, Amazonas”. Em A literatura de testemunho na expressão poética do poeta Agostinho Neto, pela perspectiva dos estudos da Literatura de Testemunho, Airton Souza de Oliveira faz refletir sobre significações simbólicas ligadas às histórias de lutas coloniais, pró-libertação de Angola, na África.
Mônica Pessoa, em “Existe um segredo entre nós”: a trajetória do Djéli Toumani Kouyaté, traça a trajetória de Toumani Kouyaté, djéli/griot da casta nyamakala. Na sequência, Fontes orais e narrativas indígenas: as mônadas como possibilidade teórico-metodológica, de Tatiana de Oliveira Santana e Giovanna Santana, destaca o “processo de construção de mônadas, por meio da montagem das narrativas indígenas”. Já Suzana Lopes Salgado Ribeiro, Marta Gouveia de Oliveira Rovai e Vitor Paulo Fida da Gama, em Narrativas orais de professoras: saberes caiçaras numa comunidade de Ubatuba (SP), analisam “narrativas de cinco professoras que lecionam em escola pública, localizada em uma vila de pescadores ainda existente no litoral norte de São Paulo, no município de Ubatuba: a conhecida Vila de Pescadores de Picinguaba”.
E, ao fim dessa diversidade de investigações, nas quais se entrelaçam histórias, trajetórias, saberes, memórias e lutas de comunidades, grupos e populações tradicionais latinas na América, Dernival Venâncio Ramos Júnior, por reflexões à luz da História Oral, em Encontros epistêmicos e a formação do pesquisador em História Oral, partindo “de tensões e aprendizados analisados, advoga a construção de uma História Oral em chave decolonial”.
Frente à diversidade de experiências de pesquisa e formas de abordagem conectadas ao uso e tratamento da fonte oral e das imagens, os organizadores vislumbram, sob a melhor lembrança dos devires, dos ecos e da travessia de Jerusa, nas armadilhas da memória, exercícios de amplas práticas de leitura. Nosso convite é para vivenciarmos, em sentimento de coletividade, processos de escuta capazes de interagir com vozes de populações tradicionais e grupos latino-americanos para além do escrito e dos mecanismos da colonialidade do poder, fazendo emergir uma experiência profunda “do dar corpo ao suceder…”
Notas
1 Empréstimo do termo junto ao escritor paraense Benedicto Monteiro
2 “Estabelecer etimologias é uma armadilha em que se pode cair com fascinação e a etimologia da palavra sertão parece se perder na nebulosa que esgarça e dissolve a configuração de possíveis limites físicos e conceituais, permanecendo tão indefinida a significação quanto ilimitado o conceito” (Ferreira, 2017, p. 1).
3 Ver em: FERREIRA, Jerusa Pires. Vigília das oralidades. Revista USP, São Paulo, n. 69, p. 193-196, 2006.
Referências
GOLDMAN, Marcio. Os tambores dos mortos e os tambores dos vivos. Etnografia, antropologia e política em Ilhéus, Bahia. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 46, n. 2, p. 423-444, 2003.
MAUÉS, Raymundo Heraldo. Um aspecto da diversidade cultural do caboclo amazônico: a religião. Estudos Avançados, São Paulo, v. 19, n. 53, p. 259-274, 2005.
FERREIRA, Jerusa Pires. Cultura das Bordas: edição, comunicação, leitura. São Paulo: Ateliê Editorial, 2010.
____; DE SOUZA, Geraldo Gerson; MARTINS FILHO, Plínio. O livro de São Cipriano: uma legenda de massas. São Paulo: Perspectiva, 1992.
____. UM LONGE PERTO: Os segredos do sertão da terra. Revista Légua & Meia, Feira de Santana: UEFS, v. 2, n. 1, p. 25-39, 2017.
____. Vigília das oralidades. Revista USP, São Paulo, n. 69, p. 193-196, 2006.
Organizadores
Hiran de Moura Possas – (UNIFESSPA).
Maria Antonieta Antonacci – (PUC/SP).
Agenor Sarraf Pacheco – (UFPA).
Referências desta apresentação
POSSAS, Hiran de Moura; ANTONACCI, Maria Antonieta; PACHECO, Agenor Sarraf. Apresentação. História Oral, v. 22, n. 1, p. 5-10, jan./jun. 2019. Acessar publicação original [DR]
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