Povo de Deus: quem são os evangélicos e por que eles importam, publicado em 2020 (Geração Editorial), é um livro de autoria do antropólogo Juliano Andrade Spyer. O autor é especialista em mídias sociais, desenvolveu pesquisa de doutorado a respeito das trajetórias de alguns evangélicos brasileiros que participaram do mundo do crime e, nos últimos meses, tem aparecido com alguma frequência na imprensa brasileira para falar sobre o conteúdo do livro.
O livro é dividido em nove partes com o total de 48 pequenos capítulos, e contém também uma seção com notas e comentários a respeito das referências citadas. O grande equívoco do autor é a sua insistência em mostrar somente o lado positivo dos evangélicos brasileiros para supostamente combater alguns estereótipos e preconceitos. Na parte introdutória ele afirmou: “reconheço ter um olhar simpático ao cristianismo evangélico”, isto é algo que compromete todo o conteúdo do livro.
Ao longo do livro foram citados dados de diversas pesquisas acadêmicas a respeito dos evangélicos, mas o autor não problematizou efetivamente as questões que foram trabalhadas nas pesquisas nem as divergências entre diferentes pesquisas. Neste sentido, os dados destas pesquisas foram utilizados aleatoriamente para o autor defender suas próprias ideias. Em alguns momentos, o autor defendeu a existência de “conversões genuínas” entre pessoas do mundo do crime, tomando o papel de um religioso, mas isto não é algo que os pesquisadores buscam analisar: o que é ou não é “genuíno” na fé evangélica.
Na primeira parte, intitulada Noções fundamentais: sobre o que estamos falando, o autor distinguiu os evangélicos brasileiros entre protestantes históricos e pentecostais, mas não mencionou o movimento do evangelicalismo norte-americano que influenciou e continua influenciando grande parte dos grupos evangélicos brasileiros, tanto protestantes históricos como pentecostais. O autor apresentou a heterogeneidade do mundo evangélico simplesmente como fruto da repulsa ao autoritarismo e à institucionalização da fé, mas não cogitou a hipótese de divisões entre evangélicos como fruto do excesso de autoritarismo e de disputas por poder.
As pesquisas acadêmicas apontam que atualmente a expansão dos evangélicos não se dá a partir do Norte global. Diante disso, o autor simplesmente concluiu que o cristianismo evangélico não é mais um fenômeno ocidental. Não ficou claro qual seria o ponto de virada, sendo que ainda há muitas conexões entre os evangélicos do Brasil e os evangélicos e as agências missionárias dos EUA e da Europa, por exemplo. E o que dizer da ideologia neoliberal presente no meio evangélico brasileiro?
A partir da segunda parte, o autor passa a associar a rejeição aos evangélicos brasileiros ao racismo, ao preconceito social, à aporofobia, a alguma perspectiva elitista, etc. Toda crítica aos evangélicos é desqualificada como “generalização simplista”. Por exemplo, algo muito problemático é o fato do autor não mencionar as pesquisas a respeito dos ataques dos evangélicos contra as religiões afro-brasileiras e seus adeptos. Ele simplesmente defendeu a ideia de que em geral os evangélicos são tolerantes e cometem apenas “ataques não violentos” contra terreiros. O que seria um “ataque não violento”? E estes “ataques não violentos” não indicam que há algo muito problemático na própria fé pentecostal que, por sua vez, estimula a violência contra os terreiros?
O fato das igrejas pentecostais brasileiras serem formadas por maioria negra foi tomado pelo autor como algo que automaticamente comprova que o pentecostalismo defende os direitos da população negra. Não houve as devidas problematizações a respeito da demonização das divindades afro-brasileiras pelos grupos pentecostais e a respeito do papel do proselitismo evangélico nos presídios.
O fato das igrejas pentecostais brasileiras serem formadas por maioria feminina foi tomado pelo autor como algo que automaticamente comprova que o pentecostalismo defende os direitos das mulheres. O autor defendeu a ideia de que pentecostalismo possui valores menos machistas do que os que predominam na sociedade brasileira de um modo geral. Mas não ficou claro se os grupos evangélicos dão suporte e oferecem rede de apoio para mulheres que buscam se separar de homens violentos. Será que há exemplos neste sentido? O autor não mencionou pesquisas sobre violência doméstica entre mulheres evangélicas.
Outra ideia defendida pelo autor é a de que religiosidade pentecostal não pode ser reduzida a um sistema manipulativo. Sim, mas o que dizer dos abusos religiosos recorrentes no meio evangélico? O que podemos fazer para combater as ações dos pastores evangélicos oportunistas de modo a evitar qualquer tipo de abuso religioso?
O que dizer ao final da leitura? Não sei se o livro representa efetivamente uma contribuição para ampliar a compreensão a respeito dos evangélicos brasileiros, mas provavelmente vai agradar os leitores que já possuem um “olhar simpático” em relação a este segmento religioso.
Referências
Fiorotti, S. “Economias morais evangélicas e governo Bolsonaro em tempos de pandemia.” Plura, 12(1): 198-217, 2021.
Silva, V.G. (org.). Intolerância religiosa: impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro. São Paulo: Edusp, 2007.
Vilhena, V.C. Uma igreja sem voz: análise de gênero da violência doméstica entre mulheres evangélicas. São Paulo: Fonte, 2011.
Resenhista
SPYER, Juliano Andrade. Povo de Deus: quem são os evangélicos e por que eles importam. São Paulo: Geração, 2020, 284p. Resenha de: FIOROTTI, Silas. Será mesmo que os evangélicos são tolerantes? A Pátria – Jornal da Comunidade Científica de Língua Portuguesa. Funchal, 13 maio, 2022. Acessar publicação original.
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