Portugueses no Rio de Janeiro: negócios/trajetórias e cenografias urbanas | Lená Medeiros de Menezes
É certo que a história da imigração no Brasil passa pelo porto do Rio de Janeiro. Tanto na época da Grande Imigração quanto do Pós-Segunda Guerra Mundial. Assim, o Rio de Janeiro foi o palco da chegada de milhares de imigrantes de várias partes do mundo a partir da segunda metade do século XIX e ao longo do século XX. Esse processo mudou o cotidiano carioca e definiu uma época da cidade, em que o Rio de Janeiro se caracterizou como território de convivência de múltiplas identidades nacionais e étnicas. Em grande medida, pode-se dizer, que essa presença dos imigrantes reforçou a vocação cosmopolita da cidade. Para os habitantes mais velhos do Rio de Janeiro, certamente, a lembrança a presença dos imigrantes na vida urbana deve ser bem viva.
A história do Rio de Janeiro dos imigrantes encontrou agora uma obra de referência obrigatória no livro Portugueses no Rio de Janeiro: negócios, trajetórias e cenografias urbanas, de Lená Medeiros de Menezes. Professora emérita da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e atual presidente do Instituto Histórico do Rio de Janeiro (IHGRJ), a autora é conhecida especialista no campo da história da imigração e dos imigrantes no Brasil com vários trabalhos publicados. Seu livro Os indesejáveis: desclassificados da modernidade há muito marca os estudos da história da imigração no Brasil, contornando de modo original e provocativo o mito de que a sociedade brasileira foi sempre receptiva aos estrangeiros. O novo livro oferece um panorama abrangente da presença da comunidade de origem portuguesa na cidade do Rio de Janeiro. A relevância da pesquisa empreendida reside no fato de abordar a mais importante das comunidades de imigrantes do Rio de Janeiro e com influência decisiva na história da cidade. A pesquisa tem como marca a dedicação à pesquisa documental para valorizar a descrição de trajetórias de indivíduos, explorando vivências pessoais. Ao acompanhar os itinerários de vida de vários imigrantes, que passam a ser tratados pelo nome, o argumento geral aproxima muito de perto o conhecimento do processo social da experiência histórica, oferecendo ao leitor um quadro vivo e sensível da história.
De um modo geral, pode-se dizer que o mais importante do livro é destacar que os imigrantes portugueses no Rio de Janeiro se tornaram agentes decisivos da modernização da vida urbana. A análise enfatiza que a marca portuguesa da cidade do Rio de Janeiro não se explica exclusivamente pelo legado histórico da colonização da América portuguesa. A rigor, é possível indicar que ocorreu uma renovação do papel dos portugueses na cidade que decorre da progressiva substituição da concepção do português como colonizador pela ideia do português como colono. Nesse sentido, demonstrar o laço entre os portugueses imigrados e a modernidade carioca singulariza uma época histórica da cidade. Se a historiografia urbana insistiu muito até hoje no afrancesamento da cidade que perseguia um ideal de modernidade, Lená Medeiros de Menezes apresenta com muita clareza que a construção da vida moderna no Rio de Janeiro teve muito de portuguesa e que não seria demasiada a equiparação com a imagem dominante que os imigrantes italianos têm para o desenvolvimento de São Paulo.
O livro se divide em quatro partes com vários capítulos. A primeira parte fornece elementos gerais de base para a análise desenvolvida nas outras partes do livro. A partir de dados quantitativos, são caracterizados os processos e as dinâmicas migratórias de Portugal para o Brasil, identificando as conjunturas de fluxos e fatores motivadores da migração. O quadro geral evidencia uma constante da diáspora portuguesa para o Brasil, que se acentua a partir da década de 1870 até 1930, para se reforçar a partir de 1950. Em relação ao Rio de Janeiro, os números demonstram o predomínio da imigração portuguesa, sendo a proporção tamanha que de acordo com a autora se produziu a invisibilidade pela naturalização da presença. Assim, além da tradição, de tão presentes os portugueses se definiram como parte da identidade da sociedade urbana. Talvez, por isso se possa dizer que o bolinho de bacalhau é tão carioca, mesmo todos sabendo que sua origem está do outro lado do Atlântico.
A leitura da segunda e terceira partes é a mais saborosa do livro, e pode-se dizer que reúne os capítulos que constituem o coração da pesquisa empreendida. Nessas duas partes, a análise se baseia essencialmente no estudo da trajetória de grandes empresários bem-sucedidos que lideraram negócios que originaram empresas que marcaram a vida urbana do Rio de Janeiro. A cidade aparece como um espaço de grandes oportunidades para o empreendedorismo empresarial no comércio e na indústria. No tempo da Grande Imigração, a atividade econômica de empresários portugueses despontou com sucesso no comércio de joias e roupas, cafés e confeitarias, assim como na indústria têxtil, do fumo, do gelo, da farmácia, de alimentos, além de bancos, sem falar do controle de grandes veículos da imprensa. No Pós-Segunda Guerra, porém, a pesquisa apresenta como os empresários portugueses revolucionaram o segmento do varejo de alimentos pela implantação de redes de supermercados. Ainda que a maioria das trajetórias de empreendedorismo investigadas seja de homens, cabe ressaltar que um dos capítulos ressalta a participação feminina de portuguesas no mundo dos negócios urbanos, o que demonstra a atenção da autora com a questão da história de gênero. Diante do quadro histórico apresentado, fica claro que nada além do preconceito justifica continuar sustentando a imagem do português conformado com o modelo antiquado da mercearia. Na cidade do Rio de Janeiro, muitos empresários visionários portugueses criaram as condições para a modernização da vida urbana. Interessa chamar atenção para o fato de que a análise serve para contestar a representação do português como agente do atraso e do imobilismo, por contraste com as representações positivas dominantes relativas a outros grupos europeus.
A quarta parte surpreende o leitor pelo tom pessoal que a pesquisa assume, criando uma cumplicidade de quem lê com quem escreveu o livro. De um lado, o relato valoriza os bastidores da investigação, fazendo com que o leitor acompanhe de perto a experiência da descoberta das fontes de época. Contudo, é sobretudo o fato da autora tomar como objeto de estudo a própria trajetória familiar a partir do avô paterno que se cria um laço de intimidade entre os leitores e a escritora. O avô era de origem açoriana, nascido em vila da Ilha Terceira, no ano de 1867, tendo emigrado, ainda garoto, com os pais e irmãos da terra natal para o Rio de Janeiro, onde já havia parentes estabelecidos. Os motivos da emigração não são claros, mas sabe-se que, na década de 1870, os Açores viviam um quadro de crise da agricultura, base da economia regional. O fato é que já adulto a personagem central viveu no antigo bairro de Santana, área urbana nos arredores do Centro do Rio de Janeiro, conhecida pela presença de portugueses, situada nas proximidades da Praça XI, região que era conhecida pela convivência de vários grupos de imigrantes, assim como de afrodescendentes. A pesquisa genealógica vai conduzir a pesquisa a demonstrar como os casamentos no interior da comunidade de imigrantes portugueses misturavam famílias e negócios. Acompanhando os bastidores da pesquisa realizada, o leitor termina por saber que o avô da autora e seu cunhado tinham participação no “alto comércio” do Rio de Janeiro. O avô era proprietário das Sapatarias e Chapelarias Colosso, com duas lojas no Centro do Rio de Janeiro. Ao acompanhar o desenvolvimento da empresa, a autora demonstra as dificuldades da gestão do negócio e descobre que, no ano de 1916, a empresa havia passado por uma concordata preventiva e que, finalmente, foi atingida pela falência, em 1929. No primeiro caso, a autora encontra evidência de que as dificuldades financeiras do negócio se relacionavam a uma conjuntura que atingiu o comércio amplamente. O mesmo é de se supor igualmente para a época da falência, que coincide com uma crise internacional e que resultará numa crise econômica no Brasil. O fato é que a falência do negócio do avô definiu a distância econômica entre os dois ramos da mesma família portuguesa estabelecidos no Rio de Janeiro. Essa parte conclusiva da pesquisa permite uma aproximação com a vivência do processo de integração dos imigrantes na sociedade urbana local. Além disso, contrasta com as outras partes centrais do livro, ao indicar que nem tudo na experiência econômica do imigrante era sucesso. Os desafios eram grandes e os riscos marcaram muitas trajetórias individuais e familiares.
Fundamentalmente, cabe sublinhar que o livro participa da tendência recente da pesquisa histórica que define a imigração como uma experiência diversificada. Ressalta, porém, que no caso do Rio de Janeiro, os portugueses fizeram a diferença.
Resenhista
Paulo Knauss – Professor da Universidade Federal Fluminense e sócio efetivo do Instituto Histórico do Rio de Janeiro.
Referências desta Resenha
MENEZES, Lená Medeiros de. Portugueses no Rio de Janeiro: negócios, trajetórias e cenografias urbanas. Rio de Janeiro: Ayran, 2021. Resenha de: KNAUSS, Paulo. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, ano 28, n.28, p. 265-268, 2021. Acessar publicação original [DR]