PORDEUS JR. Ismael de A. Portugal em transe. Transnacionalização das religiões afro-brasileiras: conversão e performance. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2009, 168 p. Resenha de: SANTOS, Milton Silva dos. Varia História. Belo Horizonte, v. 27, no. 46, Jul. /Dez. 2011.
Os portugueses, assim como os brasileiros, estão familiarizados desde antanho com rezas, mezinhas, bruxedos, simpatias, previsões, promessas, ex-votos e toda sorte de amuletos capazes, creem muitos, de afastar malefícios e infortúnios. Isto bastaria para evitar o assombro a quem recebesse a inédita notícia de que na terra de Camões também há diversos terreiros (ou “macumbas”, diriam outros sem pudor) frequentados por lusitanos em busca de auxílio espiritual e alívio dos estados de aflição causados pela modernidade secular. Este é o cenário de Portugal em transe, livro publicado por Ismael Pordeus Jr., professor titular aposentado da Universidade Federal do Ceará e autor dedicado, há mais de quinze anos, ao estudo da expansão transnacional dos cultos afro-brasileiros nos países da Europa e, principalmente, em Portugal, “onde esse fenômeno encontra-se intrinsecamente relacionado [num primeiro momento histórico] com a migração, sobretudo a migração feminina portuguesa” (p. 9).
Desde então os lusitanos têm multiplicado o número de terreiros onde é possível vivenciar experiências antes desconhecidas, como, por exemplo, a “técnica do transe” mediúnico e suas variadas performances nos cultos afro-brasileiros transnacionalizados para Portugal. Daí o título do livro, que também pode remeter-nos à adoção de formas culturais em “mouvance“, de religiões que pululam na modernidade contemporânea, movimentando e instalando-se em diferentes países. Isso vem ocasionando não só a recomposição do campo religioso português, como também o solapamento do catolicismo, que agora divide espaço com outras orientações religiosas, incluindo as redes neopentecostais brasileiras também de olho nas aflições alheias.
Baseado numa etnografia híbrida e dialógica (Mikhail Bakhtin e Hommi Bhabha), na interpretação e não na explicação (James Clifford) e no intercâmbio entre observador e observado (Vincent Crapanzano), Pordeus Jr. abre espaço aos discursos dos próprios convertidos1 e procura encontrar, nas histórias de vida e nos relatos de conversão, o motivo para a adoção de uma religião oriunda de outro país. Seu universo de pesquisa é composto por aproximadamente vinte terreiros, percorridos ao longo de várias estadias entre os portugueses; a última delas, ocorrida entre 2005 e 2007, originou a publicação ora apresentada. A fim de analisar as formas de atuação religiosa dos novos convertidos, ele evoca Victor Turner e propõe duas categorias, que podemos chamar de descritivas e analíticas. A primeira delas é a performance do tipo “communitas” que resulta em comunidades de adeptos dispostos a receber e a incorporar “um sistema de significados” e “a construir e disciplinar uma identidade comunitária dentro dos valores” peculiares aos cultos luso-afro-brasileiros (p. 27). A segunda é a performance “anticommunitas“, estritamente mágico-religiosa e individual, dos pais e mães-de-santo portugueses e brasileiros que vão a Portugal, por curta temporada, veicular seus serviços especializados em jornais locais e atender suas clientelas nas casas de parentes consanguíneos e/ou religiosos, bem como em espaços alugados para consulta espiritual. Ao contrário da primeira, a segunda categoria não cria comunidades religiosas baseadas em laços sociorreligiosos.
A partir desse quadro teórico-metodológico delineado no capítulo um (e retomado no final do segundo) é possível acompanhar os depoimentos, identificando neles as performances “de todos aqueles que dizem e fazem as religiões luso-afro-brasileiras em Portugal” (p. 15). Dentre esses performers encontram-se Fernanda e Georgete, as “irmãs precursoras” da “nova religião”, e Mãe Virgínia Albuquerque, que fundou a primeira “casa luso-afro-brasileira com certeza”2 em 1974, ano em que a “Revolução dos Cravos” pôs fim à ditadura de Marcello Caetano, sucessor de Salazar. Essas três mulheres emigraram para o Brasil em meados de 1950, mas retornaram para Lisboa, duas décadas depois levando, na bagagem, a umbanda, “uma religião brasileira”.3 Seus relatos de conversão, assim como os depoimentos de suas filhas-de-santo portuguesas, são muito semelhantes. Através de parentes, amigos, anúncios de jornal, etc., elas acorreram aos terreiros a fim de solucionar problemas familiares, espirituais ou “dificuldades de saúde em consequência dos guias” (p. 33).
Além dessas sacerdotisas pioneiras, existem outros pais e mães-de-santo que atuam “além de Lisboa”, ou seja, em Sintra, Mafra, Cadaval, Coimbra, Porto e noutras cidades. Seus depoimentos reunidos nos capítulos três e quatro evidenciam, pode-se dizer, a segunda fase de expansão dos cultos luso-afro-brasileiros, que ocorreu, mais intensamente, na última década do século passado, período no qual alguns brasileiros desembarcaram em Portugal e lá se instalaram como sacerdotes. Dentre os brasileiros ouvidos por Pordeus Jr. estão o cearense Pai Cláudio – “Terreiro de Umbanda Caboclo Nharauê”, fundado em 2002 -, que se diz responsável por uma “rede” de três terreiros, sessenta médiuns e cerca de “200 filhos e filhas de fé” (p. 73); o pernambucano Pai Arnaldo, que viveu em Madrid (Espanha), onde dirigia um terreiro de candomblé e jurema, antes de migrar e fundar um novo terreiro na cidade portuguesa de Cadaval; o “juremeiro” Josenildo, também natural de Pernambuco, amigo e auxiliar de Pai Arnaldo; e a Mãe Virgínia de Mafra, natural do Espírito Santo, a única mãe-de-santo de nacionalidade brasileira encontrada pelo autor, dirigente da “Casa de Caridade Maria de Nazaré”, inaugurada em 2007. Outros terreiros também foram fundados na mesma década em que Portugal promulgou, em 2001, a Lei de Liberdade Religiosa.
Se os processos de transnacionalização afro-religiosa comportam “a criação e não simplesmente a repetição” (p. 141), no penúltimo capítulo da obra é possível conhecer a primeira “entidade genuinamente portuguesa”, o Marinheiro Agostinho, um marujo nascido numa localidade perto de Peniche, uma tradicional região de pesca portuguesa. Incorporado numa sessão dirigida por Pai Cláudio, performance cambaleante e típica de alguém não habituado à terra firme, Agostinho narra sua biografia de pescador e fala de suas viagens pelo Brasil durante uma longa “entrevista (…) entrecortada de risos” (p. 144). Diz que nasceu em 1874 e que morreu no mar, naufragado no álcool. Aliás, a bagaceira, “líquido de ouro”, do lado de lá, e a cachaça, o rum ou a cerveja, do lado de cá, são bebidas rituais sem as quais a “linha” da marujada ébria não trabalha. Antes de “subir” ou morrer, Marinheiro Agostinho já havia conhecido o catimbó (culto afro-ameríndio) em Sergipe e a umbanda, tendo sido doutrinado para “trabalhar no astral” (p. 144).
Tal criatividade pode provocar a ampliação e a reordenação do panteão de entidades cultuadas cujos perfis imitam ou se aproximam dos perfis sociais de alguns personagens e tipos populares e regionais, como o marujo Agostinho. Certas ressemantizações ou adaptações estimulam a aceitação das religiões afro-americanas em países cujas populações reconhecem nos guias e orixás os atributos associados aos santos da Igreja. Esse é um dos caminhos para se compreender a adesão transnacional aos cultos afro-brasileiros, conforme revela Pordeus Jr. no conclusivo capítulo sete.
Graças às pistas que abre, é inevitável sair deste “ensaio”, conforme define seu autor, sem interrogações. A propósito, convém perguntar: em razão das disputas por espaço e reconhecimento na esfera pública, as performances “communitas” dos pais e mães-de-santo portugueses vêm originando laços de solidariedade extrarreligiosa entre os seguidores e as casas de culto? Como os peregrinos-convertidos interpretam o processo de conversão? Se sentem abrasileirados e/ou africanizados pela fé? Será que estão adotando as novas religiões e descartando as identidades religiosas herdadas através das gerações? Ou se posicionam como dúplices religiosos, isto é, indivíduos que optam pelo continuum, conjugando, na vida cotidiana, as cerimônias católicas e os ritos de terreiro?
Se considerarmos especialmente o quinto capítulo onde o autor descreve as “interritualidades” da “linha das capelas”4 e do rito do “lava-pés”,5 podemos concluir que os portugueses em transe estão compatibilizando, aqui e ali, diferentes sistemas de crenças cada vez mais procurados e acessíveis no luso mercado de bens mágico-religiosos.
Em se tratando de acessibilidade, no caso desta edição – de fácil leitura e atraente tanto para especialistas em história, antropologia e ciências da religião quanto para os demais leitores interessados nos trânsitos religiosos entre Brasil e Portugal – há um glossário de termos religiosos, entre os quais a curiosa e lusitana expressão “bruxedo da intrusa”. A edição ficaria ainda mais interessante se reunisse imagens do trabalho de campo, ou melhor, dos terreiros visitados, das cerimônias públicas observadas, etc., e dos adeptos-narradores para os quais a obra foi dedicada.
1 Cit. HERVIEU-LÉGER, Danielle. A religião despedaçada: reflexões prévias sobre a modernidade religiosa. In: O peregrino e o convertido: a religião em movimento. Petrópolis: Vozes, 2008, p.31-56. Pordeus Jr. baseia-se em dois modelos descritivos ideais, a saber: o peregrino, que trilha um caminho espiritual individual, e o convertido, que escolhe a sua própria família e pertença religiosas. Em se tratando das religiões luso-afro-brasileiras, ele funde os dois modelos e propõe um terceiro, o do peregrino-convertido. Este, vindo “de outras práticas religiosas, passa por experiências em outros credos, deambula no campo religioso e converte-se a uma religião onde encontraria uma resposta para os seus problemas”. HERVIEU-LÉGER, Danielle. A religião despedaçada: reflexões prévias sobre a modernidade religiosa, p.68.
2 PORDEUS Jr., Ismael. Uma casa luso-afro-brasileira com certeza: emigrações e metamorfoses da umbanda em Portugal. São Paulo: Terceira Margem, 2000.
3 CONCONE, Maria Helena Vilas Boas. Umbanda: uma religião brasileira. São Paulo: FFLCH/USP, CER, 1987.
4 Pessoas que trabalham em capelas de Lisboa, realizando também trabalhos de umbanda.
5 Rito realizado por Mãe Virgínia Albuquerque numa Sexta-Feira Santa. O mesmo está relacionado à Última Ceia, momento em que Cristo lava os pés dos Apóstolos. Na umbanda lisboeta de Mãe Virgínia é o preto velho, espírito tido como humilde e caridoso, quem “lava cada pé da pessoa, enxuga-o e faz uma cruz na parte de cima do pé com pemba” (p. 110).
Milton Silva dos Santos – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UNICAMP. Rua Cora Coralina, s/nº, Campinas. São Paulo. 13083-896. miltonrpc@gmail.com.
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