Não pretendo privar o leitor de acompanhar o percurso da exposição histórica do autor, mas ressaltar a forma a partir da qual ele tece seu texto através de vários fios. A escrita da história, ou daquilo que se costuma considerar história legítima, passou por uma profunda transformação. O historiador profissional não é o único que se dedica ao mister historiográfico. O pluralismo que hoje reina no campo nos impede de falar de uma história com “h” maiúsculo, e é comum falar-se em história múltipla. Esta mudança não é apenas em relação a quem escreve a história, mas abrange as fontes, que se tornaram também variadas.
Faço esta consideração inicial para chamar atenção para os dois volumes da obra acima citada, pois o autor não é seguidor de Ranke, já que admite vários tipos de fontes, no entanto ele também não se enquadra em uma perspectiva de construção historiográfica na qual as fontes aparecem sem uma justificada crítica [1] que enseje sua utilização. O Dr. Francisco [2] edifica sua pesquisa sobre o porto, a barra e a cidade do Rio Grande por meio de uma tessitura que envolve fontes de naturezas diversas, sem, contudo, perder-se em um emaranhado de variáveis, já que essas fontes poderiam apontar para perspectivas diferentes. Assim, ele utiliza fontes convencionais, tais como livros sobre a historiografia referente ao porto e a cidade, tanto aquela elaborada por conhecidos autores, como também trabalha obras escritas por intelectuais locais. Trabalha com jornais [3], documentos náuticos, informações de ministérios, fotografias, relatórios da Câmara Municipal, relatórios técnicos de especialistas e relatos de viajantes estrangeiros. Além das fontes, o autor utiliza imenso material analítico, que lhe permite transformar as fontes em história do porto, da barra e da cidade do Rio Grande.
O autor elabora um trabalho no qual as fontes se articulam a uma perspectiva interpretativa que se objetiva de uma forma bem clara. Como historiador, ele mostra nessa obra que a utilização de fontes variadas só se transforma em problema para que aqueles que se debruçam sobre elas sem o devido cuidado, ou que pensam que pesquisa em história é reunir fontes com uma introdução e conclusão. O lento trabalho da articulação, do coser o dado à interpretação que leva a escrita da história, aparece nos volumes que são motivos desta resenha. O professor mostra aos leitores que o início de uma pesquisa não é buscar as fontes, mas estipular o problema de pesquisa. No capitulo intitulado “Ideias iniciais”, o autor revela de forma objetiva o problema a partir do qual edificará sua pesquisa, como também o arcabouço teórico que costura sua imensa reconstrução. O que o autor pretende: entender a criação do porto a partir de uma relação intrínseca com a cidade (p. 14). Diz o autor: “a história do porto e da barra acompanha pari passu a história citadina” (p. 13). Ele sabe que a história do porto e da barra não se esgota apenas em história específica, técnica, de engenharia náutica, mas, sendo uma extensão da cidade, era preciso pensá-la através de uma ação coletiva, dos interesses que o motivaram e que tornaram possível sua realização. Pessoas, natureza e tempos aparecem articulados por interesses que se modificam no andar das expectativas dessa sociedade em formação. A partir dessa injunção, o autor nos introduz em uma categoria chave para a compreensão de seu imenso estudo: memória. A obra se sustenta em uma conceituação de memória: “a memória constitui uma reconstrução psíquica e intelectual que acarreta de fato uma representação seletiva do passado, um passado que nunca é aquele do indivíduo somente, mas de um indivíduo inserido num contexto familiar, social, nacional; ela passa a ser, por definição, coletiva” (p. 14). Nota-se aqui o ponto de vista do autor: o porto – sua construção, com a superação das dificuldades que a barra diabólica representava – liga-se à cidade, no sentido em que seus habitantes assim o quiseram. O porto e a barra são obras do coletivo, gravadas nessa memória de todos os que fizeram a cidade e ainda a fazem. A cidade o porto são resultados da mesma motivação: transformar a região em um lugar habitável no qual os cidadãos pudessem viver e prosperar, colocando-se no mundo no qual viviam. Isso nos leva ao outro pilar da obra. Cultura é o conceito que se articula com memória para constituir a explicação para o problema do autor. Como identidade o autor nos fala de uma cultura portuária. Ele salienta o caráter provisório e variável da identidade cultural (p. 15). Esse conceito é importante, pois o autor trata de tempos variados, em que o novo se faz presente, ocasionando rupturas. Para Francisco, não existe um continuum entre passado e presente. Passado e presente são reelaborados a partir de uma criação de uma idéia de novo como ato insurgente de tradução cultural (p. 15). Ao final da página 15 da obra aqui resenhada ele sintetiza sua preocupação historiográfica: “ao abordar a formação histórica do Porto e da Barra do Rio Grande, o presente trabalho intenta uma articulação entre memória e identidade cultural, empreendendo uma análise que se coaduna com o preceito de que a memória é um elemento essencial do que se costuma chamar de identidade, individual ou coletiva…”. Ao marcar sua análise a partir de uma abordagem ancorada nos conceitos de memória e identidade cultural, o autor nos leva por uma obrigatoriedade a um terceiro conceito: o tempo.
É no tempo que as identidades assumem suas formas e a memória plasma suas recordações, por isso o conceito de tempo é também importante para o autor, e transparece na própria organização dos capítulos dos volumes [4]. O tempo, para Francisco, é social, uma categoria do pensamento, e, como tal, o resultado de uma elaboração ou construção simbólica solidária com o sentido e os recortes gerais de cada cultura (p. 16). Essa organização em tempos que autor insere em sua obra não tem um caráter de “unidades fechadas e estanques, já que devem ser levados em conta os fenômenos das continuidades e das rupturas nos tempos históricos, de modo que tais tempos, concernentes à história portuária rio-grandina, aparecem de forma inter-relacionada, interada e até alternada entre si, apresentando vários elementos constitutivos de continuidade e, por vezes, alguns níveis de rupturas” (p. 16-17).
A narrativa da obra nos mostra de uma forma dinâmica a presença dos atores sociais, em todos esses tempos que compõem os capítulos, a aspirar, a planificar, a concretizar, a conservar e a expandir idéias, atos e edificações (p. 17). Em cada momento desse movimento do tempo veremos os choques, as articulações, as opiniões de autoridades e dos representantes dos cidadãos na luta pela efetivação do porto.
Optei nesta resenha em deter-me nas idéias iniciais, pois me parece que é nesse capitulo que o Prof. Francisco revela sua maturidade enquanto historiador, na medida em que sabe escolher seus instrumentos de pesquisa. É nas idéias iniciais que notamos e podemos antever os caminhos sobre os quais trilhou seu trabalho. Suas escolhas metodológicas mostram-se corretas, já que ao chegarmos ao fim dessa obra monumental percebemos logo sua importância para a historiografia portuária. A narrativa flui de forma articulada e centrada, já que em nenhum momento o autor perde a direção de suas intenções. Viajantes falam em seus tempos de uma natureza bravia, da “barra diabólica” funcionários de todos os tempos – imperiais, republicanos, provinciais, municipais – se cruzam nos periódicos, ora apoiando, ora discordando dos técnicos. Ao lutar pelo porto eles acreditavam lutar também pela cidade. Assim como o porto é importante para a cidade, esta obra editada pela Companhia Rio-Grandense de Artes Gráficas (Corag) é primorosa, é um marco na história portuária brasileira.
Notas
1. O autor mostra essa constante preocupação quando se refere à forma a partir da qual os diários dos viajantes se tornam fontes. Ver p. 18-19.
2. O autor é professor do curso de História, vinculado ao ICHI-FURG; doutor em História pela PUCRS, e pós-doutor pelo ICES – Portugal. Tem desenvolvido um trabalho operoso na construção de uma historiografia voltada ao conhecimento da cidade do Rio Grande. Ele vem elaborando uma obra composta de vários títulos que se caracterizam por um domínio absoluto das fontes a partir de objetivos bem claros. Abaixo cito alguns livros de uma produção intelectual bem desenvolvida. Porto do Rio Grande: uma secular aspiração que se tornou realidade (uma introdução ao tema). Porto Alegre: Corag, 2007. 184p. Uma igreja, uma comunidade: os 250 anos de história da Catedral de São Pedro. Rio Grande: Ed. da FURG, 2005. 184p. O discurso político-partidário sul-rio-grandense sob o prisma da imprensa rio-grandina. Rio Grande: Ed. da FURG, 2002. 516p. A pequena imprensa rio-grandina no século XIX. Rio Grande: Ed. da FURG, 1999. 384 p.
3. O professor Francisco é um dos historiadores que, no Brasil, utiliza a imprensa como fonte, já tendo produzido vários títulos. Ele define os jornais como arquivos do cotidiano. No trabalho resenhado a imprensa é uma das fontes mais significativas. Ver p. 17-18.
4. Depois do capítulo dedicado às considerações da forma de construção da obra, seguem, por ordem: “Tempo de aspiração”; “Tempo de planificação”; “Tempo de concretização”; ”Tempo de encampação”; “Tempo de conservação”; “Tempo de expansão” e “Idéias finais”.
Resenhista
Jussemar Weiss – Professor do ICHI-FURG; Doutor em Educação – UFRGS.
Referências desta resenha
ALVES, Francisco das Neves. Porto e Barra do Rio Grande: história, memória e cultura portuária. Porto Alegre: Corag, 2008. Resenha de: WEISS, Jussemar. Historiae. Rio Grande, v.1, n.1, p. 151-154, 2010. Acessar publicação original [DR].
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