Examinar processos sócio-políticos “à quente”, em meio ao desenrolar das tramas, é um desafio posto aos historiadores dedicados ao chamado Tempo Presente, campo do conhecimento ainda alvo de fortes críticas, desconfianças e de sua própria precariedade, pois os que incursam nele podem estar munidos de perspectivas construídas anteriormente ao “agora”, mas desprovidos do conhecimento profundo sobre detalhes mais recentes. Embora Marc Bloch tenha, desde o século passado, comprovado que o presente pode e deve ser investigado pelos profissionais da história, ao desvelar as razões pelas quais, segundo ele, a França sucumbiu tão rapidamente ao nazismo em 1940 no seu icônico A Estranha Derrota, ainda existe resistência, dentro e fora do ofício, em reconhecer essa possibilidade e esse dever.
Talvez por essa razão apenas dois historiadores tenham publicado suas reflexões no livro Por que gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil, publicado em 2016 pela Boitempo sob a organização de Ivana Jinkins, Kim Doria e Murilo Cleto. Luíz Bernardo Pericás e o próprio Cleto são os únicos nomes da área entre os 23 ensaístas da obra. Os demais textos são desenvolvidos por sociólogos e cientistas políticos, em grande maioria, jornalistas, militantes estudantis, advogados e até mesmo políticos de carreira, tais como Ciro Gomes e Roberto Requião. Pouquíssimo tempo após ser decretado o impeachment da então presidenta Dilma Rousseff, os autores reunidos no livro tentam (e conseguem) explicar como e porque a sua deposição e os desdobramentos políticos resultantes dela configuram a existência de um golpe parlamentar. Análises históricas serviriam menos para alcançar este objetivo? Mesmo em análises curtas, os ensaios são geralmente diretos e, tanto quanto possível, aprofundam importantes análises referentes ao golpe parlamentar de 2016 e suas possíveis consequências pouco tempo após o desfecho de seu primeiro ato. Há um consenso entre os autores: percebem o golpe como uma manobra para retirar Dilma do poder visto que, após a crise econômica de 2008, sua utilidade para as classes superiores e o equilíbrio entre os antagonismos de classe proporcionados por sua herança lulista se esgotaram. O neodesenvolvimentismo petista, no qual essas classes mantinham seus privilégios mesmo com ganhos significativos para as classes menos favorecidas, parece não ter suportado o peso das necessidades de ganho do capital financeiro após a crise e a saída de Lula do governo em 2010. Ao mesmo tempo, a presidenta era julgada e atacada por parlamentares acusados e condenados em casos de corrupção, atribuídos a ela crimes de responsabilidade não comprovados. Tudo isso com o aval de grande parte da sociedade e da imprensa que deliberadamente negligenciaram os escândalos envolvendo políticos de oposição em favor de uma política voltada aos seus interesses individuais.
Diante desse panorama, os autores se dedicam a fazer prognósticos sobre os desdobramentos do golpe recém-iniciado, mas não sem antes se dedicarem aos estudos de seus antecedentes, como o fazem Marilena Chaui, Armando Boito Jr., Marina Amaral, Ruy Braga, entre outros. É interessante observarmos como, numa leitura do livro feita quase dois anos após o impeachment de Dilma, as reflexões preveem os retrocessos e o desmanche de políticas sociais redutoras de desigualdades perpetradas pelos políticos que se assenhoraram do poder. O programa de governo notoriamente liberal do então presidente interino Michel Temer sequer havia se iniciado vigorosamente quando Leda Maria Paulani, Gilberto Maringoni, Eduardo Fagnani, Juca Ferreira, etc., alertavam para as consequências de seu impacto no país, nas políticas exteriores, na previdência social, no campo, na cultura e em diversos outros âmbitos, como pode ser visto no livro.
A contribuição do sociólogo e filósofo brasileiro radicado na França Michael Löwy, um dos mais importantes nomes entre os pensadores marxistas contemporâneos, destaca não apenas os antecedentes do golpe, mas também o miolo de sua articulação e as possibilidades existentes para suas ramificações. Sem dúvidas, trata-se de uma importante contribuição ao livro por mostrar como a democracia atrapalha o trabalho do capitalismo em países periféricos, com quem convive para fins de legitimação. O autor procura evidenciar como essa democracia vinha sendo observada como desgastante para o capital financeiro, ressentido com a possibilidade mínima dada às classes sociais menos favorecidas por meio de direitos e mecanismos de assistência muitas vezes financiados por ele mesmo, característica marcante da dinâmica petista de conciliação entre as classes.
No que tange ao receio em relação às possíveis perdas de direitos sociais conquistados recentemente, Renan Quinalha, Djamila Ribeiro, Tamires Gomes Sampaio, Lira Alli e Guilherme Boulos e Vitor Guimarães destacam como a comunidade LGBT, as mulheres, os negros, os educadores responsáveis por reduzir o preconceito e o racismo, os estudantes, bem como os movimentos de trabalhadores sem teto, acumulariam reveses quanto às suas já frágeis participações políticas, mesmo durante os governos do PT, equivocadamente distanciado por parte da sociedade de um perfil liberal e socialdemocrata. Depois do golpe, observamos uma tendência de nomeação de ministros quase que exclusivamente do gênero masculino e de etnia branca por Temer, o acirramento da repressão a movimentos estudantis, a trabalhadores sem teto; o avanço de discursos favoráveis ao projeto “Escola Sem Partido”, entre outros afunilamentos de importantes projetos ligados às políticas públicas de inserção social das chamadas minorias (grupos sociais que dispõem de menor poder institucional), conquistadas mais por méritos dos movimentos sociais do que pelas políticas do PT.
Os prognósticos evidenciaram-se certeiros. Foram possíveis pela percepção dos autores quanto a um importante fator impulsionador do movimento golpista: o ressentimento da classe média em relação às conquistas sociais das minorias políticas, sobretudo no que se refere aos pobres. Para essa classe intermediária, desejosa de penetrar no campo das classes superiores, a meritocracia e a exclusividade, tão adoradas por seus membros, eram negligenciadas por um Estado assistencialista e dedicado a “dar o peixe” ao invés de “ensinar a pescar”. Essas pessoas foram massivamente às ruas sob a justificativa de combater a corrupção – como se os defensores de Dilma, do PT ou simplesmente da legitimidade eleitoral fossem favoráveis a essa prática–, ao mesmo tempo indignados quanto à redução das diferenças sociais (das quais parte dessa mesma classe média havia se aproveitado para deixar a chamada Classe C) promovidas pelo governo.
Nesse sentido, o livro nos faz constatar como os dois governos Lula e o primeiro da presidenta Dilma mantiveram intactos os privilégios das classes superiores, enquanto forneciam a segmentos das classes mais baixas avanços, sobretudo econômicos, principalmente pela intensa liberalização de crédito e do acesso dos mais pobres a patamares econômicos mais elevados com o incentivo ao comércio, inflando uma classe média que se voltaria contra estas mesmas políticas. O fato é que a liberalização de crédito e o estímulo ao comércio não foram acompanhados de investimentos nos mecanismos capazes de avaliar esses processos, de criticar a posição subalterna das classes, de suprimir as noções de meritocracia e de justiça social deturpada pelo patamar social ao qual pessoas mais humildes começavam a adentrar. A educação seria o melhor instrumento para isso, não o simples aumento da distribuição de renda desacompanhada do desenvolvimento do criticismo.
Este e outros tipos de problemas, verificados com a leitura de Por que gritamos golpe?, parecem corresponder a um processo novo que, embora possua evidentes elementos de continuidade em relação a outros eventos congêneres, como o golpe de 1964, necessita ser compreendido em sua imediatez para sugerir rapidamente formas de combater os golpistas, em particular idealizando um redirecionamento para as forças de esquerda. Assim, diante desse caráter urgente, digressões históricas parecem possuir pouco espaço na obra, ao menos se pensarmos na história como ela é corriqueiramente desenvolvida, ou seja, uma ciência do passado e não, como dito por François Dosse, uma área capaz de examinar o presente como intersecção entre ele e a longa duração, de auxiliar na compreensão sobre como o presente se constitui no tempo (DOSSE, 2012).
Buscando essa perspectiva, a chamada História do Tempo Presente nos serve para averiguar, dentre tantas outras coisas, como o passado se faz presente, como seus elementos parecem fazer sentido na contemporaneidade mesmo quando percebidos como superados. Vimos, desde a febre antipetista dos últimos anos, alusões aos militares como única solução à crise política. Observamos o avanço do conservadorismo sobre o ensino e sobre as artes. Verificamos o ódio à presença das classes menos favorecidas em locais antes reservados aos ricos. Tudo isso pode ser investigado sob a luz dos embates entre diferentes culturas políticas há décadas em desenvolvimento, da tradicional repulsa das classes superiores ao contato com os pobres, do revezamento das ordens políticas no poder sem, contudo, perceberem as peculiaridades do presente.
Se um dos mais sérios problemas envolvendo a história do presente é a impossibilidade de mensurar os efeitos futuros do acontecimento, estando ela limitada a prognósticos, por outro lado, por essa mesma razão, pode ser vista como um meio de desfatalização do futuro. Isso é o que parece faltar na obra por nós esmiuçada, onde mesmo os mais certeiros prognósticos aludem tão brevemente aos processos históricos, geralmente usados quase como ferramentas de apoio, que parecem partir de um começo completamente novo. Para além da persistente arena das lutas de classes, ainda que fundamental para a compreensão do golpe de 2016, a obra evoca pouco o continuísmo golpista das classes privilegiadas e as formas em que ele pode ser compreendido como eco de um passado ainda ouvido pela sociedade brasileira.
Como dito por Bloch no já mencionado A Estranha Derrota, não basta apenas saber que as instituições francesas foram responsáveis pela vergonhosa ocupação nazista pós-1940; mais do que isso, é fundamental compreender por qual razão o povo francês foi tão apático diante desse fato. Por que gritamos golpe? é um excelente compilado de reflexões sobre o nosso passado muito recente, ainda em lastimável progressão. Por meio do livro é possível fazer não apenas uma “árvore genealógica” do processo golpista, como também perceber seus detalhes em múltiplos âmbitos. A obra certamente se configura como uma ferramenta de utilidade incontestável para reflexões sobre o atual cenário político brasileiro e sobre como estamos, de longe ou de perto, profundamente envolvidos. Resta a nós saber por que, apesar de tantos gritos de golpe, essa denúncia parece ser insuficiente para freá-lo.
Referências
BLOCH, Marc. A estranha derrota. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
DOSSE, François. História do Tempo Presente e historiografia. Tempo & Argumento, Florianópolis, vol. 4, n. 1, p. 05-22, jan./jun. 2012.
Resenhista
Pedro Carvalho Oliveira – Doutorando em História pela Universidade Estadual de Maringá. Integrante do Laboratório de Estudos do Tempo Presente (LabTempo-UEM) e colaborador do Grupo de Estudos do Tempo Presente (GET) da Universidade Federal de Sergipe. Orientador: Prof. Dr. Sidnei J. Munhoz (PPH-UEM). pedro@getempo.org.
Referências desta resenha
JINKINS, Ivana; DORIA, Kim; CLETO, Murilo (Orgs.). Por que gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2016. Resenha de: OLIVEIRA, Pedro Carvalho. Por que gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil. Faces da História, Assis, v.5, n.1, p.354-357, jan./jun., 2018. Acessar publicação original
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