A ideia desse dossiê partiu da sensibilidade de Sergio Nunes Pereira (UFF), a quem agradeço a gentileza do convite e todo o aprendizado nos últimos vinte anos. Imediatamente, concebi tal projeto como uma empreitada coletiva e internacional. Para tanto, tive a fortuna de ter parceiros generosamente inteligentes como Laura Péaud (Université Grenoble Alpes) e Archie Davies (The University of Sheffield), cujos interesses genuínos na construção de histórias da geografia para além dos centros e línguas canônicos atuaram como bússola a sintonizar nossas ideias. Enfim, tendo em vista o ocaso sofrido pelos geotradutores no interior da academia, não posso furtar-me a dizer que o autor estrangeiro que eu mais ansiava ler, e cujas obras sobre espaço até o final do século passado ainda não haviam sido traduzidas para o idioma de Maria Carolina de Jesus, chama-se Henri Lefebvre. Assim, que me seja permitido fazer uma menção honrosa ao trabalho realizado silenciosa e meticulosamente por Margarida Maria de Andrade (USP) e Sergio Martins (UFMG), pois ambos possibilitaram o acesso ao revolucionário Lefebvre no conforto da minha língua brasileira.
Se trata de una toma de postura marcada por mi propia subjetividad e historia: un intelectual blanco, macho, hispanohablante, lleno de contradicciones, pero en esfuerzo de inserción en un proceso de aprendizaje marcado permanentemente por la crisis, la ruptura y la afectación de la relación con otros y otras desplazados y desplazadas en el decir y en el saber. Queremos pensar esta comunicación desde la situación límite del sabernos parte de un espacio de poder, pero en permanente confrontación de uso y reflexión con otras formas de saber, de pensar, de decir y de callar. (Garcés, 2007: 219)
Prólogo
1 Num tempo que pode parecer muito distante para todos aqueles que não conheceram a experiência espaço-temporal pré-internet, na virada do século vinte para o vinte e um praticamente todos os periódicos nacionais de geografia ainda eram impressos e os internacionais apenas começavam a digitalização de seus acervos. Na Faculdade de Formação de Professores da UERJ localizada no município de São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro, o curso de Licenciatura em Geografia inaugurado em 1994 dava seus primeiros passos graças aos esforços de seu corpo docente e de estudantes cujas origens sociais tornavam o acesso ao ensino superior coisa rara entre seus familiares.
2 Igualmente modesta era a biblioteca e, assim, as pesquisas às coleções da UFRJ, UERJ e, pela proximidade, da UFF eram frequentes. Fundado em 1947, o curso de Geografia desta instituição contava com uma biblioteca razoável, dispondo de periódicos estrangeiros como o norte-americano Antipode. A Radical Journal of Geography e, nele, um paper assinado por um brasileiro porém inédito em língua portuguesa: Society and space: social formation as theory and method, publicado por Milton Santos no final dos anos setenta (Santos, 1977).
3 Prevendo a necessidade de ler em inglês vislumbrando prosseguir os estudos na pós-graduação, ainda que limitado por conhecimentos superficiais adquiridos na escola mas sobretudo por conta própria, no ano de 2001 uma monografia de final de curso levou um aluno de geografia da FFP ao artigo de Santos acima mencionado. Seu parco domínio da língua inglesa fez com que ele citasse uma passagem porém sem vertê-la para o português. A reação do professor foi a de entender que aquela havia sido uma atitude de classe, ou seja, o aluno, supostamente conhecedor do idioma por tê-lo acrescentado ao seu trabalho, teria sido social e intelectualmente insensível para com os que não liam o idioma de Angela Davis. Conclusão: língua e tradução eram coisas sérias… embora indignas de atenção.
Um olhar desde o Brasil
4 Parte das origens do presente dossiê deve ser encontrada no IV Encontro Nacional de História do Pensamento Geográfico e II Encontro Nacional de Geografia Histórica. Ocorrido na sempre receptiva cidade de Belo Horizonte de 5 a 9 de dezembro de 2016, tive a chance de apresentar, na mesa “Singularidades e trajetórias do pensar/fazer geográfico”, o primeiro esboço do que denominei Notas preliminares sobre tradução e história da geografia no Brasil (1930-2016).
5 Ao procurar um tema de pesquisa nacional, pouco explorado e com dados suficientes para ocupar-me por alguns bons anos, e já interessado no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, passei o primeiro semestre daquele ano folheando as coleções digitais dos periódicos Revista Brasileira de Geografia e Boletim Geográfico. O prazer de descobrir a história da geografia brasileira contemporânea e a quantidade e a qualidade descritiva e analítica, empírica e teórica, cartográfica e fotográfica (transportando-nos rumo às paisagens e populações sobretudo das Regiões Norte e Nordeste de tal forma que, por vezes, tinha a sensação de quase tocá-las) de um acervo capaz de percorrer boa parte do século vinte só não foi maior que minha surpresa diante da recorrência de traduções publicadas pela Revista Brasileira de Geografia (1939-1996) mas, principalmente, pelo montante delas nas páginas do Boletim Geográfico (1943-1978) (Ribeiro, 2018).
6 Entre as quase cem da primeira e as mais de quatrocentas da segunda, foi impossível deixar de imaginar o potencial e o significado desse material em termos de intercâmbios científicos outrora promovidos por geógrafos brasileiros. Ato contínuo, ao olhar para o tempo presente notei que as duas revistas brasileiras dedicadas com mais afinco à tradução, a Espaço & Cultura desde 1995 (NEPEC/UERJ) e, sobretudo, a GEOgraphia (PPGEO/UFF) a partir de 1999, não estavam sozinhas. Elas integravam uma dinâmica pertencente a uma tradição geotradutora brasileira forjada há décadas. Como as modalidades de produção e circulação do conhecimento haviam mudado bastante no país desde o concomitante fim da Revista Brasileira de Geografia em 1996 e a propagação dos cursos de mestrado e doutorado em geografia, julguei reunir os quatro periódicos em tela a fim de identificar possíveis regimes de tradução e seus papéis na constituição da história da geografia entre nós.
7 Pessoalmente, vislumbrar o conjunto dessas traduções foi, mutatis mutandis, uma experiência epifânica. Afinal, foi a primeira vez em que conscientizei-me de que meu trabalho como tradutor amador de geógrafos clássicos e contemporâneos vinha ocorrendo de forma automática, mecânica ou, digamos, transcritiva — limitando-se à correspondência vocabular entre idiomas. Quando do lançamento da coletânea Vidal, Vidais: textos de geografia humana, regional e política seis anos depois do meu ingresso no mundo da tradução (Haesbaert et al., 2012), eu nada dissera sobre o que significava verter um intelectual francês de notório destaque na interpretação da modernidade e defensor da causa imperial para o Brasil do século XXI, ou seja, para uma antiga colônia de Portugal cujos dois pioneiros cursos universitários de geografia tiveram como ato fundador a chegada de uma Missão Francesa na década de 1930 — e que, desde então, tem como uma de suas práticas mais recorrentes a tradução de geógrafos do Hexágono. Em outras palavras, ao exercer o ato de traduzir, a condição de geógrafo crítico não foi suficiente para que eu concebesse que tanto o objeto do trabalho quanto o sujeito que o realizou careciam ser espacializados mas, sobretudo, descolonizados. Um autor, sua língua e seu texto não se movimentam sozinhos e nem ao acaso. Levado pela sedução estilística, simbólica e intelectual da língua e cultura francesas, ceguei os olhos para a geopolítica do conhecimento que cercava e, simultaneamente, cerceava minha prática. Muito embora meu envolvimento com Vidal de la Blache sempre intentou efetuar uma leitura crítica (para além de maniqueísmos) do seu legado, eu não tinha consciência do alcance político das línguas, das relações assimétricas entre elas e seus efeitos práticos na produção e circulação científicas. A tradução parecia um fim em si mesmo (Ribeiro, 2020).
8 Para tentar explicar esse estado de coisas — o qual, evidentemente, está longe de ser resultado apenas de escolhas pessoais, mas de movimentos histórico-sociais mais amplos (os quais nem sempre percebemos com nitidez) ou, em outras palavras, das tensões entre indivíduo e sociedade conforme nos ensinou Norbert Elias (Elias, 1994 [1987], 1995 [1991]) —, minha suposição é a de que a tradução tem sido representada pela geografia brasileira como cópia, reprodução, transcrição de algo já existente. Por sua vez, ecoando no fundo a dicotomia moderna entre ciência e arte, realidade e ficção, essa representação parece advir de uma atitude simplista em torno do próprio significado das letras e da literatura para a geografia em geral ao tomar escrituras, línguas e palavras apenas como meios de transmissão. Por conseguinte, a tradução estaria circunscrita à dimensão linguística no sentido mais superficial do termo, ora entendida como mera troca de vocábulos, ora como acessório cultural erudito a adornar a pesada rotina universitária. Complementar a essa hipótese, não me resta a menor dúvida de que a geografia brasileira mantém uma relação de subordinação intelectual para com a “civilização” francesa e sua língua, o que lança uma cortina de fumaça sobre as dimensões política e imperial de uma interlocução que tem sido assimétrica e, não raro, unilateral. A “colonização do imaginário” (Quijano, 2000) deitou raízes tão profundas que temos dificuldade de enxergar de outra forma. Ela nos conduz a reproduzir, inconscientemente, estruturas de poder e de política travestidas de ciência. Neste jogo, a tradução tem assumido o centro da cena — ainda que na condição de misteriosa personagem mascarada. Não cabe, portanto, nem elogio apologético, nem silêncio negligente, mas, antes de qualquer coisa, suspeitar dos tradutores pois, diferente do que parece à primeira vista, não necessariamente eles são bons leitores. Em seu instigante editorial, Archie Davies parece caminhar em semelhante direção.
9 Enfim, as contradições são evidentes: um tema que se desloca não tem recebido atenção por parte daqueles que estudam deslocamentos; um campo que não para de traduzir há oitenta anos não se percebe como campo tradutor por excelência; um corpo profissional majoritariamente monoglota e em boa medida dependente de aportes estrangeiros não só não pensa a respeito das línguas como desvaloriza o material traduzido consumido diuturnamente por ele próprio e seus alunos. Contudo, devo confessar com toda sinceridade que entendo bem esses gestos. Afinal, duvidar da língua, da leitura e, claro, da própria escrita é algo perturbador. É admitir que o solo o qual pisamos desde criança e que afetivamente nomeamos de língua materna não é tão confiável quanto parece. Logo, negá-lo é uma atitude — psicanalítica, ousaria dizer — absolutamente compreensível. A propósito, a bibliografia associando tradução e psicanálise, com destaque para a transferência que o tradutor estabelece com o traduzido (vide o caso de Betty Milan com Jacques Lacan, p.ex. [Milan, 2021]), é de muita valia para o entendimento dessa negação (Porter, 1989; Ottoni, 2005; Frota, 2015). Não custa nada lembrar que o próprio Freud traduziu John Stuart Mill do inglês para o alemão (Gay, 1989: 50 [1988]).
10 Por outro lado, reagindo a uma conjuntura iniciada na virada do século pela literatura anglo-saxã (Minca, 2000; Garcia-Ramon, 2003; Aalbers, 2004 [para citar apenas alguns]), nos últimos anos alguns geógrafos brasileiros com estreitas conexões com o exterior têm redigido notas, artigos e até mesmo traduções do português para o inglês demonstrativas não só do interesse acadêmico pelo tema, mas da insatisfação diante da hegemonia científica do inglês e do poder excludente das línguas dominantes na produção e circulação do saber em congressos, periódicos e livros supostamente internacionais, apontando (direta ou indiretamente) a urgência de uma postura crítica face à língua e à tradução como instrumentos de dominação colonial e neocolonial (Novaes, 2015; Germes e Husseini de Araújo, 2016; Silva e Ornat, 2016; Melgaço, 2017; Ribeiro, 2019; Lamego, 2020).
11 De toda maneira, é preciso dizê-lo com todas as letras: a tímida participação dos geógrafos brasileiros ao redor das questões acima deve ser revertida precisamente pelo fato de que temos larga experiência acumulada na área de tradução. Assim sendo, se nos permitirmos um exercício de imaginação política e definíssemos tradução como critério de classificação científico, o Brasil seria imediatamente alçado ao status de centralidade, enquanto as nações “do Norte” passariam à condição de periferia. Se traduzir indica abertura de pensamento (qual tipo de pensamento?) e não traduzir representa certa dose de provincianismo (sempre à espreita em um país como o Brasil), então a geografia brasileira não só pode ser considerada suficientemente internacional (o que isso significa exatamente, porém?) como tem muito a dizer em termos de recepção e difusão. A tradução nos permite pensar em uma história global da circulação do conhecimento geográfico e, neste cenário, valorizar o papel do Brasil como um dos principais nós dessa rede desigual e contraditória de conexões.
12 Para tanto, urge desnaturalizar os tradutores e seus produtos inscrevendo-os na posição de agentes e fenômenos sociais, culturais e geopolíticos, conforme nos ensinam — com acentuada inspiração geográfica via spatial turn, grife-se — os chamados translation studies (Tymoczko, 2000; Venuti, 2004; Apter, 2006; Spivak, 2010; Sakai, 2010; Kershaw e Saldanha, 2013; Italiano, 2016). Reelaborando e expandindo as abordagens tradicionalmente linguísticas da questão, a literatura em tela opera com vistas a desnaturalizar e a socializar (no sentido de aproximar-se das Humanidades) a tradução. “Assim como a fronteirização [bordering] não diz respeito somente à demarcação de terras, aqui tradução não versa apenas sobre ‘linguagem’”, assinala Sakai (Sakai, 2009: 71). Portanto, mais que transcrever palavras de um idioma para outro, o tradutor, essa espécie sui generis de migrante, encarna a condição de agente social deslocando ou — complexificando o processo — “translocando” (Bandia, 2014) visões de mundo (Schulte, 1992; Italiano, 2012; Venuti 2013) a ponto de criar um espaço “de encontro mental onde barreiras de linguagem e cultura se entrecruzam” (Rupke. 2000: 209) de modo bastante original (o in-between de Bhabha? [1994]), acrescentaríamos. Por essas e outras razões, acentue-se que estamos diante de um métier atravessado do início ao fim e em vários aspectos pela dimensão ética (Ricœur, 2011 [2004]; Spivak, 2000 [1999]) e, claro, (geo) política (Spivak, 2004 [1993]; Casanova, 2015; Aubenas, 2016; Cassin 2018), tal como Laura Péaud expõe em seu editorial as reações negativas de parte da intelectualidade francesa a algumas traduções — como se fossem invasões bárbaras a perturbar o conforto do lar monolíngue.
13 Cenário traçado, incorporar esse universo, esse “translational turn” (nas palavras de Bachmann-Medick [2009]) às Humanidades, com tradução, tradutores, línguas e saberes devidamente politizados (cf. a ótima discussão sobre tradução “cultural” realizada por Buden e Nowotny, 2009; Simon, 2009; Bery, 2009; Cronin, 2009), configura uma agenda desafiadora para quem deseja ultrapassar certos cânones da ciência moderna eurocêntrica tais como o nacionalismo monoglota, as conformações disciplinares baseadas em uma divisão artificial de objetos e temas de pesquisa, a separação entre Ciências e Letras e a dicotomia sujeito-objeto. Não por coincidência, língua, linguagem e, em certa medida, tradução têm sido recorrentemente problematizadas como um dos fundamentos do pensamento decolonial (Fanon, 2008 [1952]; Anzaldúa, 1981, 1987; Gonzalez, 1981 [1980], 1988; Spivak, 2010 [1985]; Kilomba, 2019 [2008]; Mbembe, 2018 [2013]), sendo portanto incontornáveis na elaboração de geografias alternativas. Particularmente, ressalto a envergadura dos conceitos de geopolítica do conhecimento, epistemologia territorial, pensamento de fronteira e tradução decolonial arquitetados por Walter Mignolo (Mignolo, 1995, 2000, 2012).
14 Com base nesses referenciais, e cientes de que o Brasil tem sido um rico laboratório para os estudos sobre tradução tanto do ponto de vista empírico (Gonçalves Barbosa e Wyler, 2001 [1998]; Ramicelli, 2009; Hanes, 2014; Oliveira, 2015) quanto teórico (de Campos, 2006 [1963]; Rajagoplan, 2000; Santoro e Buarque, 2018; Franchetto, 2018) — principalmente à luz do conceito de antropofagia delineado por Oswald de Andrade (de Andrade, 2017 [1928]) —, o esboço de uma agenda de investigação envolvendo tradução e geografia no Brasil me conduz a algumas perguntas básicas:
1. Qual é o perfil do tradutor de geografia (geotradutor, cf. nosso artigo nesse dossiê), que tipo de leitor ele é, como ele se relaciona com os autores e temas traduzidos e em que medida seu trabalho está associado (ou não) a redes internacionais?
2. Quais são as principais revistas e editoras que têm lançado mão dessa estratégia de atração de leitores tão sedutora em um país de língua dominada, quais conteúdos têm sido difundidos e de que maneira seus êxitos estão relacionados a isso?
3. Quais geógrafos, idiomas e nacionalidades têm sido contemplados com traduções, por quais razões e em quais períodos históricos?
4. Como avaliar o impacto de uma tradução sobre determinado movimento intelectual?
5. Como reconhecer linhas de força e rupturas em uma dada área temática da geografia privilegiando a tradução como rastro científico a ser seguido?
6. Como o estudo das traduções pode contribuir para revelar as políticas de intercâmbio epistemológico, cultural-idiomático e geopolítico formativas da história da geografia no Brasil?
15 Por sua vez, essas interrogações nos levam a refletir sobre temas os mais variados. Baseado em nossos levantamentos preliminares, três deles têm chamado bastante atenção.
16 Primeiro, na medida em que a fundação da Revista Brasileira de Geografia coincidiu exatamente com o início da Segunda Guerra Mundial, seria de enorme valor investigar a recepção dos geógrafos alemães desde então até o final do conflito. Cientes de que a chegada dos intelectuais franceses (já comentada anteriormente) para a abertura dos cursos de Humanidades nas universidades de São Paulo e do Brasil ocorrera poucos anos antes e que o Estado Novo de Getúlio Vargas havia se aproximado do III Reich antes de optar pelos Aliados, elementos não faltam para uma abordagem geográfica sobre a questão.
17 O segundo tópico a ser problematizado diz respeito à circulação estrangeira durante o regime militar, pois é curioso observar que um geógrafo incontestavelmente marxista como Pierre George, cujas conexões políticas o levaram do Partido Comunista Francês à própria União Soviética e ao aprendizado do idioma russo (vide Pedrosa, 2013), tenha sido traduzido em português nos anos sessenta e sistematicamente nos anos setenta. Em contraste, o afamado livro de Yves Lacoste La géographie, ça sert, d’abord, à faire la guerre, originalmente publicado em 1976 e tido como texto-chave pelos representantes da vertente crítica no Brasil entre o final dos anos setenta e decorrer dos oitenta, só recebeu versão em português brasileiro em 1988 (uma versão de Portugal circulava “ilegalmente”, conforme relatos orais bastante difundidos), ou seja, quatro anos após o fim do regime autoritário (Lacoste, 1988 [1976]).
18 Por último, uma alternativa à história da geografia brasileira protagonizada por homens pode ser encontrada na notável continuidade das mulheres tradutoras (geotradutoras, melhor dizendo), tal como o envolvimento de várias geógrafas do IBGE — Olga Maria Buarque de Lima Fredrich à frente (Ribeiro, 2018; Siebert e Ribeiro 2019; Siebert, 2019) — enriquecendo as páginas do Boletim Geográfico durante mais de trinta anos (1943-1978), e as uspianas Liliana Laganá Fernandes e Maria Cecília França impulsionando o materialismo geográfico nacional ao verter nomes como Massimo Quaini, Claude Raffestin, Élisée Reclus e Yves Lacoste entre o final dos setenta e decorrer dos oitenta.
19 Em resumo, existe um capítulo da história da geografia brasileira que só poderá ser contado tomando a tradução como foco de pesquisa, pois sua capacidade de transportar ideias — possibilitando, assim, a modernização (aparentemente, pelo menos) do campo — e de difundi-las junto a um público amplo vêm tendo papel central — conquanto menosprezado. De toda maneira, o presente dossiê só se justificará se atentar para a consciência dos leitores sobre os múltiplos efeitos das traduções e da agência dos tradutores, contribuindo para o fomento a uma agenda de investigação sobre seus impactos político-intelectuais na formação e no desenvolvimento da ciência geográfica brasileira em um contexto geopolítico hierárquico e assimétrico.
20 Do contrário, seremos obrigados a dar razão ao astuto professor de outrora e, ampliando o escopo de sua crítica, admitir que o silêncio dos geógrafos brasileiros em relação à língua e à tradução — inclusive o dele próprio — é, definitivamente, uma atitude de classe.
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Organizador
Guilherme Ribeiro – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Departamento de Geografia, Programa de Pós-Graduação em Geografia, Laboratório Política, Epistemologia e História da Geografia (UFRRJ/ DGG/PPGGEO/LAPEHGE). E-mail: lapehge@gmail.com
Referências desta apresentação
RIBEIRO, Guilherme. Editorial. Terra Brasilis. Niterói, n.15, jul. 2021. Acessar publicação original [DR]
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