Políticas da raça: experiências e legados da abolição e da pós-emancipação no Brasil | Petrônio Domingues e Flávio dos Santos Gomes
Organizado por Flávio Gomes e Petrônio Domingues e publicada em 2014, esta coletânea conta com um amplo estudo sobre o processo de abolição do cativeiro e seus desdobramentos nos anos posteriores à emancipação em diferentes regiões do país. Reunindo ao todo, dezessete capítulos, a coletânea apresenta diferentes perspectivas analíticas – metodologias e fontes – através do olhar de dezenove pesquisadores nacionais e estrangeiros. Nela, o leitor é convidado a refletir sobre um período da história brasileira em que muitas questões ainda permanecem sem resposta, representando uma grande contribuição para ampliação dos debates em torno da experiência afro-brasileira para além do mundo escravista. De norte a sul, nas áreas urbanas e rurais, os pesquisadores analisam o protagonismo negro em diferentes momentos, tais como: a promulgação da lei do ventre livre; a ação dos quilombolas; o movimento abolicionista e operário; republicanos de cor; trajetórias; miscigenação; linchamentos raciais; campesinato negro; biografia; experiência africana no sul do país; capoeiras; música e políticas da raça.
Ambos organizadores atestam que o campo do pós-emancipação no Brasil é relativamente recente, data da década de 90. Também salientam que muitas das demandas podem não surgir necessariamente no dia 13 de maio de 1888, mas é de interesse do pesquisador compreender e inserir os significados da liberdade proferidos por aqueles que transcenderam a escravidão com a abolição do cativeiro. Assim sendo, o objetivo do presente texto é fazer uma pequena apresentação dos capítulos que permeiam as páginas dessa coletânea, e por fim, identificar algumas das contribuições que credenciam esta a ser uma obra de referência para o campo do pós-emancipação.
Quem abre a discussão é o historiador Celso Thomas Castilho. O ponto inicial é Pernambuco, mais precisamente na região do sertão em Vila Bela durante a década de 1870. A promulgação da Lei do Ventre Livre em 1871 trouxe a obrigatoriedade de matrícula do escravo, e isso, conforme a leitura de Castilho gerou um conflito interpretativo da medida oficial que norteou variadas expectativas políticas, econômicas e religiosas. Escravos fugiam e alegavam não terem sido matriculados e assim intercederam junto às autoridades para obter a alforria, já os proprietários escravocratas exigiram uma ampliação do prazo de matrícula para regular todo eito. O acirramento dos debates marcaram as páginas dos jornais da grande imprensa, os ditos modernizadores teceram comentários a cerca da legislação e do futuro do país. Através dessas publicações, o autor analisa como a lei foi recebida pela elite local e quais as expectativas geradas que circularam no espaço público. Em suma, o autor mostra como a discussão emancipacionista dentro do contexto mencionado refletiu na formação da identidade política ao passo em que criticava a passividade do Estado frente às ilegalidades.
Já no segundo capítulo, o texto escrito pela historiadora YukoMiki analisa as complexidades na ação dos quilombolas em São Mateus no Espírito Santo nos anos finais da escravidão, “sua geografia espacial e social” denominada de “geografia insurgente”. Assim, é possível perceber nas experiências desses sujeitos os significados da ação política, fugindo do reducionismo da resistência plena e da vida quilombola como uma unidade, prática recorrente na interpretação de alguns historiadores que desconsideram os conflitos internos em suas abordagens.
Com o capítulo seguinte a discussão permanece nas lutas pela abolição, mais especificamente, protesto escravo no Oeste Paulista e no Norte Fluminense. Escrito pelos historiadores Flávio Gomes em parceria com Maria Helena P. T. Machado, tal estudo mostra como ações organizadas de grupos de escravizados representaram um desafio à escravidão. Várias investidas de quilombolas ameaçam o poder dos senhores, agindo em grupos, atacando as fazendas para garantir a sobrevivência, estabelecendo redes de comunicação com os escravos e sempre em movimento – itinerantes –, implantando desta maneira um clima instável durante a década de 1880.
O próximo texto é do historiador Marcelo Badaró Mattos que propõe uma reflexão a cerca do protagonismo escravo nos movimentos em torno do processo de abolição e as suas conexões com a formação e mobilização da classe operária. O autor defende uma aproximação entre a experiência do trabalho escravo e a dos proletários na investigação histórica, ultrapassando as fronteiras nacionais e os antigos marcos eurocêntricos. O interesse de Badaró Mattos é penetrar no caráter político de tal aproximação, de modo que ele resgata o debate historiográfico sobre os desdobramentos da Revolução de São Domingos e da Guerra Civil nos Estados Unidos numa perspectiva transatlântica, não obstante, também cria vários pontos de ligação com as ideias emancipacionistas que circularam no Brasil durante o final do século XIX, até então maior “colônia/nação escravista das Américas”.
Nas páginas seguintes, volta-se aos debates nacionais, agora sob a escrita de Petrônio José Domingues que discorre sobre os embates político-ideológicos no seio da população de cor durante o final do século XIX numa perspectiva analítica que busca resgatar os significados proferidos em seus devidos contextos. O estudo registra as ambiguidades, enquanto uns acreditavam na Monarquia, outros apoiavam a República, e ambos defendiam seus posicionamentos de maneira a angariar mais simpatizantes junto aos afrodescendentes.
Dando prosseguimento a incursão historiográfica, a parada subsequente é numa análise das transformações políticas e ideológicas na trajetória de vida das populações egressas do cativeiro, Walter Fraga, através das informações contidas no Livro de Registro das Prisões – de abril a junho de 1889 –, localizado no Arquivo Público de Salvador, percebe as redefinições de identidade e a precariedade da liberdade no processo de inserção social dos ex-cativos – a exemplo dos abandonados inscritos por alienados – e como mesmo após o fim do cativeiro, o rótulo liberto continuou operando com um significado específico, talvez um índice de criminalidade.
Ao dar mais um passo sobre a decadência do sistema escravista brasileiro, o leitor se depara com oestudo detalhado feito pelo historiador DaryleWillams do quadro Redenção de Cã (1895) e do seu criador, o artista espanhol Modesto Brocos y Gómez (1852-1936) que materializou o ideário de preconceito de cor vigente no início da Primeira República no Brasil com a sua criação. A ideia de DaryleWillams é trazer uma nova interpretação, não mais ligada à miscigenação e sim ao reconhecimento de um elemento fortemente ligado ao contexto histórico de produção da obra e pouco analisado pelos intérpretes até então, que é o fim do escravismo brasileiro.
Karl Monsma também propõe um novo olhar no capítulo seguinte, nesse ínterim, problematiza o discurso de inexistência de linchamentos raciais na imprensa brasileira após 13 de maio, existindo aqui uma prática mais civilizável se comparada aos EUA. Monsma, utilizando de processos criminais, mostra como a questão passou despercebida na imprensa e como isso facilitou a propagação de um discurso. O capítulo de Karl Monsa revela a dissimulação do racismo na sociedade paulista por meio da comparação dos linchamentos raciais no Oeste Paulista e o Sul dos Estados Unidos na passagem do século XIX para o XX. O estudo comparativo não tem o propósito de igualar a história de Brasil e Estados Unidos, mas desconstruir a ideia de harmonia brasileira corrente à época quando se analisavam as duas realidades étnico-raciais. Longe de equacionar ambos os contextos históricos, a pesquisa revela pontos divergentes possíveis de serem analisados, além de tentar perceber o papel desempenhado pelo imigrante, maioria da população.
No próximo passo, o foco recai sobre o processo de formação do campesinato negro – descendentes de escravizados – na Zona da Mata de Minas Gerais durante os anos de 1818 e 1929. Para Eliane Silva Guimarães o estudo da trajetória de uma família de mulatos, os Pinto da Silva, é o ponto de partida nessa empreitada. Utilizando da ligação nominativa no cruzamento de fontes, passamos a conhecer algumas formas de acesso, uso e salvaguardo das propriedades rurais dos não brancos.
Permanece o estudo de trajetória, nessa ocasião na região de São Paulo. O interesse de James Woodard é entender a ascensão de um político negro nos primeiros anos da República, época em que as expectativas sociais não eram favoráveis para esse grupo populacional, o que por si, já transforma a história de Alfredo Casemiro da Rocha em exceção. O texto de Woodard revela um Casemiro da Rocha como ele é, em seu aspecto humano e não de herói, inserido nas complexidades do seu tempo e como estas influenciaram na atuação política do biografado. Logo, James Woodard aponta as estratégias assumidas por Alfrêdo Casemiro da Rocha para continuar no jogo político republicano, se tornando uma figura representativa no município de Cunha e alcançando prestígio no estado de São Paulo.
Os postulados racistas também centralizam as interpretações sobre a colônia de Africanos, em Porto Alegre no pós-abolição, de um passado afro – atrasado – para um futuro modernizado com a fixação dos imigrantes – bairro Rio Branco –, conforme examina Marcus Vinicius de Freitas Rosa no capítulo seguinte. O autor, munido principalmente da documentação policial, mostra as visões a cerca dos costumes e da comunidade de africanos que se formaram em uma localidade de Porto Alegre, rótulos originados no final do século XIX e vigente até os primeiros anos da segunda metade do século XX. No entanto, a preocupação recai sobre as relações sociais entre negros e brancos, “os limites étnicos” da modesta região da Colônia Africana.
Dando continuidade, o leitor vai ao Rio de Janeiro no início do século XX, o objeto de estudo são as formas de organização e reivindicação dos trabalhadores do Porto. Kit McPhee propõe uma nova interpretação do movimento sindicalista a partir da atuação dessa categoria, constituída em sua grande maioria por mão-de-obra afro-brasileira, e que, ao assumir uma posição de mediação com o governo sem recorrer a outras medidas reivindicatórias de conflito mais direto, acabou sendo lido por uma parcela da historiografia como a principal justificativa do fracasso do movimento sindical do Rio de Janeiro na Primeira República. McPhee contesta essa historiografia classista e metódica que alude a sindicalismo em duas frentes, uma vermelha e outra amarela. Para o autor essa interpretação pouco explica as estratégias assumidas, acarretando num reducionismo do poder de barganha dos trabalhadores portuários.
Saindo do Rio de Janeiro a parada seguinte é a cidade do Recife. Israel Ozanam e Isabel Cristina Martins Guillen examinam a presença constante de crimes de capoeiragem no desfile carnavalesco e de Maracatu no bairro de Santo Antônio, entre o final do século XIX e início do XX, como se estes fossem um componente do desfile, mesmo diante da vigilância policial. Para um entendimento completo do fato, os autores ressaltam que é necessário ir além do contexto do carnaval. Distante de uma preocupação voltada para o enquadramento da população pobre junto ao processo modernizador, Ozanam e Guillem, problematizam a definição de capoeira e capoeiragem que permeiam os registros policiais, além de buscar reconstituir as redes de sociabilidades em que transitavam os indivíduos, que em momentos específicos, eram acusados de tal prática, a exemplo de Abu e Adama.
O tema seguinte é a experiência e as apropriações culturais afro-diaspóricas no Rio de Janeiro, o capítulo também se ramifica em outras temáticas, tais como os legados do Brasil colonial e a história da propriedade intelectual, para compreender a atuação dos músicos afro-brasileiros junto às estruturas políticas e socioeconômicas no pós-abolição (1910 – 1930). Na leitura de Marc Hertzman é preciso perceber o movimento afrodiaspórico não só dentro de uma unidade analítica, mas respeitando as conexões transnacionais e os significados proferidos pelos personagens não “nos termos que tem sido adotado até então”. É nesse movimento que se tornam compreensíveis as apropriações feitas pelo músico Faustino Pedro da Conceição, ou simplesmente Tio Faustino, um personagem bastante emblemático que se reconhecia como mediador entre tradições afro “puras” e as que aqui foram “adulteradas”, ao publicar na grande imprensa notas patenteando o uso de instrumentos musicais “exóticos”, o omelê, afoxé e agogô que ele supostamente implantou na música nacional.
Avançando sobre discussões pouco recorrentes, agora sobre a política antirracista do comunismo brasileiro na década de 1930, Jéssica Graham examina a “proeminência” do discurso racial nos anos 30, impulsionada por fatores internos e externos, e que foi favorável ao engajamento político da população negra. A emergência desse contexto suscitou na autora o interesse de analisar a doutrina racial implantada pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB) contra o fascismo e o governo Vargas que repercute, entre outras coisas, na ação e percepção da atuação política dos sujeitos negros.
Na penúltima parada, Paulina L. Alberto discute as origens e transformações das ideologias de inclusão racial dos negros no século XX, a partir da campanha dos intelectuais negros sobre o símbolo da mãe preta. Conforme a autora, as ações em favor da mãe negra surgiram nos jornais na década de 20, embora tal símbolo não seja uma escolha tão democrática entre os escritores negros, estes a abraçaram como ícone de fraternidade das raças contra as teorias do racismo científico. Nos anos posteriores, pós-Segunda Guerra Mundial, a ideia de democracia surgiu como nova estratégia de inclusão racial. Agora cabia aos negros lutarem “pelo direito ao direito”. A inclusão social não deveria vir da fraternidade, e sim, porque é um direito do povo negro, ou seja, muda-se do sentimentalismo para imparcialidade da legislação.
A última parada é sobre a discussão em torno das cotas raciais na UNB, situando o parecer de Luiz Felipe de Alencastro para refutar os argumentos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) apresentada pelo partido Democratas (DEM) contra a implantação do sistema de cotas na (UnB) e que foi julgada improcedente pelo Supremo Tribunal Federal em 2012. O texto do autor recupera as especificidades do escravismo brasileiro que foram negligenciadas pelo argumento apresentada pelo DEM.
Como vimos, essa é uma viagem longa, porém muito satisfatória e repleta de inovações, em grande parte, pelo fato de reunir na mesma publicação, representantes de diferentes escolas historiográficas que imprimiram um olhar renovado, revisando os limites convencionais, os antigos problemas e apontados novos caminhos a serem trilhados pelos pesquisadores do campo. As disposições dos capítulos seguem o marco cronológico dos acontecimentos, indo desde as lutas em torno da abolição do cativeiro em 1871 até a implantação do sistema de cotas na UNB, tendo como fio condutor, o caráter político que é oxigenado de diferentes modos.
Neste sentido, a coletânea propõe que as discussões emancipacionistas geradas com a Lei do Ventre Livre continuaram permeando a sociedade brasileira nos anos subsequentes a 1871, e não somente eclodindo na década de 1880, como defende muitos historiadores. Ela também mostra a existência no Brasil de um quilombo pouco habitual, a vista de todos e barganhando com os proprietários de terras em troca de serviços, atestando com isso, a impossibilidade da utilização de modelos explicativos para compreensão histórica. Crítica semelhante é feita à visão unilateral quase canônica na historiografia a respeito do posicionamento político dos libertos, sendo necessário o resgate das complexidades inerentes às escolhas – monárquica ou republicana –, ressaltando os sentidos embutidos em cada uma delas. Do mesmo modo, vale refletir sobre os rótulos atribuídos aos sujeitos – a exemplo do termo capoeira – para uma melhor compressão das experiências históricas, ambíguas e contraditórias. Convém acentuar os ganhos no âmbito metodológico, corroborando com o empreendimento da análise historiográfica partindo de apenas uma fonte ou como cruzar dados aparentemente desconexos para reunir informações sobre a formação do campesinato negro, de comunidades rurais negras, maneiras de aquisição, exploração, salvaguardo, ampliação e divisão das propriedades administradas por essa parcela da população.
Se o pós-emancipação é uma área de estudo relativamente recente no Brasil, sentia-se a necessidade de uma publicação do gênero que reunisse diferentes pesquisadores, temas e perspectivas analíticas capazes de marcar o campo. Em Políticas da raça (2014) Petrônio Domingues e Flávio Gomes repetem a parceria firmada em livro anterior (2013) e ampliam ainda mais os horizontes de pesquisa, agora eles agregam importantes pesquisadores nacionais e estrangeiros, com o propósito de apresentar ao leitor tendências historiográficas ao fazer um mapeamento das complexidades geradas pelo período em diferentes regiões do país. A coletânea chega num momento oportuno, contrário da ideia de análises generalizantes que partem do princípio do embrutecimento do negro como uma herança direta do regime escravista, presenciam-se estudos de contextos específicos, o que garante um novo olhar sobre as diversas formas de expressão do protagonismo negro na esfera política.
Referência
DOMINGUES, Petrônio; GOMES, Flávio dos Santos. Da nitidez e invisibilidade: legados do pós-emancipação no Brasil. Belo Horizonte, MG: Fino Traço, 2013.
Resenhista
Edvaldo Alves de Souza Neto – Mestrando em História pela Universidade Federal de Sergipe/PROHIS – UFS. Bolsista Capes/CNPq. E-mail: edvaldo.asn@gmail.com
Referências desta Resenha
DOMINGUES, Petrônio; GOMES, Flávio dos Santos (Orgs). Políticas da raça: experiências e legados da abolição e da pós-emancipação no Brasil. São Paulo: Selo Negro Edições, 2014. Resenha de: SOUZA NETO, Edvaldo Alves de. Na linha do tempo: da abolição ao pós-emancipação no Brasil. Revista Latino-Americana de História. São Leopoldo, v.4, n.13, p. 279-286, 2015. Acessar publicação original [DR]