Saiu em português de Portugal pela Antígona, com o título Políticas da inimizade, a tradução de Politiques de l’inimitié, publicado em 2016 pela Éditions La Découverte, do professor de história e de ciência política Achille Mbembe. Nascido em 1957 em Otété, Camarões, um dos mais importantes intelectuais cosmopolitas da atualidade, o autor leciona no Witwatersrand Institute for Social and Economic Research e já publicou títulos importantes como Crítica da razão negra (MBEMBE, 2014) que também tem tradução em Portugal, original, Critique de la raison nègre (MBEMBE, 2013a), Sortir de la grande nuit (MBEMBE, 2013b) e De la postcolonie (MBEMBE, 2000).
O livro tem cinco capítulos, alguns deles já publicados em revistas em edições anteriores, uma introdução e uma conclusão. Além do profundo e crítico diálogo com os estudos pós-coloniais, o chamado pós-estruturalismo e a historiografia e teoria política contemporâneas, familiar para quem conhece o autor, os ensaios possuem um interlocutor principal: o martiniquenho Frantz Fanon.
A introdução é breve e anuncia as questões que conectam os ensaios do livro. Ele destaca a atualidade do pensamento de Fanon, que anunciava a preocupação com a vulnerabilidade do homem em um mundo em guerra, o diagnóstico da violência que se alimenta retroativamente e as possibilidades de saída desse círculo de extermínio, o pharmakon.
O primeiro capítulo, “A saída da democracia” debate um problema contemporâneo que está para além de crises particulares dentro das fronteiras dos Estados nacionais, que é o problema da dificuldade de conviver com o dessemelhante nas democracias. O autor afirma que pensa o mundo a partir da África (MBEMBE, 2017, p. 21), mas a abrangência de sua análise contempla tanto as democracias que têm apresentado crescimento da xenofobia, quanto aquelas que tem um inimigo interno – pensamos que Estados Unidos, Brasil ou França tem combinações variáveis dos dois e o Outro pode ser o negro, o indígena, o judeu ou o imigrante, refugiado ou imigrante de África ou América Latina. O aspecto xenófobo se destaca, sobretudo, no norte global, porque um dos traços marcantes de nosso tempo é o repovoamento da terra em favor dos povos do sul, destaca ele. Essa migração não se carateriza pelas demandas de trabalho variáveis da divisão mundial, afinal o trabalho se tornou supérfluo de acordo com Mbembe, mas pela pura e simples destruição de sociedades do sul pelos conflitos armados, guerras coloniais ilegais, destaca, mas também guerras sem estado. O Terror não é mais um exército de liberação nacional, mas uma rede internacional que não reconhece fronteiras, não reivindica a tomada de poder – em termos de substituição de poder soberano dentro de fronteiras pré-estabelecidas – e não funciona numa lógica territorial. Ao mesmo tempo, o anti-Terror utiliza cada vez menos seus cidadãos armados em exércitos nacionais, mas terceiriza para mercenários e organizações de oposição a gestão dos conflitos – o caso da guerra civil síria poderia ser evocado aqui onde o exército nacional é apenas uma das forças em um conflito de várias camadas. Mbembe apresenta as condições históricas para a atual crise da democracia: a sua fundação na colônia e na plantação colonial – a plantation – e sua condição de comunidade de semelhantes e não-semelhantes que fundou as democracias de escravos. Mais uma vez os exemplos emblemáticos de Estados Unidos, Brasil ou França em que os liberalismos diversos fundaram regimes eleitorais com bases em direitos igualitários para os senhores de escravos. O autor destaca como o linchamento de negros – emblemático nos Estados Unidos, chamado por Fanon de “país de linchadores” – explicita duas coisas: a supremacia branca e a violência que a sustenta. Para Mbembe, o mundo colonial é a face noturna da democracia: na colônia já estavam presentes as plantations que precederam os campos de concentração e de extermínio modernos – poderíamos destacar a revolução haitiana ou a guerra dos bôeres como exemplos de políticas de concentração dos inimigos e posterior massacre em situações coloniais. A guerra de conquista colonial também naturaliza o inimigo.
Além desse componente histórico de longa duração para a atual crise da democracia, há um componente recente nesta. Trata-se da idade do plástico que substituiu o ferro, como nova característica civilizatória, conforme o autor. Esse componente é acompanhado do aumento da velocidade da economia financeira e o crescimento do poder do capital sobre a vida. A estonteante rapidez transformou o mundo em um lugar governado por algoritmos e o ser humano, em um novo ciborgue. O equilíbrio da força em uma velocidade crescente tornou a economia e as políticas globais instáveis, imprevisíveis, destrutivas.
Outro ponto importante a se destacar no primeiro capítulo é o paradoxo das democracias: o fim do Estado de direito para proteger o próprio direito. Mbembe afirma que o Terror do fundamentalismo ameaça o Estado de direito e, como em resposta, as democracias suprimem os direitos individuais de seus cidadãos que passam a ser vistos como inimigos internos potenciais sob a bandeira de preservação desses direitos. Essa lógica de política é a democracia assumindo a necropolítica em seu próprio território. Necropolítica, aliás, é um conceito desenvolvido pelo autor em artigo em resposta à insuficiência do conceito de biopoder que não dá conta da política de descarte da vida dos governos como base de sua soberania; para Mbembe, a soberania é a administração de populações por meio de terror numa política de morte banalizada. O motor dessa nova forma de política é o racismo, afirma Mbembe, um racismo que fundamenta o desejo nessas democracias de viver sem os não-semelhantes. A violência será substituída pela regulação dos comportamentos, pela produção da opinião pública e pela prevenção da agitação. Nas palavras do autor, “Com a ajuda da necessidade de mistérios e o regresso do espírito de cruzada, vive-se num tempo mais dado a dispositivos paranóicos, à violência histérica, aos processos de aniquilação de todos aqueles que a democracia tem transformado em inimigos do Estado” (MBEMBE, 2017, p. 69).
A esse diagnóstico, o autor lembra que se o futuro é de catástrofe, também é de recomeço. Se somos seres de fronteira (êtres de frontière no original) porque nos fazemos em oposição ao outro, podemos fazer várias coisas pelo encontro. Mbembe destaca que em oposição às tradições ocidentais, religiosas ou laicas, em que a história tem um ponto final, algumas tradições africanas entendem que a história é encontro e levam a pensar o que se fazer com ele.
No segundo capítulo, “A sociedade de inimizade”, Mbembe discute o problema central do livro, a emergência dessa pós-democracia, o regime dos semelhantes. Ela se resume em um desejo doentio de viver sem o outro, apartar-se, sentimento causado pelo medo. Em suas palavras, “Hoje em dia, o desejo de inimigo, o desejo de apartheid (separação e enclave) e a fantasia de extermínio ocupam o lugar deste círculo encantado. Em inúmeros casos, basta um muro para o exprimir” (MBEMBE, 2017, p. 73). O autor destaca que o colonizador está em minoria e tem medo. Esse desejo do apartheid e do extermínio levam à disseminação da paranóia, e esta leva ao genocídio. O inimigo é necessário porque sem ele, os desejos ficam interditados, conforme Mbembe – aqui nota-se um diálogo com a psicanálise que Mbembe faz, possivelmente com a psicanálise “de” Fanon. Esse ódio ao inimigo leva à vigília permanente, conforme o autor, que dá como exemplo paradigmático a segregação dos palestinos no Estado de Israel, mais intensa e com uso de tecnologia de ponta do que foi o apartheid sul-africano.
Como fantasias primárias de medo são ilógicas, Mbembe afirma que os Estados liberais se transformam crescentemente em Estados de segurança baseados na fé e no mito. Em um Estado baseado na certeza, na fé, o perigo vem da dúvida, do questionamento, segundo ele, o que torna toda oposição passível de ser associada ao não-semelhante, ao negro, ao árabe, ao indígena. Essa nova democracia baseada no medo do não-semelhante, precisa ser extirpada, urge cortar na carne, segundo ele. O inimigo, claro, é um estereotipo. Aí a sociedade de inimizade é um desdobramento do necropoder, pois a prioridade do Estado de segurança é vida dos semelhantes e morte dos diferentes. As multidões se atraem pela ditadura porque esta libera o prazer retido pela consciência moral, afirma Mbembe. Fazemos inevitavelmente a associação dessa liberação da consciência moral com os defensores do politicamente incorreto atuais que são novas formas de tentativa de legitimação do racismo quando lemos a seguinte passagem do autor: “À contenção geral (supondo que nunca aconteceu verdadeiramente), sucede-se então a euforia geral – mas a que custo, em nome de quem e por quanto tempo?” (MBEMBE, 2017, p. 94).
Essa nova comunidade baseada no medo e na inimizade, segundo Mbembe, expressa o fim da cidadania e surgimento da nacionalidade. Aqui é importante destacar que trata-se de uma nacionalidade que pode ser étnica sem etnia, racista sem raça. Para que essa sociedade de semelhantes se construa é fundamental, conforme o autor, a disseminação do nanorracismo. Em suas palavras, “por nanoracismo entenda-se esta forma narcótica do preconceito em relação à cor expressa nos gestos anódinos do dia-a-dia, por isto ou por aquilo, aparentemente inconscientes, numa brincadeira, numa alusão ou numa insinuação, num lapso, numa anedota, num subentendido e, é preciso dizê-lo, numa maldade voluntária, numa intenção maldosa, num atropelo ou numa provocação deliberada, num desejo obscuro de estigmatizar e, sobretudo, de violentar, ferir e humilhar, contaminar o que não é considerado como sendo dos nossos” (MBEMBE, 2017, p. 95). O nanorracismo atinge a autoestima de suas vítimas – e nesta passagem o autor dialoga profundamente com o Fanon de Pele negra, máscaras brancas (FANON, 2008; FANON, 2011).
As democracias repetem histórias para usar racismo contra imigrantes, terroristas. Segundo Mbembe, o uso desse nacionalismo em tempos de poder desnacionalizado é fundamental para mobilizar racismo contra inimigos. Esse racismo praticado sem a consciência de fazê-lo, é disseminado pelas mídias, sobretudo pelo humor – novamente o politicamente incorreto, poderíamos usar esse exemplo aqui no Brasil. Nas palavras do autor: “O racismo alimenta a necessidade de diversão e permite escapar ao aborrecimento geral e à monotonia” (MBEMBE, 2017, p. 101). Em resumo, esse racismo, disseminado em pílulas de nanorracismo, produz uma época que anseia pela aniquilação do inimigo, segundo o autor, caracterizando essa sociedade de inimizade.
O terceiro capítulo, “Necropolítica”, ausente na edição original francesa, retoma um artigo publicado por Mbembe na Public Culture em 2003 na tradução feita para o inglês por Libby Meintjes – por Renata Santini na revista Arte & Ensaios e mais recente publicação em livro pela N-1 Edições (respectivamente MBEMBE, 2003; MBEMBE, 2016, MBEMBE, 2018). Para Mbembe, a teoria da modernidade vê a razão como base da política, mas não a vida e a morte. Ao contrário, para o autor, a soberania é decisão de vida e morte. Esta política de morte cria o inimigo para criar o estado de exceção. Há um vínculo entre modernidade e terror: a burocratização da morte com tecnologia, de acordo com ele. Mbembe destaca os vínculos entre imperialismo e nacional-socialismo, já que as experiências nazistas aconteceram antes nas colônias, nas quais o soberano mata à vontade. Durante a escravidão moderna, assim como nos regimes coloniais, o terror foi o método de governo. Na atualidade, afirma o autor, Palestina é caso mais avançado de necropoder. A ocupação colonial pós-moderna combina métodos de alta tecnologia com táticas de cerco medievais, segundo ele.
O artigo de Mbembe já antecipava vários temas desenvolvidos em Políticas da inimizade, daí a sua inclusão nessa edição portuguesa. A importância da história, arqueologia e geografia em construírem a unidade entre topografia e identidade é destacada pelo autor, lembrando a importância da estereotipia da sociedade de semelhantes para que a democracia substitua a cidadania pela nacionalidade, e o necropoder deixe de ser exportado para as colônias e retorne para o centro. O autor também destaca o processo de falência dos estados no mundo pós-colonial, em cujo vácuo do poder surgem as máquinas de guerra, e dos quais os sobreviventes são apátridas em permanente estado de exceção. Essas máquinas de guerra se caracterizam, conforme o autor, em exércitos irregulares que usam número crescente de piratas, crianças-soldado e mercenários. Notamos que o capítulo deveria vir com nota advertindo não constar na edição original, visto que as discussões sobre máquinas de guerra parecem digressão no conjunto do livro e os próprios conceitos do autor mudaram bastante, não aparecendo, obviamente, novas discussões neste texto que está separado dos demais capítulos por uma década.
O quarto capítulo “A farmácia de Fanon”, é uma continuação do segundo, na medida em que esmiuça um dos fundamentos da política da inimizade, o racismo. Mbembe dialoga diretamente com Fanon, entre outras referências, e destaca os temas principais de sua obra: racismo, independência e violência. A seguir, o autor estabelece as relações entre o colonialismo e fascismo com o racismo. O racismo é constitutivo dos campos de concentração e extermínio, porque é preciso que os não-semelhantes sejam isolados e colocados sob controle, a uma distância segura dos semelhantes, conforme autor. Nas suas palavras, “O campo foi também interpretado como sintomático do processo de expulsão da humanidade comum das suas vítimas – a cena de um crime tão secreto como infigurável e indizível, indissoluvelmente dedicado ao esquecimento, pelo menos naqueles que o perpetraram, uma vez que tudo conspirava, inicialmente, para apagar os vestígios” (MBEMBE, 2017, p. 162). Mbembe chama atenção que os campos abrigavam inimigos em potencial na África do Sul, nas Filipinas, na França e nos domínios nazistas no Leste europeu. Eles eram tanto o estereotipo quanto inúteis. O campo associa-se à colonização, que constitui-se em um povoamento despovoador, conforme ele, sendo possível destacar o plano de colonização nazista do Leste europeu que pretendia exterminar cerca de 30 milhões de pessoas entre russos, bielorrussos, judeus e poloneses e em seu lugar instalar colônias de famílias camponesas germânicas.
Mbembe destaca que Fanon diferenciava dois tipos de racismo: o cultural e o científico. O primeiro “atacava formas particulares de vida que o colonialismo especialmente se esforçava para liquidar” e não conseguindo, “procurava desvalorizá-las ou transformá-las em objectos exóticos”, é resultado de “uma mutação do racismo vulgar”; o segundo é o pseudo-científico baseado na craniometria, na eugenia e na antropologia física do século XIX (MBEMBE, 2017, p. 173). Mbembe também destaca alguns elementos de Fanon, especialmente no Pele Negra, máscaras brancas. Ele lembra, com Fanon, que o racista teme o negro. Concorda com a interpretação do martiniquenho que o linchamento nos EUA representa castração, pois o negro é associado ao fálico, à potência sexual selvagem. Também destaca como o racismo inverte as relações. O mito colonial culpa as vítimas pela violência que elas sofrem, destaca Mbembe, pois o colonizador exerce uma missão que só existe porque os colonizados não foram capazes de aproveitarem seus recursos e desenvolverem, sozinhos, uma civilização.
Mbembe destaca ainda que o racismo se baseia no mito do negro como objeto, interiorizado pelo negro. O pharmakon de Fanon, destaca o autor, ou seja a superação do racismo é realizado pelo reconhecimento do Outro, pela aceitação que ele tenha lugar. A imagem de pharmakon de Fanon é forte porque o martiniquenho era médico, lidou com todos os tipos de doentes e tentou humanizá-los. Já num diálogo mais próximo com os temas de Os condenados da terra (FANON, 2005; FANON, 2011), Mbembe destaca que Fanon considerava que a colonização afeta torturadores e torturados, adoecendo todos. O colonialismo, portanto, aniquilava a ambos em sua dignidade, em sua humanidade. Utilizando uma bela imagem, Mbembe afirma que o mestre colonial não tem casa comum com o colonizado. A imagem da casa comum é bem cara para nós que vivemos na tradição na qual Gilberto Freyre afirma que a casa grande e a senzala eram unificadas pelo patriarcado no mesmo sistema, de onde derivam imagens de unidade de antagonismos em equilíbrio. Lembremos que o que Freyre chamou de casa grande como unidade patriarcal é o que Mbembe concebe como plantação (platantion), ancestral dos campos de concentração e extermínio.
O quinto e último capítulo “Esse meio-dia atordoante” trata de um tema caro, que é a história dos negros e a reconfiguração do racismo. Mbembe afirma que a história dos negros é história mundial. Ele passa pela crítica do “homem” iluminista e pela necessidade de busca por humanidade maior. Para o autor, o humanismo apaga o negro como sujeito, como original e pensa a África a partir de novos conceitos. O negro foi tornado coisa e é fantasma que assombra o humanismo ocidental, afirma Mbembe, já que sua visão é suficiente para mostrar as incoerências dele e os limites do que seria a humanidade para o Ocidente. O escravo negro moderno, protótipo dos humanos-objetos e objetos-humanos, como afirma Mbembe, foi, ao lado do proletário, a figura do capitalismo. Mbembe destaca que os escravos da América foram a base da acumulação mundial, mas sua história é feita de crimes que o arquivo não abarca.
Mbembe destaca o aspecto inovador do neoliberalismo que rompeu limites do capitalismo na produção da raça, na mercantilização irrestrita e no monopólio da vida, ameaçando destruir o social. Mesmo a vida que pode ser produzida em laboratório, torna-se capital. Uma das características do neoliberalismo, para o autor, é a ampliação do racismo sem raça baseado na religião e na natureza, na universalização da condição de humano-objeto ou objeto-humano, antes restrita ao escravo negro. Raça e classe são associados no capitalismo, podemos entender em Mbembe.
Uma inovação contemporânea, também, conforme Mbembe, é a supressão da condição de escravo, ou pelo menos da consciência em torno de uma sujeição a modalidades de exploração análogas à escravidão. Essa supressão subjetiva parte da seguinte constatação, de acordo com ele: sem escravos não há revolta. Os novos escravos, desprovidos dessa subjetividade, querem ser senhores. O fim do sentimento de revolta, uma mistura de impotência e desejo de ser o Amo, suprimiria as condições da própria revolta, afirma o autor.
Na conclusão, intitulada “A ética do passante”, Mbembe parece mais otimista e analisa as possibilidades de transformação desse mundo baseado no necropoder e na sociedade de inimizade. Afinal, já no início do livro, ele falava de como o futuro abriga a catástrofe, mas também o recomeço. O autor também destacou no último capítulo que viver é poder ser afetado pelo outro, é estar exposto. Essa exposição, em oposição ao enclausuramento entre muros da política da inimizade, consiste em se fazer um passageiro do mundo e estar sujeito, mas também oferecer hospitalidade. O passante, condição proposta em sua ética, não é o exilado e refugiado, mas o estrangeiro que é reconhecido e acolhido, que cria raízes. Essas raízes não dizem respeito ao nascimento, pois este é acidental, mas à vontade de habitar. O deslocar-se, o não pertencimento, afirma ele, são da condição humana. A ética do passante engloba a presença e a diferença, o solidarizar-se, mas também o despreender-se, segundo o autor. Em suas palavras, “como o mundo já não tem uma farmácia única, se quisermos verdadeiramente fugirmos da relação sem desejo e do risco da sociedade de inimizade, é preciso viver todos os seis feixes. Partindo de uma multiplicidade de lugares, trata-se em seguida de os atravessar da maneira mais responsável possível, como seus donos, mas numa relação de total liberdade e, se for preciso, de desprendimento” (MBEMBE, 2017, p. 249).
A leitura da obra de Mbembe é difícil e sua linguagem, poética, por vezes é hermética. Alguns conceitos são expostos com uma transparência exemplar, enquanto outros tratamentos são demasiado eruditos e de difícil compreensão. Trata-se de um autor que é de difícil tratamento unívoco e capaz de interpretação relativamente aberta, sobretudo pela amplitude de sua problemática, pelo alcance de seus diagnósticos e pelas diversas perspectivas, nem sempre explícitas, que sua erudição lhe permite. A leitura de Mbembe, como é a leitura de Fanon, grande interlocutor do livro – que poderia, aliás, ser considerado um livro sobre a experiência de ler e ser afetado por Fanon – é complexa porque parte de problemas que são globais, mas que se expressam de formas muito particulares em temporalidades distintas. A hipótese é que essa análise cosmopolita do problema da democracia vem justamente desse cosmopolitismo descolonizador de Fanon e de Mbembe, que ao contrário de pretensos universalismos que eram profundamente paroquianos e entendiam o mundo como seu lugar de fala, explicitam as tensões existentes entre o lugar do qual se fala e o mundo – mundo aliás ao qual o autor pertence. A ideia de sociedade de inimizade, de necropolítica ou de ética do passante poderia ser adaptada para contextos mais diversos de Ásia, África, Europa e América, ao mesmo tempo em que apresentaria lacunas importantes e generalizações problemáticas que uma análise tão abrangente arrisca. Sua proposição de encontro com o outro para sair do círculo da inimizade por sua vez é ousada, vaga e coerente com seu projeto.
Podemos expressar a experiência de ler Achille Mbembe com as palavras que ele usou para descrever a leitura de Fanon: “É difícil ler sem se ser interpelado pela sua voz, pela sua escrita, pelo seu ritmo”. Ou talvez mais diretamente: “é quase impossível sair ileso” (MBEMBE, 2017, p. 249).
Referências
FANON, Frantz. Oeuvres Paris: La Découverte, 2011.
FANON, Frantz. Os condenados da terra Tradução Elnice Albergaria Rocha e Lucy Magalhães. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas Tradução Renato da Silveira. Salvador, EDUFBA, 2008.
MBEMBE, Achille. África insubmissa – cristianismo, poder e Estado na sociedade pós-colonial Lisboa: Edições Pedago, 2013.
MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra Tradução Marta Lança. Lisboa: Antígona, 2014.
MBEMBE, Achille. Critique de la raison nègre Paris: La Découverte , 2013a.
MBEMBE, Achille. De la postcolonie – essai sur l’imagination politique dans l’Afrique contemporaine Paris: Karthala, 2000.
MBEMBE, Achille. Necropolitica Arte e Ensaios, Rio de Janeiro, n. 32, 2016.
MBEMBE, Achille. Necropolítica 3 ed. São Paulo: n-1 Edições, 2018.
MBEMBE, Achille. Necropolitics Public Culture, Duke, vol. 15, n. 1, winter 2003, pp. 11-40.
MBEMBE, Achille. Politiques de l’inimitié Paris: La Découverte , 2016.
MBEMBE, Achille. Surtir de la grande nuit – essai sur l’Afrique décolonisée Paris: La Découverte , 2013b.
Resenhista
Flavio Dantas Martins – Mestre em história pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS, 2012) e doutorando em história na Universidade Federal de Goiás (UFG). É professor da Universidade Federal do Oeste da Bahia. E-mail: flaviusdantas@gmail.com
Referências desta Resenha
MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Trad. Marta Lança. Lisboa: Antigona, 2017. Resenha de: MARTINS, Flavio Dantas. Quando não se pode mais conviver. Revista de História. São Paulo, n. 179, 2020. Acessar publicação original [DR]
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