As pesquisas sobre políticas culturais vêm crescendo no Brasil e em toda a América Latina e essa tendência ratifica sua importância para o estudo das batalhas políticas no campo da cultura, um território extremamente rico para dimensionarmos e compreendermos o alcance de determinadas lutas que vêm ocorrendo de modo persistente em nossas sociedades tão atravessadas pela desigualdade econômica, a instabilidade democrática e as injustiças sociais. Os múltiplos enfoques possibilitados pela abordagem do tema – diversidade que se faz presente neste dossiê – revelam que há níveis de conflito e interesses mais ou menos visíveis nessas batalhas e que seu necessário desvendamento, levado a cabo mediante a análise acurada das fontes, resulta em diagnósticos muito instigantes tanto dos contornos da ação do Estado e dos governos sobre a sociedade, como das atuações de diversos agentes no meio social e no espaço público.
A proposta deste dossiê surgiu da experiência da organização de um livro, a seis mãos,3 que envolveu a redação preliminar de uma introdução na qual expusemos algumas hipóteses e considerações a respeito das especificidades do enfoque do historiador sobre as políticas culturais na América Latina, assunto pouco abordado na bibliografia que encontrávamos a respeito. Refletir sobre as complexas relações – multilaterais – demandadas pelo alcance do conceito, a tendência multidisciplinar dos estudos sobre o tema na América Latina, a relevância da compreensão dos posicionamentos políticos no pensamento de diversos autores referenciais do campo, entre outras questões que abordamos no referido livro, foi um exercício muito profícuo. A partir dele, pudemos redirecionar nosso olhar sobre nossos estudos, dialogar com pesquisas de colegas e refletir sobre caminhos metodológicos possíveis. Tais diálogos tiveram continuidade em um ciclo de debates que organizamos, também a seis mãos, no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc (Serviço Social do Comércio) em São Paulo, nos meses de outubro e novembro de 2021.4 Durante seis encontros, distribuídos em mesas temáticas, pudemos revisitar nossas reflexões e conhecer outras análises de fenômenos e processos latino-americanos no âmbito das políticas culturais.
O presente espaço de interlocução, propiciado agora pela revista Estudos Ibero-Americanos, amplia os diálogos acadêmicos já iniciados e inclui novos olhares e debates. Os artigos que compõem o dossiê versam sobre políticas culturais no campo do cinema, da música popular, das publicações em quadrinhos e do patrimônio. Esquadrinham leis, organismos, agentes e resultados, abrangendo, em alguns casos, a difícil tarefa de analisar o impacto ou a recepção dessas políticas. Nesse sentido, os trabalhos aqui reunidos também revelam diferentes estratégias metodológicas para o enfoque do tema, não se eximindo de mostrar as tensões e os choques de interesses presentes nos processos de construção das políticas culturais e nos resultados, nem sempre previsíveis, de sua execução. Ao compartilharmos variadas perspectivas de investigação das políticas culturais, esperamos que o dossiê seja uma contribuição relevante e estimulante, entre outras mais que o tema certamente ainda suscitará.
O leitor notará que os trabalhos, em sua maioria, tratam do Brasil. A grande quantidade de submissões que recebemos sobre políticas culturais em nosso país é uma evidência do crescimento do interesse pelo tema no âmbito acadêmico, perceptível em diversos cursos e programas de pós-graduação. Além disso, sinaliza a urgência de abordá-lo em um momento no qual os equipamentos do campo cultural e as leis de incentivo à cultura vêm sendo desmantelados ou precarizados a passos largos. A audiência pública com a participação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), em dezembro de 2021, para ouvir denúncias sobre censura e outras violações à liberdade de expressão no Brasil é, entre outras evidências, um indicador notável da situação alarmante que assola o país. Justamente nesse sentido, vários artigos registram o desmonte do apoio estatal às manifestações e patrimônios culturais, contextualizando tal processo e refletindo sobre seu significado.
Abrindo o dossiê, o artigo de Renata Rocha, “Políticas culturais, disputas políticas e o desenvolvimento do campo cultural no Brasil”, faz um histórico abrangente dos estudos sobre o assunto, de caráter multidisciplinar, revisitando autores e obras latino-americanos que contribuíram com a delimitação de pressupostos teórico-metodológicos e a própria definição do conceito. A autora, pesquisadora da área de comunicação, oferece, assim, uma porta de entrada importante para o entendimento do percurso histórico que o tema, hoje presente em distintos cursos e áreas de investigação, trilhou no país. Ao traçar este percurso, Rocha destaca a Era Vargas como um momento importante de afluência de políticas culturais estatais, período histórico também presente no segundo artigo do dossiê, de autoria da historiadora Patricia Tavares Raffaini. Em “Crianças entre livros. A criação das bibliotecas infantis da cidade de São Paulo (1936 a 1946)”, a autora aborda o papel de intelectuais mediadores na implementação de bibliotecas infantis e a recepção desta política executada pelo Departamento de Cultura de São Paulo, utilizando-se de ampla gama documental, que inclui memórias de indivíduos e documentação produzida pelas próprias bibliotecas.
Os dois artigos seguintes demonstram que a intensa relação do cinema com o Estado, dados sua importância política e seu alcance massivo, é um tema importante na discussão das políticas culturais na América Latina do século XX. Em “A construção de políticas públicas para a cultura no Brasil: um panorama da criação de órgãos e legislações específicas para o audiovisual”, Teresa Noll Trindade, pesquisadora da área de multimeios, tece um histórico fundamental das políticas públicas destinadas ao audiovisual no Brasil desde o início do século passado. A autora destaca os momentos históricos em que houve forte centralização na administração da cultura no país e analisa a importância das leis de incentivo e de organismos como a Ancine e o Fundo Setorial do Audiovisual para o cinema brasileiro.
Também voltado aos organismos estatais que regulam a produção cinematográfica, o artigo “La censura cinematográfica durante la dictadura militar en Chile. Un estudio cuantitativo del Consejo de Calificación Cinematográfica”, do historiador Jorge Iturriaga Echeverría, analisa a atuação do Consejo de Calificación Cinematográfico do Chile entre os anos de 1973 e 1989. O autor se vale, em sua análise, de um volumoso corpus de atas produzidas no processo de classificação dos filmes para avaliar os critérios e procedimentos de censura, bem como seu impacto na produção chilena. Seu olhar também se direciona aos censores e a outros agentes centrais nesse processo que pressupõe o controle estatal.
O quinto artigo do dossiê, de autoria do historiador Ivan Lima Gomes, intitulado “Contra a ‘avalanche desse género de literatura importada e de grande penetração popular’: histórias em quadrinhos no Brasil, entre americanização e nacionalização (1960-1964)”, analisa a resistência que tal produção artística enfrentou no país por parte de críticos e as pressões de artistas brasileiros, no Sul e no Sudeste, para sua afirmação, em um contexto marcado por forte anti-imperialismo e rejeição das influências estadunidenses em determinados segmentos culturais. Associações e cooperativas de artistas são alvo de sua investigação, que valoriza a história dessas lutas por espaço no mercado e no campo da crítica.
Também interessada em analisar questões concernentes ao nacionalismo nas políticas culturais, Tânia da Costa Garcia, em “‘Candeia. Luz da Inspiração’: política cultural, memória e identidades no Brasil dos anos de 1970”, aborda os contornos de um concurso de monografias sobre sambistas realizado pelo Departamento de Música Popular da Fundação Nacional de Arte (Funarte). A historiadora articula, em sua análise, níveis micro e macro das políticas culturais vigentes no país durante o regime militar e voltadas à música popular, mostrando as balizas presentes na Política Nacional de Cultura face a outros fatores que determinaram seu planejamento e execução, como as redes e os diferentes agentes envolvidos.
No sétimo artigo do dossiê, “Política cultural como instância do desenvolvimento social e do interesse comum no Brasil: Breve olhar sobre o Vale do Paraíba e Litoral Norte paulista”, as autoras Cilene Gomes e Valéria Zanetti analisam, da perspectiva do planejamento urbano, os parâmetros das políticas culturais levadas a cabo na região em questão, conformada por 39 municípios. Seu foco é a relação, em nível municipal e regional, de projetos de desenvolvimento com as ações que visam a construção de um sistema municipal de cultura, na perspectiva de compreensão dos impasses e das conquistas para as populações e comunidades envolvidas. A seguir, em “Erguendo, removendo e ressignificando as estátuas: olhares desde a experiência brasileira”, Aldira Guimarães Duarte e Carlos Federico Domínguez Avila abordam um tema contemporâneo que vem sendo alvo de instigantes discussões no campo da história e do patrimônio e que envolve questões importantes sobre as condições de participação democrática na construção de políticas culturais: as polêmicas acerca de estátuas alvos de protestos. Os autores enfocam casos brasileiros para reconstituir os debates e posicionar-se a favor da ressignificação ou remoção deste tipo de monumento.
No último artigo do dossiê, “‘Gestor-auditor’: a retórica da peritagem na política de cultura do governo Bolsonaro”, os três autores, Gabriel Cid, João Domingues e Leandro de Paula, tecem contribuições importantes para a avaliação da atual gestão cultural no Brasil. A partir da análise de discursos de dirigentes da Secretaria Especial de Cultura pronunciados entre maio de 2020 e junho de 2021, o artigo sintetiza a retórica e o novo perfil de gestor da cultura que vem se delineando no âmbito do Estado, estimulando, também, a reflexão histórica sobre os processos que precederam tal situação.
Assim, os nove artigos que compõem o dossiê demonstram a complexidade da dinâmica do campo cultural e a multiplicidade de atores envolvidos na produção e implementação de políticas culturais. Deixam patente, também, a riqueza deste objeto para o historiador e sugerem alguns caminhos, entre os vários possíveis, para abordá-lo.
A entrevista publicada ao final do dossiê também desenvolve aspectos relacionados às políticas culturais. Nela, o cientista político Peter Birle, diretor científico do Instituto Ibero-Americano e professor da Universidade Livre de Berlim, comenta sobre o campo dos estudos latino-americanos na Alemanha, opina sobre a relevância do tema deste dossiê e aborda políticas de memória e de cooperação científica levadas a cabo por diferentes atores latino-americanos e europeus.
Desejamos a todos uma ótima leitura!
Notas
3 GARCIA, Tânia; SCHMIEDECKE, Natália; VILLAÇA, Mariana (org.). Políticas culturais na América Latina. São Paulo: Editora Unifesp. No prelo.
4 O ciclo se intitulou “Políticas culturais na América Latina” e foi realizado de forma remota. Disponível em: https://centrodepesquisaeformacao.sescsp.org.br/atividade/politicas-culturais-na-america-latina. Acesso em: 26 dez. 2021.
Organizadores
Mariana Villaça – Doutora em História pela Universidade de São Paulo (USP), em São Paulo, SP, Brasil. Professora de História da América da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), em Guarulhos. orcid.org/0000-0002-1454-5461 E-mail: marimavi@hotmail.com
Natália Ayo Schmiedecke – Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, (UNESP), em Franca, SP, Brasil. Pesquisadora associada da Universidade de Hamburgo (UHH), em Hamburgo, Alemanha. orcid.org/0000-0002-6515-5965 E-mail: nati.ayo@gmail.com
Referências desta apresentação
VILLAÇA, Mariana; SCHMIEDECKE, Natália Ayo. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 48, n. 1, e-42516, jan./dez. 2022. Acessar publicação original [DR]
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