Política Externa Brasileira: a busca da autonomia/de Sarney a Lula | Tullo Vigevani e Gabriel Cepaluni

As potências médias têm política externa? O que significa ter autonomia nas relações internacionais? Quais os melhores caminhos para alcançá-la? Como as noções de autonomia se relacionam com a crescente interdependência econômica global? E como é processada diante dos movimentos de integração regional? Guiados por tais problemas, Tullo Vigevani e Gabriel Cepaluni – professores da Universidade Estadual Paulista (Unesp) – pensam a experiência internacional contemporânea do Brasil. Por um lado, as reflexões teóricas sobre os significados de autonomia delimitam o foco do estudo sobre a política externa brasileira após o fim do regime militar. De outro, a investigação empírica confere substância à construção conceitual sobre as formas peculiares de como a busca por autonomia se manifestou em cada contexto. Sob uma abordagem dialógica entre geral/particular e abstrato/concreto, os autores explicitam a co-constituição e a simbiose entre o pensamento teórico e o empírico.

No primeiro capítulo, Vigevani e Cepaluni debatem as diferentes noções de autonomia nas Relações Internacionais e apresentam suas próprias formulações. De acordo com os autores, a literatura latino-americana compreende autonomia como uma noção que se refere a uma política externa livre dos constrangimentos impostos pelos mais poderosos. Nesse sentido, autonomia é o espaço do não-impedimento e da autodeterminação. É a capacidade de resistir ou neutralizar as forças externas que restringem a liberdade de um Estado de traçar seus próprios rumos. Essa visão se contrapõe às noções presentes nas teorias mainstream, que reduzem seu significado à igualdade jurídica da soberania dos Estados.

A interpretação comum de que os Estados são “unidades iguais” vivendo sob a anarquia do sistema internacional é questionada. Para os países mais fracos, o ambiente internacional tem fortes traços de hierarquia. Assim, os autores buscam apresentar uma interpretação consciente das assimetrias de poder e das desigualdades jurídicas entre os Estados. Para o Brasil, a autonomia passa a ter significados particulares, estando sempre presente em sua política externa. Os meios para atingí-la (distância, participação e diversificação) tiveram impactos profundos sobre a ação externa do país. Nos capítulos seguintes, cada uma dessas estratégias são apresentadas e relacionadas com a conjuntura internacional de cada período.

A democratização e a crise econômica marcaram o contexto da realidade brasileira que fundamentaram a política externa do governo de Sarney (Capítulo 2). Vigevani e Cepaluni descrevem o desafio da diplomacia brasileira de agir sob os constrangimentos internos e externos que geravam pressões por mudança. Domesticamente, o novo presidente buscava consolidar sua legitimidade num ambiente politicamente instável. A transição democrática exigia uma ampla reforma legislativa para readequar as instituições ao novo regime. O esgotamento do modelo de industrialização por substituição de importações começava a parecer evidente ao coexistirem diversos fatores num cenário econômico preocupante: estagnação, inflação em alta e crescente dívida externa. Também na dimensão externa a diplomacia brasileira buscou reconstruir a imagem do país sob novas molduras democráticas. Os autores ressaltam as disputas do Brasil com os Estados Unidos nos casos do contencioso da informática, na questão das patentes farmacêuticas e nas negociações da Rodada do Uruguai como pontos centrais de tensão da política externa do Brasil. Em cada um dos casos fica patente a tentativa de preservar o espaço de atuação e decisão sobre estratégias de desenvolvimento nacional. Ou, em outros termos, a busca da autonomia pela distância, cujas principais características são: i) a contestação das regras e princípios fixados nas instituições internacionais; ii) a perseguição de uma estratégia de desenvolvimento autárquico; iii) e a resistência às pressões externas por abertura de mercado e por adesão à regulações de regimes internacionais.

Os governos de Collor e Itamar Franco (Capítulo 3) foram caracterizados pela instabilidade na formulação da política externa brasileira, sendo afetada por muitas mudanças de ministros e de orientações num curto espaço de tempo. Os autores ressaltam as turbulências que marcaram o período com as tentativas de repensar a inserção internacional do Brasil em meio a profundas mudanças na política internacional. Collor ensaiou dois movimentos que se intensificariam posteriormente: a diplomacia presidencial e a autonomia pela participação. O presidente assumiu o controle da política exterior com a intenção de projetar uma nova imagem do Brasil no mundo que estivesse em consonância com as reformas liberais e a modernização da economia do país. A abertura dos mercados nacionais aos investimentos e à competição estrangeira veio acompanhada da adesão do país aos regimes internacionais e da vontade de alcançar oportunidades de voz na agenda global. Os ajustes políticos e econômicos do país, somados à renúncia de pretensões militares, cumpririam esse papel. Mas, segundo os autores, as insatisfações com os retornos dessa estratégia não tardaram.

No segundo ano de governo, Collor concedeu novamente ao Itamaraty a função de formular a política exterior. O novo ministro, Celso Lafer, desenvolveu os conceitos de visão de futuro e de adaptação criativa para reconectar a tradição da política externa brasileira à necessidade de ajustarse a conjuntura internacional, de forma a reencontrar o lugar do Brasil no mundo. Em seguida, a diplomacia do País substituiu as posições inicias do presidente por um novo discurso de denúncias aos desafios das assimetrias de poder, do protecionismo dos países desenvolvidos e dos entraves à transferência de tecnologia. Mas o impeachment de Collor deu origem a mudanças políticas que afetaram mais uma vez as orientações externas do país. Sob a gestão de Itamar Franco, a política externa não se figurava entre as prioridades do governo, o que permitia ao Itamaraty agir com maior autonomia. As experiências de FHC e Celso Amorim como ministros serviram para ensaiar estratégias de inserção internacional distintas. Entretanto, nas palavras dos autores, não houve tempo suficiente para gerar grandes resultados. Foi um período de transições no qual o antigo paradigma de política externa não havia se esgotado completamente e um outro não havia surgido para tomar seu lugar.

A era FHC (Capítulo 4) foi marcada por um duplo movimento de ajustes domésticos e de adesão aos regimes internacionais como forma de influenciar a formulação das regras da sociedade internacional. O governo de FHC ambicionava sintonizar a economia nacional com as tendências liberais da globalização. Para tanto, buscou construir instituições que garantissem um ambiente favorável aos negócios e ajudassem a reconstruir a credibilidade do Brasil no exterior. A reconstrução da imagem do país passava também pela adesão brasileira aos regimes internacionais. Na visão dos formuladores políticos da época, essa aceitação era facilitada pela crescente convergência dos valores e princípios domésticos com os das instituições internacionais. A transição democrática e a construção de uma economia de mercado aproximavam o Brasil das tradições ocidentais. O ato de aceitar os regimes internacionais ajudava a tornar o país um interlocutor legítimo e capaz de influenciar a formulação das regras nas organizações internacionais. Essa é, na visão de Vigevani e Cepaluni, a essência da autonomia pela participação.

No lugar de fazer frente aos Estados Unidos, a política externa de FHC aceitava a unipolaridade americana como uma realidade incontornável. Ciente das limitações do poder brasileiro, a estratégia perseguida era a de ampliar o alcance e influenciar o caráter das regras a fim de diminuir as interações puramente de poder. O espaço de ação dos mais poderosos seria parcialmente restringido pelas regras, enquanto os mais fracos poderiam se respaldar nelas a fim de garantir uma margem de liberdade. Na visão dos autores, essa estratégia mostrou sinais de esgotamento a partir da inflexão da diplomacia norte-americana após o 11 de Setembro de 2001. Desse ponto em diante, a política externa brasileira buscou uma aproximação com países emergentes. Algumas das iniciativas tomadas nos últimos anos do governo de FHC tiveram continuidade no governo seguinte, sob forma e intensidade distintas.

Os anos Lula (Capítulo 5) foram marcados pela reafirmação da soberania nacional e pelo revigoramento da lógica de desenvolvimento nacional como diretrizes da política externa. Na visão de Vigevani e Cepaluni, enquanto FHC iniciou o diálogo com os países emergentes no final de seu mandato, a diplomacia de Lula avançou a aproximação e construiu alianças estratégicas. As articulações externas ganharam um novo sentido. A ação conjunta com os BRICs, Ibas, G3 e G20 demonstraram a versatilidade da estratégia da Cooperação Sul-Sul. A mobilização de países com poder e interesses semelhantes aos do Brasil visava alterar os regimes internacionais por meio da formação de coalizões capazes de contrabalançar a agenda criada pelos mais poderosos, mas evitando tensões desnecessárias e buscando manter relações amistosas com os países desenvolvidos. Sob essa lógica, a autonomia pela diversificação previa que a assimetria de poder entre os países do norte e do sul seria diminuída e os países emergentes recuperariam parte de sua autonomia.

No sexto capítulo, Vigevani e Cepaluni investigam como as ideias de autonomia e diversificação de parcerias se relacionam com o processo de integração regional nos quadros conceituais da política externa do Brasil. Integração presume a aceitação de um certo grau de interdependência e aumenta a necessidade de coordenação entre os Estados. Simultaneamente, a consequente limitação da autonomia restringe as opções e caminhos disponíveis para o país, solapando sua capacidade de buscar outras parcerias. Os autores argumentam que, durante a era FHC, o regionalismo era visto como forma de alcançar uma inserção internacional competitiva e um maior poder de barganha. Não era um fim em si. Estava subordinado à marcha brasileira para se tornar um global player e um global trader e ao objetivo de garantir uma gradual liberalização econômica multilateral. Já ao final de seu mandato, diversos setores da sociedade brasileira passaram a perceber o Mercosul como potencial obstáculo para a abertura de novos mercados.

Durante o governo Lula, apesar de ser indicada como prioritária pelo discurso oficial, a integração regional perdeu importância. O aumento do comércio com os países do Sul – principalmente com a China – levou a uma redefinição de prioridades da política externa brasileira que enfraqueceu a disposição para o aprofundamento do Mercosul e conduziu à diminuição relativa de importância das relações com a Argentina. Dessa forma, os autores concluem que o baixo grau de institucionalização do Mercosul está de acordo com os interesses das elites brasileiras. A perda de autonomia, os impedimentos à diversificação de parcerias e os custos que acompanham o aprofundamento da integração com um maior nível de institucionalização explicam a preferência do país pelo formato atual do Mercosul.

O sétimo capítulo, o mais curto do livro, descreve a evolução da política externa da Venezuela em cinco fases, perpassando o século XX até o governo de Hugo Chávez. Este último é descrito como uma inflexão da tradição do país de manter fortes vínculos políticos com os Estados Unidos. Em seguida, oferece uma breve avaliação das relações Brasil-Venezuela, enfatizando o potencial da cooperação entre os dois países e as diferenças ideológicas e estratégicas de cada um em suas ações externas. Ressaltam, por fim, a importância da Venezuela como pólo energético regional e mercado potencial para as exportações brasileiras na América do Sul.

O livro é uma versão traduzida e expandida da edição em inglês publicada pela Lexington Books, em 2009, sob o nome de Brazilian Foreign Policy in Changing Times: The Quest for Autonomy from Sarney to Lula. Embora alguns textos já tenham sido publicados anteriormente em revistas acadêmicas no Brasil e no exterior, a obra coloca as reflexões sobre cada governo num contexto amplo da história e das reflexões teóricas. O resultado é uma análise panorâmica, abrangente sem cair na superficialidade, concisa sem perder clareza, didática sem perder sofisticação. Por sua qualidade descritiva e analítica, o livro certamente irá se consolidar como uma das principais referências sobre política externa brasileira contemporânea


Resenhista

Reinaldo Alencar Domingues – Mestrando em Relações Internacionais pela UnB. E-mail: reinaldoalencar@gmail.com


Referências desta Resenha

VIGEVANI, Tullo; CEPALUNI, Gabriel. Política Externa Brasileira: a busca da autonomia, de Sarney a Lula. São Paulo: UNESP; Editora Unesp, 2011, Resenha de: DOMINGUES, Reinaldo Alencar. Monções: Revista de Relações Internacionais da UFGD. Dourados, v.1, n.2, p.304-307, jul./dez. 2012. Acessar publicação original [DR]

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