Política e sociedade na América Latina | Revista Hydra | 2016
É com imenso prazer e orgulho que apresentamos este primeiro número da Revista Hydra, periódico discente nascido, inicialmente, do desejo dos alunos ligados ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Ele vem à luz para nos mostrar que, apesar de ainda jovem, o curso de História da Unifesp – assim como toda a Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH) -, às vésperas de completar uma década de existência, começa a frutificar na produção intelectual e acadêmica de suas primeiras turmas de formados, tanto na graduação quanto na pós-graduação.
A organização de um periódico discente cumpre o papel fundamental de criar uma janela que se abre para o mundo e conecta a produção do curso ao cenário historiográfico mais amplo. Em contrapartida, é uma forma pela qual o exterior pode visualizar partes dos espaços interiores. Nesse sentido, desvela-se um conjunto discente preocupado em divulgar sua produção acadêmica, construir diálogos com outros pesquisadores e universidades, criticar continuamente seu próprio ofício e refletir sobre as questões urgentes do passado e do presente. Nada mais proveitoso do que isso!
Dentre os temas possíveis, e passíveis dessa missão de debate, os organizadores escolheram a América Latina como mote inaugural. O dossiê Política e sociedade na América Latina, de certa forma soma-se a um interesse recente e crescente das pesquisas acadêmicas sobre temas latino-americanos. Pode-se dizer que a antiga expressão que apregoava que o “Brasil está de costas para a América Latina” está quase superada. No campo da História, a área cresce exponencialmente e a produção nas universidades brasileiras hoje abarca a história indígena pré-hispânica, o chamado período colonial, os estudos oitocentistas e, como é de se esperar, de maneira mais prolífica, a história da América Latina no século XX. Este dossiê comprova isso. Os quatro artigos que o compõem são sobre o século passado!
No presente século, os governos de esquerda que se alastraram pelo continente parecem ter sido a grande novidade política. Do Chile, passando pelo Brasil, Argentina, Venezuela, Equador e Bolívia, vieram notícias, medidas, discursos, políticas sociais que de alguma maneira construíram um ambiente de reflexão e curiosidade sobre o fenômeno. Um continente tão marcado pela violência da conquista, da colonização, da escravidão, da formação de Estados autoritários e excludentes, parecia superar seu destino. As “veias abertas”, tudo indicava, encontravam um caminho de cicatrização. Não à toa, os organizadores resolveram dedicar esse número inaugural à memória do intelectual uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015), tão fundamental para as reflexões continentais.
A partir da América Latina também emanou um discurso que propunha um profundo questionamento do chamado eurocentrismo. Intelectuais como Walter Mignolo, Alberto Quijano, Enrique Dussell e Heriberto Carou foram descobertos e revisitados, pois traziam à cena uma nova forma de compreender a história comum do continente, subjugado pelo papel que lhe cabia numa modernidade pretensamente universal e que mal escondia um projeto colonialista, eurocêntrico, capitalista, racista e patriarcal. Dessa forma, esses novos governos faziam parte de um grande esforço decolonial, que permitiria às diversas partes da América emanarem suas próprias vozes, com autonomia e possibilidades reais de ressonância.
As expectativas, largas, não se concretizaram plenamente, mas para o que nos interessa aqui, cumpriram seu propósito ao chamarem a atenção dos estudiosos brasileiros para a América Latina, e para o fato evidente de que fazemos parte do continente. Compartilhamos com nossos vizinhos contíguos, e também com os mais distantes, além de uma geografia e uma herança ibérica comum, fronteiras secularmente fluidas, territorialidades indígenas que ultrapassam limites nacionais e intercâmbios de diversificadas naturezas: econômicas, sociais, culturais e políticas.
Dessa maneira, o presente número reflete esse interesse e essa expectativa: de compreender um pouco mais de uma América Latina em suas diversas vozes, agentes, protagonistas e centralidades. Como sugere a figura de Hydra, que dá título a este periódico, as múltiplas cabeças permitem compreender o que é diverso sobre um mesmo corpo. As identidades latino-americanas se revelam na diversidade. Os temas que nos ajudam a empreender esse exercício dialético contínuo entre o específico e conjuntural, com o amplo e o geral, são vários e diversificados. No dossiê atual surgem alguns deles, especialmente relacionados ao século XX: as esquerdas, os Estados e as ditaduras latino-americanas. Este último, em particular, é um exemplo do diálogo sistemático entre as especificidades dos processos nacionais e um quadro mais generalizado, de estados autoritários no continente.
Sobre o tema das ditaduras temos o primeiro artigo, de Rafael Leite Ferreira, que analisa a anticonstitucional violabilidade das correspondências dos presos políticos do Brasil na era Geisel (1974-1979). A partir de uma pasta de documentos encontrada no Arquivo Nacional o autor destrincha o universo de atuação de um Estado autoritário que ainda buscava manter aparências de legalidade.
O segundo artigo, de Julia Melo Azevedo Cruz, se volta para o cenário mexicano e para o notório movimento identificado como Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN). O que chama a atenção da autora são os essenciais processos de articulação e apropriação de uma memória do zapatismo da Revolução Mexicana, resgatada mais de oito décadas depois.
O próximo texto, fruto de uma parceria entre os professores argentinos Hernán Camarero e Martín Mangiantini, empreende um esforço de análise comparativa, diacrônica, entre as políticas do Partido Comunista Argentino, nas décadas de 1920-30, e do PRT-LaVerdad, de orientação trotskista, na mesma Argentina dos anos 1968-72. Num quadro de conjunturas distintas, os autores buscam desvendar os mecanismos comuns que ambos utilizaram para se aproximarem – e tentarem dirigir – a clase obrera.
Por fim, o artigo de Ana Carolina Oliveira Alves analisa um amplo projeto para a urbanização da cidade de Buenos Aires (1923-25), conhecido como Plan Noel, que reorganizou o território urbano portenho. O foco do texto é sobre o impacto dessas alterações, e concepções urbanísticas subjacentes, na Plaza de Mayo.
Os quatro artigos cobrem uma espacialidade diversa (Argentina, Brasil e México) e foram produzidos por pesquisadores de origens também distintas (Unicamp, UFMG, UFPE e Universidade de Buenos Aires). Dessa maneira, cumpre saudar o sucesso das intenções e pretensões iniciais da Revista. Resta ainda empreender um chamado: que este periódico discente seja um espaço de aprendizado e de experimentação para jovens pesquisadores que atravessam – e superam – as angústias iniciais de sua profissão e ofício. Portanto, aguarda-se ansiosamente a participação de graduandos, que produzem seus trabalhos de pesquisa em Iniciação Científica, em monografias de conclusão de curso, em trabalhos finais de disciplinas curriculares ou, muitas vezes, do desejo autônomo e voluntário.
Torcemos agora por uma Hydra que se multiplique e tenha uma vida longa e produtiva. O início é promissor! Boa leitura!
José Carlos Vilardaga – Professor de História da América – EFLCH – Unifesp. Vice Coordenador do Curso de História.
VILARDAGA, José Carlos. Apresentação. Revista Hydra. São Paulo, v.1, n.1, mar., 2016. Acessar publicação original [DR]