O número 66 da Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pósgraduados em História, da PUC / SP, traz a público o dossiê “Política, Cultura e Sociedade: temas e abordagens do Brasil Contemporâneo”. Não se trata apenas de publicar pesquisas que abordem a Ditadura Civil-Militar (1964- 1985) e as lutas de resistência à opressão, mas também olhar o passado atento à delicada situação política pela qual atravessa o Brasil no presente, em quem velhos fantasmas que pareciam habitar o passado ressurgem, ameaçadores. Mais do que nunca, é preciso revisar o passado recente, que ainda não terminou de passar. Os autores e as autoras deste número desvelam e iluminam vários aspectos da vida brasileira, enriquecendo o debate público da história mais recente. A eles e a elas, os editores da revista e os organizadores do número agradecem.
A capa desta edição da Projeto, vale dizer, foi selecionada justamente para transmitir a tensão política vivida no Brasil durante os anos finais do regime militar. Trata-se de uma fotografia da Passeata dos Cem Mil, pela Avenida Rio Branco, Candelária e Palácio Tiradentes, na cidade do Rio de Janeiro. Da manifestação, organizada por entidades estudantis, participaram intelectuais, artistas e trabalhadores sindicalizados e milhares de estudantes. Publicada no jornal Última Hora, em 27 de junho de 1968, ao reportar a manifestação do dia anterior, a foto registra aquela que foi a última grande manifestação popular contra a ditadura que logo se enrijeceria, com a decretação do Ato institucional número 5 (AI-5), em dezembro daquele ano.
Abrimos o dossiê com o artigo dos professores Luiz Antonio Dias (PUC-SP) e Rafael Lopes de Sousa (UNISA-SP), intitulado A greve da Volkswagen (1979): o despertar do novo sindicalismo e os métodos de controle da vida operária, no qual os autores analisam as resistências dos trabalhadores da fábrica automobilística frente à ditadura civil-militar. No artigo, contextualizam o desenvolvimento da crise econômica do final dos anos 1970 e começo dos 1980, a fim de compreender a consolidação de um novo sindicalismo. Com isso, partindo dos acontecimentos que culminaram na greve dos metalúrgicos do ABC de 1979, esclarecem “as redes de informações e controle criadas pela empresa para vigiar e punir os operários”. Além disso, os autores buscam jogar luz sobre “a lógica de apoio e cooperação desenvolvida entre agentes públicos e privados” ainda no contexto da greve.
Em seguida, reproduzimos o artigo Entre aplausos e denúncias: as entidades de advogados gaúchos e a instalação da ditadura civil-militar (1964-1966), de Dante Guimaraens Guazzelli. Nele, o autor busca demonstrar como os advogados do Rio Grande do Sul, logo no início do regime civil-militar, em 1964, apresentavam posturas ambivalentes em relação à quebra da legalidade constitucional, ora apoiando ora se opondo ao sistema político. O artigo leva os leitores a compreender a complexidade da instalação da ditadura no país.
Como terceiro artigo do dossiê, apresentamos o texto do professor Pedro Henrique Pedreira Campos (UFRRJ), intitulado Ditadura, interesses empresariais, fundo público e “corrupção”: o caso da atuação das empreiteiras na obra da hidrelétrica de Tucuruí. O artigo discute os projetos dos empresários entre as décadas de 1970 e 1980 envolvidos em escândalos de corrupção. Partindo de uma reflexão teórica sobre o tema da corrupção, o autor problematiza a ocorrência desses casos durante o regime militar e trabalha, mais especificamente, analisando a atuação de empreiteiras na obra da usina hidrelétrica de Tucuruí (1975-1984), no estado do Pará. A hipótese do autor aponta para disputas entre o “fundo público para acumulação de capital e busca de maiores taxas de lucro” como uma explicação viável para se compreender o uso de práticas ilegais pelas empresas e estreitar relações com o Estado.
Já no artigo Estratégia discursiva da ditadura civil-militar brasileira (1964- 1985): a legitimação através da escola, assinado pela professora Rosimar Serena Siqueira Esquinsani (UPF-RS), propõe-se a discussão da escola como um dos meios empregados pela ditadura para operacionalizar o discurso que exaltava o patriotismo, o patrulhamento ideológico, o recurso à autoridade e a politização das datas cívicas, sempre no sentido de legitimar a ditadura. A autora parte de uma metodologia analítico-reconstrutiva, ao utilizar como fonte para embasar sua análise doze livros didáticos adotados nas escolas brasileiras entre 1964 e 1985. A pesquisa demonstra o empenho dos agentes do Estado em legitimar a ditadura, por meio do uso das escolas e dos conteúdos dos livros didáticos.
Na sequência, o artigo de Gustavo Bianch Silva problematiza a relação da Universidade Federal de Viçosa com a política econômica e o plano de desenvolvimento adotados durante a ditadura militar no Brasil. Segundo o autor “o modelo de modernização da agricultura ambicionado na universidade […] teve grande convergência com a concepção da modernização econômica elaborada pelos militares em seus governos”. A hipótese levantada pelo autor indica que o ponto de interlocução entre a universidade e a política de desenvolvimento dos distintos governos das décadas de 1970 e 1980 teria facilitado, por parte das lideranças acadêmicas, uma postura de adesão ao regime
O professor Reginaldo Cerqueira Souza (Unifespa-PA), no artigo Guerrilha do Araguaia: violência, memória e reparação, problematiza o movimento de resistência armada contra a ditadura organizado por militantes de esquerda do Pará, Maranhão e Tocantins, durante a Guerrilha do Araguaia (1972-74). Com base nas teorias da literatura de teor testemunhal e da psicanálise, empregando os conceitos de “trauma”, “repetição” e “esquecimento”, o artigo busca compreender as razões por trás do esquecimento social acerca da guerrilha no estado do Pará, o aumento da violência nessa região e a negação às vítimas do Estado o direito de reparação e memória.
No artigo intitulado História, Cultura e identidade: olhares sobre comunidades quilombolas no estado do Amapá, Elivaldo Serrão Custódio (UNIFAP), Silvaney Rubens Alves de Souza (UNIFAP) e Maria das Dores do Rosário Almeida (UnB), abordam o debate acerca da reforma agrária ligado ao processo de resistência política dos movimentos negros organizados desde a década de 1980. No artigo, os autores contextualizam a longa trajetória de luta pela sobrevivência dessas comunidades tradicionais, remanescentes de quilombos, ainda distantes das políticas públicas das ações afirmativas.
Para encerrar o dossiê escolhemos o artigo Rompendo fronteiras: movimentos e imprensa de direitos humanos no Cone Sul (1970 / 1980), de Heloísa de Faria Cruz, professora do Departamento de História da PUC-SP. Nele, a autora analisa uma série de publicações produzidas por entidades de defesa dos direitos humanos veiculados entre os anos de 1970-80 em países como Chile e Argentina. Seu objetivo é refletir acerca da atuação dessas entidades, bem como sobre a cultura política de resistência aos regimes ditatoriais vigentes nos países do Cone Sul, demonstrando como se constituiu a rede de movimentos em defesa dos direitos humanos, destacando a importância dos circuitos de comunicação que a sustentaram.
No espaço dedicado aos artigos livres, o texto Os institutos disciplinares, a legislação sobre menoridade e a formação de setores estatais especializados em assistência a menores em São Paulo (1900-1935), assinado por Sérgio C. Fonseca e Felipe Ziotti Narita, discute a institucionalização de setores especializados na gestão de serviços públicos de assistência social para menores em São Paulo, entre o início do século XX e a década de 1930. A partir de textos jurídicos, relatórios oficiais e impressos publicados pelos serviços de assistência, o artigo busca analisar os meandros dos dispositivos estatais no âmbito do desenvolvimento socioeconômico e demográfico. Evidenciam-se no texto, as “ramificações institucionais em diálogo com a formação de serviços de saúde, a profissionalização da assistência aos pobres e a legislação referente a protocolos judiciais e policiais destinados ao governo da população”, como apontam os autores.
O segundo artigo livre Releituras do Contestado: O reino místico dos pinheirais, de Wilson Gasino, e a crítica à história oficial, do professor Claécio Ivan Schneider (UNIOESTE) busca problematizar as relações entre história e a literatura na construção do romance O reino místico dos pinheirais, publicado por Wilson Gasino, em 2011. Para o autor, o romance pode ser lido como “um instrumento de denúncia contra aqueles que construíram e compactuaram com interpretações preconceituosas da história, […] e estigmatizaram milhares de sertanejos que até hoje lutam por sua terra, por sua cidadania, enfim, pelos seus direitos humanos”.
O volume traz ainda duas resenhas. O primeiro texto, Brasil, mostra tua cara, mais ligado à temática do dossiê é uma apreciação crítica de Victor Gustavo de Souza sobre o livro Sobre o autoritarismo brasileiro, publicado por Lilia Moritz Schwarcz e lançado em 2019. Em linha com o projeto editorial da revista, marcado pela pluralidade e abertura aos mais diversos temas, a segunda resenha abre espaço para história de São Paulo de fins do século XVIII. Em Um olhar renovado sobre a história dos capitães-generais de São Paulo: o governo de Martim Lopes Lobo de Saldanha (1775-1782) José Rogério Beier debate o livro de Lorena Leite, “Déspota, tirano e arbitrário”: o governo de Lobo de Saldanha na Capitania de São Paulo (1775-1782), também lançado em 2019.
A Projeto História interessada em valorizar pesquisas de jovens pesquisadores há muitos anos mantém Notícias de Pesquisas, espaço que tem o objetivo de valorizar a produção de pesquisas em andamento. Este volume traz a pesquisa de Thays Fregolent de Almeida, intitulada Modernos bandeirantes, antigos interesses: a Expedição Roncador-Xingu e a conquista da fronteira oeste (1938-1948). A autora investiga a Expedição Roncador-Xingu (1943- 1948) como parte da campanha Marcha para o Oeste, importante investimento político realizado pelo Estado Novo (1937-1945). No texto, os conceitos de “fronteira econômica” e “fronteira política” são articuladas com a apropriação do bandeirantismo como símbolo.
O volume 66 da revista se encerra com a entrevista que o investigador Marcos Antônio Batista da Silva realizou com o professor e pesquisador Bruno Sena Martins (CES) – Universidade de Coimbra. No texto são problematizadas questões relativas à difusão da cultura científica, a colonização, o racismo, as políticas de ação afirmativa e sustentabilidade. Bruno Sena Martins é investigador do Centro de Estudos Sociais, cocoordenador do programa de doutoramento Human Rights in Contemporary Societies, e docente no programa de doutoramento em Pós-colonialismos e cidadania global.
É parte do esforço editorial da Projeto História: Revista do Programa de Estados Pós-graduados em História da PUC / SP criar espaços para que pesquisadores de outras universidades, de diferentes regiões do Brasil e de outros países possam contribuir com suas pesquisas.
Esperamos que os leitores apreciem criticamente os trabalhos selecionados, e que possam ter recepção fértil, gerar novas pesquisas e outras inquietações.
Alberto Luiz Schneider – Professor do Departamento de História da PUC / SP
Márcia Juliana Santos – Doutora em História (PUC / SP). Professora de História da Escola Móbile
SCHNEIDER, Alberto Luiz; SANTOS, Márcia Juliana. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.66, 2019. Acessar publicação original [DR]
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