A publicação deste dossiê – dedicado aos estudos coloniais – evidencia um momento significativo da permanente renovação pela qual tem passado esse importante campo historiográfico, trilhado pela história nacional desde seu nascimento, no século XIX – ou mesmo antes, se considerarmos as crônicas, notícias e “histórias” existentes desde o século XVI. No momento de afirmação do Estado Nacional, recém-emancipado da metrópole lusitana, coube ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ao lado de intelectuais de enorme envergadura, como Francisco Adolfo de Varnhagen, a ereção do passado colonial como gênese da nação e nascedouro da identidade nacional em formação.
Esse, aliás, é o tema do artigo de Elton Salgado e Avanete Pereira, presente nesse dossiê, que discute o nascimento da historiografia colonial a partir da obra História Geral do Brazil, de Varnhagen, tomando-a como expressão de um projeto de afirmação de uma dada identidade nacional pautada na continuidade entre o passado colonial e o estado monárquico. Os autores baseiam sua análise em uma visão comparada entre esse paradigma historiográfico, estabelecido no século XIX, e a historiografia da década de 1930, marcada pela revisão crítica do período colonial, como se vê nas obras de Caio Prado Jr. e Sérgio Buarque de Holanda. Indo além, os autores inserem no debate a obra O Brasil na história, de autoria do intelectual sergipano Manoel Bonfim, raramente lembrado pelos estudiosos da historiografia colonial.
De forma exploratória, o artigo “Conflitos e problemas no cotidiano dos governadores da Bahia, 1750-1760”, reúne e analisa diversas fontes referentes às durezas enfrentadas pelas autoridades coloniais, dando-nos uma pequena amostra de uma pesquisa de maior fôlego sobre os governadores da Bahia na segunda metade do século XVIII. Lançando mão do acervo disponível por meio do Projeto Resgate de Documentação Histórica, o autor explora a correspondência trocada entre as autoridades locais – enviadas do reino para o exercício da governança na América – e a metrópole, na qual aparecem os conflitos enfrentados no cotidiano colonial, incluindo desvios de dinheiro, desobediência às determinações régias e desconforto causado pelo clima e pelas doenças que acometiam também os poderosos.
Questões políticas e administrativas também estão presentes no artigo de Rodrigo Monteiro e Letícia Ferreira, que tem como tema o pagamento do dote do casamento de Catarina de Bragança com o rei Carlos II, selando a aliança de Portugal com a Inglaterra, no contexto da restauração lusitana frente ao domínio espanhol. Além de contribuir para o pagamento do dote, as possessões ultramarinas deveriam também ajudar a Coroa a saldar a dívida referente à indenização a ser paga aos holandeses pela perda de Pernambuco e capitanias vizinhas. O artigo explora as atas da câmara de Salvador referentes à cobrança e pagamento dessas contribuições, evidenciando que, para além do vultoso dispêndio, estava em jogo o vínculo entre os vassalos e a Coroa, ou seja, entre a metrópole a colônia, reafirmando laços de dependência e de soberania do monarca.
A restauração lusitana aparece também no artigo de Pablo Sabater, que discute a influência cultural da Espanha na iconografia régia a partir da pintura portuguesa daquele período. Indicando um caminho importante de renovação da historiografia colonial nos dias de hoje, o autor aproxima o universo da cultura e das artes ao universo da política, evidenciando que a afirmação da nova monarquia instaurada em Portugal após a separação da Espanha passava tanto pela construção da imagem do rei, inspirada no modelo espanhol, quanto pelos rituais de aclamação do novo monarca, tais como os que tiveram lugar no Rio de Janeiro, em 1641, durante o governo de Salvador Correa de Sá e Benevides, escrutinado pelo autor a partir de um relato contemporâneo.
A temática da festa e de sua importância política para a sociedade colonial aparece também no artigo de Humberto Fonsêca, o qual se concentra na procissão de Corpus Christi, vista, pelo autor, como ritual profano e sagrado, expressão da devoção popular, celebração festiva e, ao mesmo tempo, ritual de afirmação do poder e das hierarquias vigentes. A presença da procissão de Corpus Christi em diferentes partes do império lusitano revela uma continuidade fundamental do barroco português, embora também se possa perceber a emergência de especificidades locais, tais como a figura de um anão presente na procissão organizada pela Câmara de Salvador em 1673 e em diferentes momentos até o início do século XVIII, de acordo com a documentação consultada pelo autor.
Os artigos presentes no dossiê trazem à tona diferentes caminhos de pesquisa e de renovação da historiografia colonial, em particular no campo da história política e administrativa – favorecida pela enorme quantidade de fontes disponíveis, uma vez que os arquivos coloniais guardavam preferencialmente esse tipo de documentação – e da história cultural – ajudada pela presença significativa de rituais e festas no cotidiano colonial – passando, forçosamente, pelas interseções entre ambas, uma vez que a política e a cultura eram dimensões profundamente imbricadas naquela sociedade – não sendo, aliás, completamente dissociadas, na atualidade.
Cumpre, portanto, saudar o presente dossiê, que surge também como afirmação da Politeia enquanto espaço de produção e divulgação da historiografia baiana, nacional e internacional.
Fabricio Lyrio Santos – Professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) Doutor em História Social pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) E-mail: fabriciolyrio@yahoo.com.br
SANTOS, Fabricio Lyrio. Apresentação. Politeia: História e Sociedade. Vitória da Conquista, v.12, n. 1, 2012. Acessar publicação original [DR]
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