Durante muito tempo Raymundo Faoro com seu clássico, Os Donos do Poder, reinou sozinho e absoluto (permita-me o trocadilho) nas interpretações sobre as estruturas políticas da América portuguesa. Mesmo que autores anteriores a esta obra clássica tenham esboçado flertes e interpretações superficiais sobre a experiência política (a exemplos de Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda e Edmundo Zenha, só para citar alguns), foi com Faoro que a historiografia ganhava uma construção sistêmica sobre o Estado Brasileiro desde as suas origens até o início do século XX[1].
No que se refere à experiência colonial portuguesa na América, Os Donos do Poder apostava em um Estado Luso forte, poderoso e centralizador. Sem espaços para negociações, as leis e ordens eram aplicadas de cima para baixo e aceitas, sem muitos questionamentos, em todo o território do Atlântico. Assim, configurava-se o Absolutismo português na Época Moderna, com instituições administrativas com jurisdições bem delimitadas pouco replicadas nas conquistas (o que facilitaria o controle) e a opção do uso de agentes régios que fiscalizariam as ações e o cumprimento da lei nas conquistas ultramarinas. Enfim, podemos falar que a intepretação de Faoro complementava perfeitamente as teorias fundadas quase uma década antes por Caio Prado Júnior, em Formação do Brasil Contemporâneo, especialmente em seu ensaio inicial, O Sentido da Colonização. Se Prado Jr. estruturou o pensamento econômico colonial, Faoro tentava buscar o mesmo caminho no que tange ao político.
Todavia, se o Sentido da Colonização de Prado Júnior já sofria as primeiras críticas por voltas dos anos 70 do século XX, o Centralismo Absolutista Brasílico de Faoro haveria de esperar pelo menos mais quinze anos para que os questionamentos se tornassem mais sólidos. Conforme nos apontou Laura de Mello e Souza, em O Sol e a Sombra, grande parte dessas críticas partiu de fora para dentro (Charles Boxer, A.J.R. Russell-Wood, António Manuel Hespanha, Jack Greene e Nuno Gonçalo Monteiro), proporcionando interpretações que duvidavam do excesso de centralidade do Estado Português no Antigo Regime, destacavam as adaptações e os ajustes locais que as instituições e os agentes régios sofriam no momento da travessia do Atlântico, e assinalavam o uso recorrente de negociação, da barganha e do estique-e-puxa do direito para fazer valer a soberania portuguesa em terras distantes, bem como a sobrevivência do pacto colonial.
Foi imbuído neste espírito que o I Colóquio do Grupo de Estudos América Colonial propôs a discussão da temática Poder, Instituições e Redes Políticas na América Portuguesa como eixo central do evento, buscando revisar a historiografia, conectar as experiências regionais e ampliar o debate fortemente (re)estabelecido sobre o poder e a política no mundo colonial. Realizado em março de 2012, os textos apresentados nas conferências, inteiramente originais e inéditos, constituíram a formação do DOSSIÊ – PODER E ADMINISTRAÇÃO COLONIAL que hora se apresenta nestas páginas.
Como uma das principais historiadoras responsáveis por esta renovação do olhar sobre o poder na América portuguesa, Maria Fernanda Baptista Bicalho se junta a Isabele de Matos Pereira de Mello e nos oferece uma interpretação sobre o Governo das Almas, da Justiça e da Res Publica na cidade do Rio de Janeiro: Circunscrições, Instituições e Jurisdições (Século XVII e XVIII). Neste caso, as autoras se debruçam sobre uma temática recentemente explorada por essa história política colonial renovada que é a justiça e administração das leis nos dois lados do Atlântico. Tarefa também desempenhada em Poder, Administração e Construções de Identidades Coloniais em Alagoas (Séculos XVII-XVIII), onde Antonio Filipe Pereira Caetano busca compreender como as estruturas jurídicas (ouvidoria) e administrativas ajudaram a delinear o espaço “alagoano” internamente à Capitania de Pernambuco. Também discutindo identidade de grupo, Avanete Pereira Sousa em Circuitos Comerciais, Elites Mercantis e Redes Familiares (Bahia, Século XVIII) analisa como os homens de comércio da Bahia constituíram rotas mercantis e estruturas familiares que possibilitavam a atuação nos corpus político da urbe baiana. E, por fim, Entre Procurações e Escrituras: Fontes Cartoriais para História do Alto Sertão Paraibano (Arraial de Piranhas, 1720-1750), Rodrigo Ceballos mostra os primeiros resultados de seu projeto financiado pelo CNPq que investiga o mapeamento de documentos cartorários e o seu lugar para a compreensão do passado político colonial da Paraíba, conjunto documental raro e difícil de ser encontrado na maioria dos Estados Brasileiros do Tempo Presente.
Caminhando para outra seção da Revista Ultramares mais ainda permanecendo na temática sobre poder, os ARTIGOS são inaugurados com uma revisão historiográfica sobre administração e política colonial. Reinaldo Forte Carvalho, em Poderes Atlântico: Política e Administração do Império Português, mapear autores e pensadores que se debruçaram neste objeto, consolidando a discussão travada no dossiê em tela. Já Gefferson Ramos Rodrigues discute uma outra faceta do poder, ou melhor, uma das consequências do fazer política: as rebeliões. Também de cunho historiográfico, Notas sobre a participação dos grupos “populares” nas Rebeliões Coloniais encara uma discussão difícil: o que podemos chamar de povo na experiência colonial portuguesa na América? Problema muito longe do que é enfrentado em Jurisdição Militar, Inquisitorial e Territorial no Sul de Pernambuco: Contribuição a uma Arquitetura dos Poderes nas Capitanias de Porto Calvo, Alagoas e Rio de São Francisco (1655-1712), em que Alex Rolim, também fazendo uso de conceitos, só que jurisdicionais e administrativos, tenta delimitar os territórios das Vilas (ou seriam Capitanias?) da Comarca das Alagoas. Por fim, mesmo avançando temporalmente, Nuno Camarinhas, um dos principais pensadores luso sobre o poder imperial português, em “Fieis Realistas” e “Liberais Exaltados”: a Magistratura na Transição para o Liberalismo (1828-1830) nos apresenta o impacto das ideias liberais no mundo jurídico português depois da separação política do Brasil e os resultados da Guerra Civil no reino.
Encerrando esta edição, a obra de Joaquim Romero Magalhães, Concelhos e Organização Municipal na Época Moderna, será analisa em RESENHAS por Arthur Almeida Santos de Carvalho Curvelo, em seu texto Uma Visão Municipal do Mundo Português, descortinando como as estruturas de poder local foram forjadas no reino português e suas possíveis aplicabilidades para as conquistas ultramarinas.
Ou seja, apesar deste periódico ter um dossiê específico para discutir poder e administração, podemos afirmar que o número inteiro é especial para a discussão sobre esta temática. Assim, acreditando na importância do assunto e no lugar historiográfico que o tema tem ocupado seja nos programas de pós-graduação, nos eventos científicos ou nas escritas da histórica na produção contemporânea, a ideia da Revista Ultramares, como desde sua origem, se apresenta como mais um canal para discussão, reflexão e ampliação dos debates sobre este objeto. Então, boa leitura!
Nota
1. FAORO, Raymundo. Os Donos de Poder: Formação do Patronato Brasileiro. São Paulo: Editora Globo, 2 Volumes, 2004.
Organizador
Antonio Filipe Pereira Caetano – Professor do curso de História da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) atualmente coordena o Grupo de Estudos América Colonial (GEAC). É autor de trabalhos como Alagoas e o Império Colonial Português; Conflitos, Revoltas e Insurreições na América Portuguesa (Séculos XVII ao XIX); e Entre Drogas e Cachaça: a Política Colonial e as Tensões na América Portuguesa. E-mail: afpereiracaetano@hotmail.com
CAETANO, Antonio Filipe Pereira (Org d)
Referências desta apresentação
CAETANO, Antonio Filipe Pereira. Apresentação. Revista Ultramares. Maceió, n.2, v.1, ago./dez. 2012. Acessar publicação original [DR]
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