PNLD: memórias, tensões e desafios / História Hoje / 2018

Os livros didáticos são entendidos pela maioria de pesquisadores no campo do ensino de História e pelos professores que ensinam História nos diversos segmentos da escola básica como importante recurso material para uso em sala de aula e como fonte de pesquisa que se abre com possibilidades para os mais variados temas relacionados à educação escolar.

Fato posto é que nas últimas décadas ampliou-se e consolidou-se no país uma linha de investigação no campo do ensino de História relacionada aos livros didáticos e ao Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), na qual a dedicação dos pesquisadores resultou em uma expressiva produção científica que tem contribuído significativamente para a compreensão dos livros em suas diversas dimensões: o lugar que ocupam no mercado editorial e nas políticas públicas, os processos de seleção de conteúdos e métodos, e sua apropriação por alunos e professores no cenário escolar, dentre outras temáticas.

Entre os anos de 1996 e 2018 é possível identificar três marcos a partir dos quais organizou-se a proposta deste Dossiê, que tem como eixo o livro didático de História no âmbito do PNLD em um momento delicado de transformações pelas quais passam as políticas públicas brasileiras relacionadas à Educação, com os desdobramentos do golpe parlamentar impetrado à democracia no ano de 2016, que resultou no impeachment da Presidente da República que fora legitimamente eleita no pleito de 2014, com mais de 54,5 milhões de votos.

O primeiro marco refere-se ao documento “Recomendações para uma política pública de livros didáticos” (Brasil, 2001), publicado pelo Ministério da Educação, que apresenta os resultados de um estudo cujo objetivo foi avaliar as lacunas existentes no PNLD e propor caminhos para o aprimoramento do programa quanto às suas finalidades. Dentre outras recomendações, destacamos as apresentadas nas páginas 35, 41 e 46, que orientam ao Ministério da Educação (MEC) o apoio às universidades para que “pesquisas sobre o tema” (p. 35) sejam realizadas; que descentralize “o processo de avaliação de obras didáticas, por meio da elaboração de convênios com universidades públicas” (p. 41), e que essas parcerias visem “também à institucionalização do trabalho e à construção de conhecimentos e condições que garantam a continuidade da avaliação” (p. 46).

O segundo marco remonta às alterações instituídas no processo do PNLD 2007, quando se intensificou a preocupação em diversificar a representatividade regional do grupo de avaliadores, assim como em contemplar, na composição das equipes, professores da educação básica. Estas são duas ações da mais alta relevância para a qualificação dos processos avaliativos. Primeiro, porque a diversidade de procedência na composição das equipes avaliadoras contribui para que sejam trazidos diversos saberes e práticas culturais para dentro do PNLD, incorporando as diferentes visões e necessidades que se impõem sobre o livro didático nas mais variadas regiões e locais do nosso vasto e heterogêneo país. Rompe-se, dessa forma, com a hegemonia de Sul e Sudeste, praticamente as únicas regiões de onde até então provinham os profissionais que compunham as equipes avaliativas. Segundo, porque ao agregar professores da educação básica e da educação superior, vitalizam-se as duas instituições, provoca-se a troca de experiências, promovem-se escutas alteritárias e excedentes de visão (Bakhtin, 2003) entre os profissionais que, de diversas formas, estão implicados na produção, na pesquisa, nas escolhas e usos de livros didáticos.

O terceiro marco refere-se às alterações implementadas a partir do PNLD 2016, quando se concretiza efetivamente o convênio com as universidades públicas, proposto 15 anos antes, por meio da chamada pública para coordenação dos processos de avaliação dos livros didáticos. Essas alterações foram implementadas a partir do ano de 2015, quando a Coordenação Geral de Materiais Didáticos (COGEAM) esteve sob a coordenação da professora doutora Júnia Sales Pereira. Além da chamada pública para as Instituições de Ensino Superior (IES), houve a alteração da composição de uma comissão técnica formada por representantes de todas as áreas para desempenharem o papel de mediador entre a IES selecionadas por chamada pública e o MEC. Outra ação sob a responsabilidade da Comissão Técnica era efetivar o diálogo entre as diferentes áreas de conhecimento que compõem o PNLD, o que acabou revelando aspectos importantes quanto à forma como cada área compreende o livro didático e os seus desdobramentos no contexto escolar. Mais um aspecto a ser destacado é que a Comissão Técnica foi instituída já estabelecendo os coordenadores para todas as etapas da escolarização básica, a saber, anos iniciais e finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. Assim, para além do diálogo entre as áreas, foi possível estabelecer interlocução entre os diferentes níveis de ensino, o que reverberou em resultados importantes para serem investigados e divulgados. Na área de História, a Comissão Técnica foi composta pelas coordenadoras deste Dossiê e pela professora doutora Ana Maria Ferreira da Costa Monteiro.

Ao apresentar este importante Dossiê elege-se incitar todos os envolvidos com o campo da História e do ensino de História a considerar o retrocesso que se anuncia com as alterações indicadas no Decreto 9.099, de 18 de julho de 2017, para o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), que passa a ser chamado de Programa Nacional do Livro e do Material Didático, principalmente quanto à função das Universidades. Para tanto, recorre-se a uma abordagem documental tendo como fonte os Guias publicados no período de 1996 a 2018.

O PASSO A PASSO DA CONSOLIDAÇÃO DA PARCERIA MEC E UNIVERSIDADES NO PNLD

O Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), desde o ano de 1996, propõe um processo avaliativo no qual as universidades atuam em parceria com o Ministério da Educação (MEC). Essa parceria se estabeleceu em diferentes formatos ao longo dos últimos 21 anos, sempre primando pela decisão de dialogar com os resultados apontados pela pesquisa no campo do ensino de História e da historiografia. No período de pouco mais de duas décadas foram realizados 18 processos de avaliação e distribuição dos livros, sendo nove processos referentes ao que atualmente denominamos anos iniciais do Ensino Fundamental (1996, 1998, 2000 / 2001, 2004, 2007, 2010, 2013, 2016 e 2019); seis referentes aos anos finais do Ensino Fundamental (1999, 2005, 2008, 2011, 2014 e 2017); e quatro referentes ao Ensino Médio (2008, 2012, 2015 e 2018). Portanto, trata-se de uma política pública em que é possível identificar as relações de causalidade entre o decidido, o executado e os possíveis efeitos que produz em seus locais de destino: a escola pública de educação básica.

Para compreender as bases estabelecidas entre o MEC e as Universidades, recorre-se ao estudo das páginas de apresentação dos Guias do PNLD de História, período de 1996 a 2018. Em tais páginas são nominados os agentes do processo e a função desempenhada por ele. Há diferenças nas atribuições dos cargos, em relação tanto à criação como à extinção de funções de um processo para outro, assim como há modificações no uso de nomenclaturas para algumas funções. No entanto, é possível identificar como ao longo do tempo o PNLD foi se tornando uma política sólida e eficaz, na qual se investiu em alterações que acompanhassem o contínuo aumento quantitativo, no que se refere ao número de obras encaminhadas pelas editoras para a avaliação e, também, à capacidade de estabelecer ligações entre um processo e outro no sentido de sanar no processo seguinte os problemas indicados ao findar o processo anterior. O mapeamento e a disposição sistemática (Quadro 1) das instituições parceiras e dos nomes dos responsáveis pela condução do processo nas duas últimas décadas fornecem indicativos para contextualizar historicamente a promulgação do Decreto 9.099 / 2017 que, dentre outras questões, propõe um formato muito semelhante ao já utilizado na década de 1990 e que foi aprimorado após um estudo minucioso do Programa, cujos resultados foram publicados no Documento “Recomendações para uma política pública de livros didáticos” (Brasil, 2001). Um dos pontos indicados pelos especialistas relacionava-se à efetivação da parceria com as universidades públicas e à construção de práticas para aprimorar a transparência no processo de seleção das universidades, assim como à composição das equipes responsáveis pelo processo avaliativo.

O ano no título do Guia faz referência ao período no qual o livro chegará à escola e não ao ano da avaliação. Assim, quando se faz referência ao Guia

Quadro 1 – Dados da Equipe e IE Responsável pelo PNLD, 1996-2019

Quadro 1 Dados da Equipe de IE rESPONSAVEL PELO pnld PNLD

Fonte: Guias PNLD 1996 a 2018.

PNLD 2019, as ações do processo iniciam-se quando da publicação do Edital, que ocorre 2 anos antes. Para que o professor possa escolher os livros para o ano letivo de 2019, o Guia deve ser lançado em 2018. Tais informações são importantes para situar cronologicamente as alterações do PNLD com o processo de alternância no governo. No período compreendido entre 1995 e 2018 o país foi governado pelos presidentes Fernando Henrique Cardoso (1995- 2003), Luis Inácio Lula da Silva (2003-2011) e Dilma Rousseff (2011-2016), retirada da Presidência mediante um processo de impeachment que, dentre outras questões, em seu bojo alimentou bandeiras ultraconservadoras sobre a função da escola e sobre os conhecimentos a serem ensinados em tal espaço. A representação mais efetiva dessas concepções pode ser encontrada no Movimento Escola sem Partido, que defende a necessidade de cerceamento e policiamento sobre o que deve ou não ser ensinado na escola. Em 2016, Michel Temer assume a Presidência e, em 2018, é eleito Jair Messias Bolsonaro, apoiador do movimento supracitado.

Na primeira coluna do quadro estão listados os nomes das pessoas que desempenharam a função de articular o trabalho de avaliação entre o MEC e a equipe de avaliadores ao longo do tempo, denominadas de Coordenador de Área, Coordenador ou Comissão Técnica. Nos primeiros processos (1996 e 1997) o trabalho foi desenvolvido por uma só representante, a professora doutora Ernesta Zamboni, e nos dois anos seguintes (1999 e 2000 / 2001) o professor doutor Holien Gonçalves Bezerra trabalhou em conjunto com outras pessoas denominadas de assessores de área, cuja principal ação foi a condução efetiva do processo de avaliação junto aos pareceristas, liberando o representante da Comissão Técnica para as demandas junto ao MEC. Note-se que o uso da expressão “institucional” para designar o cargo do profissional que vai atuar em parceria com a Comissão Técnica aparece nos Guias somente no ano de 2004, e permanece até o Guia de 2018. No período de 2004 a 2015 vigorou o modelo no qual o MEC indicava a Comissão Técnica e esta escolhia a Instituição e, em decorrência, o Coordenador Institucional e o Coordenador Pedagógico. Essa primeira alteração no anúncio das equipes, que pode ser constatada nos Guias, é um ponto importante para entender como se consolidou a parceria entre o MEC e as Universidades ao longo do PNLD pois, ainda que a Unicamp e a UFG estejam representadas nas figuras da professora Ernesta e do professor Holien, respectivamente, no ano de 2004 a indicação explícita de vínculo institucional remete a duas questões basilares no PNLD: a primeira no âmbito logístico, pois toda a estrutura da organização quanto aos encontros dos avaliadores ficará a partir de então a cargo da instituição, e a segunda de caráter pedagógico, pois se efetiva a valorização da produção do conhecimento produzido na área e que, em tese, deve alicerçar o processo de avaliação dos conteúdos apresentados nas obras. Isso porque, em conjunto, Comissão Técnica, Coordenação Institucional e Coordenação Pedagógica selecionam a equipe de avaliadores.

Nos documentos analisados é possível identificar a efetivação desse modelo ao constatar que a partir do Guia de 2007 a página de apresentação da equipe responsável pela avaliação encerra-se com a indicação da instituição responsável pela avaliação. Em 2010 foi promulgado o Decreto 7.084 / 2010 (Brasil, 2010) que estabeleceu o PNLD como programa de Estado, sendo os processos avaliativos subsequentes regidos pelo que ali foi disposto, complementados a cada edição do programa por instruções normativas que atendiam e buscavam solucionar as demandas pontuais geradas, pois o empreendimento de elaboração, avaliação e distribuição de livros didáticos implica dialogar com os movimentos da ação educativa e amplos setores da sociedade, o que nos coloca frente a um objeto em constante reformulação.

Ora, ao definir o PNLD como política de Estado e não de governo, defende-se que suas ações tenham caráter mais permanente e sistêmico, indo além de escolhas de ocasião ou medidas conjunturais para responder à agenda política interna. Ainda que a produção, avaliação e distribuição de materiais didáticos por meio do PNLD se configurem como ações em constante movimento e confiram espaço para as inovações e atualizações, não se pode renunciar ao compromisso ético e político do Estado brasileiro com a democracia, a cidadania, o pluralismo de ideias, a justiça social, os direitos humanos, enfim, com os valores civilizatórios e republicanos que são pautados e consensualmente considerados como essenciais nas sociedades contemporâneas. Destarte, esses são valores e fundamentos que devem constituir os critérios para avaliação e distribuição de materiais didáticos às crianças e jovens da educação básica, no âmbito do PNLD, daí a importância de garanti-lo como política de Estado.

O Decreto 7.084 / 2010 estipula a participação das universidades no processo de avaliação, item indicado como fundamental para o aprimoramento do PNLD enquanto política pública no documento de 2001, conforme já apresentado:

Art. 14: A avaliação pedagógica das obras será realizada por instituições de educação superior públicas, de acordo com as orientações e diretrizes estabelecidas pelo Ministério da Educação, a partir das especificações e critérios fixados no edital correspondente.

  • 1º: Para realizar a avaliação pedagógica, as instituições de educação superior públicas constituirão equipes formadas por professores do seu quadro funcional, professores convidados de outras instituições de ensino superior e professores da rede pública de ensino. (Brasil, 2010)

Os envolvidos na elaboração do estudo realizado em 2001 e os participantes do texto do decreto promulgado em 2010 apresentavam ciência sobre o significado e a importância de um processo com as características do PNLD, que movimenta bilhões de reais no mercado editorial, estar sob o selo de validação de uma universidade pública e com pesquisadores atuantes no campo da História e do Ensino de História.

Os Guias de 2016, 2017 e 2018 registram as mudanças impetradas no PNLD a partir do ano de 2015 que buscavam, dentre outras questões, conferir maior visibilidade ao processo de escolha das universidades e da composição da equipe de avaliadores pois, ainda que internamente o programa caminhasse dentro da normatização vigente, havia questionamentos sobre a centralização dos processos na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Gráfico 1). Foi nesse contexto que a então responsável pela Coordenação Geral de Materiais Didáticos do Ministério da Educação (COGEAM / MEC), professora doutora Júnia Sales Pereira, disparou a convocação pública para que as universidades se candidatassem para sediar o processo de avaliação. Paralelamente, como já abordado no início deste artigo e apresentado no Quadro 1, foi composta a Comissão Técnica para as edições do PNLD 2016, 2017 e 2018 em todas as áreas e para os três níveis de escolaridade.

A Universidade Federal de Sergipe (UFS) candidatou-se e foi selecionada para sediar o processo avaliativo do PNLD 2016, que tratou dos livros didáticos para os anos iniciais do Ensino Fundamental. No ano de 2017, a instituição classificada para avaliar as obras dos anos finais foi a Universidade Estadual de Londrina (UEL) e, em 2018, novamente, a Universidade Federal de Sergipe sediou a avaliação dos livros destinados ao Ensino Médio. Em meio ao PNLD 2017, o país foi assaltado por profundas mudanças no cenário político e, consequentemente, houve alterações no curso do processo, embora ele tenha sido finalizado dentro das normativas instituídas em 2015.

Não houve tempo para que o processo de parceria entre MEC e instituições de educação superior públicas se estruturasse sobre novas bases, pois, no Decreto 9.099, de 18 de julho de 2017, outras instituições foram eleitas como parceiras pelo MEC. O texto desse decreto, apesar de indicar uma possível ampliação quanto à escolha da Comissão Técnica que conduzirá o processo – pois tal escolha se efetuará a partir de indicações de nove organizações –, o que se efetiva na prática é o total afastamento das instituições de ensino superior. A partir de 2017 o PNLD passa a ser regido pelas seguintes normas quanto à composição das equipes de avaliação:

Art. 10. A avaliação pedagógica dos materiais didáticos no âmbito do PNLD será coordenada pelo Ministério da Educação com base nos seguintes critérios, quando aplicáveis, sem prejuízo de outros que venham a ser previstos em edital […]

Art. 12. A escolha dos integrantes de cada comissão técnica será feita pelo Ministro de Estado da Educação, a partir da indicação das seguintes instituições:

I – Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação;

II – Conselho Nacional de Secretários de Educação;

III – União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação; IV – União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação;

V – Fórum Nacional dos Conselhos Estaduais de Educação;

VI – Conselho Nacional de Educação;

VII – Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior;

VIII – Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica; e

IX – entidades da sociedade civil escolhidas pelo Ministério da Educação para elaboração das listas tríplices do Conselho Nacional de Educação, conforme o disposto no Decreto nº 3.295, de 15 de dezembro de 1999.

  • 1º Para realizar a avaliação pedagógica, serão constituídas equipes de avaliação formadas por professores das redes públicas e privadas de ensino superior e da educação básica.

Ao longo de duas décadas não foram poucos os embates questionando a legitimidade das universidades e da equipe de avaliadores, muitos dos quais se transformaram em processos administrativos ou judiciais com inquirições sobre os mais variados temas, todos respondidos adequadamente pelos responsáveis. Um acontecimento ímpar que ilustra o embate em torno da avaliação dos livros didáticos e o modo como as editoras legitimam, ou não, o papel das universidades no processo, deu-se nas edições do PNLD 2008 e do Programa Nacional do Livro para o Ensino Médio (PNLEM) 2008, portanto, 2 anos antes do decreto que normatiza essa parceria, quando determinada editora teve a coleção de um autor aprovada para o Ensino Médio e a coleção do mesmo autor reprovada para o Ensino Fundamental. Os processos foram realizados em diferentes universidades. Em folder distribuído durante um encontro da área do Ensino de História realizado na Universidade de São Paulo (USP), os editores faziam questionamento explícito sobre a capacidade de uma das universidades em responsabilizar-se pelo processo. Fato passado, o mais importante do ocorrido é que a própria editora legitimou a importância da parceria com as universidades e com os cursos de pós-graduação para a condução de uma avaliação rigorosa e de qualidade.

No PNLD 2018, ainda que possa parecer contraditório considerando-se a instabilidade vivenciada no país, ampliaram-se as alterações iniciadas em 2015 com a composição de um banco de avaliadores, no qual docentes de todo o Brasil e atuantes em diferentes níveis de ensino, educação básica e ensino superior, ao realizarem seu cadastramento no sistema, colocavam-se à disposição para, caso sorteados e posteriormente selecionados, compor a equipe de avaliadores. O processo do PNLD 2018 foi marcado pelas alterações políticas ocorridas no país nos 2 últimos anos, que incidiram de forma intensa em todos os setores da educação e têm provocado, a passos largos, um desmonte sem precedentes em vários programas do Ministério da Educação (MEC).

O que se pode e deve registrar em meio a todas as mudanças que se anunciam quanto às políticas públicas para os livros didáticos, é a necessidade de considerar, ao tratar dos desdobramentos do PNLD, a amplitude que os programas de material didático assumem na atualidade no Brasil, o que concede ao nosso país o status de maior comprador de livros didáticos do mundo, mobilizando em torno de 1,3 bilhão de reais anualmente, conforme dados disponíveis no Portal do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE).13 O PNLD 2019, por exemplo, fez atendimento aos professores da educação infantil e aos estudantes e professores dos anos iniciais do ensino fundamental, fez a reposição dos livros consumíveis para os estudantes e professores dos anos finais do ensino fundamental e ensino médio, e forneceu livros adicionais consumíveis e reutilizáveis, em virtude do acréscimo de matrículas, para alunos do ensino fundamental e médio. Nesse atendimento, o FNDE mobilizou recursos financeiros vultosos, da seguinte ordem: foram 147.857 escolas beneficiadas; 35.177.899 alunos atendidos; 26.110.481 exemplares distribuídos, totalizando o montante de R$ 1.102.571.912,18 investidos.14

No que diz respeito à produção e financiamento do livro didático, focalizando a distribuição de valores de aquisição por editora, os dados do PNLD 2019 apontam expressiva concentração de recursos em poucos grupos editoriais. Verificaram-se os seguintes números entre as primeiras cinco editoras que mais venderam livros ao FNDE nesta edição do PNLD: 1º) Editora Moderna, com valores de R$ 245.472.193,31; 2º) Editora Ática, com R$ 215.332.901,00; 3º) Editora FTD, com R$ 143.394.435,86; 4º) Edições SM, com R$ 114.720.331,11; 5º) Saraiva Educação, com R$ 97.610.956,86. Depreende-se dos números disponíveis que essas cinco editoras receberam o total de R$ 816.530.818,14, respondendo por 74,06% das vendas de livros didáticos no PNLD 2019.15 As demais vinte editoras que forneceram livros didáticos neste processo do PNLD receberam o total de R$ 286.041.094,04, o que configura o percentual de 25,94%.

É nesse contexto que formulamos a proposta deste Dossiê temático. Propusemos agrupar reflexões que incidem, principalmente, sobre esses três últimos processos nos quais foram efetivadas diversas mudanças que sinalizaram para o aperfeiçoamento e democratização do PNLD. Importante registrar que estudos que elegem os editais do PNLD como fonte de pesquisa, assim como os que abordam os livros didáticos como documento base, indicam que as principais transformações ocorrem no campo da formação cidadã, apontando claramente para a ideia de inclusão das populações marginalizadas, como os povos afrodescendentes e indígenas, aliada à abordagem das mulheres como sujeitos atuantes da História, assim como de outros segmentos sociais silenciados ao longo de décadas. Portanto, abordar o PNLD nesses tempos em que vivenciamos o desmonte de políticas públicas tão importantes para a educação brasileira mostra-se mais do que necessário. Trata-se de um empreendimento imperioso e inescusável.

Este Dossiê se apresenta, portanto, como uma ação política necessária. Reúnem-se nele os registros sobre o PNLD, tanto em relação à trajetória do Programa quanto em relação às alterações que, em última instância, alijam as IES e, em decorrência, buscam conferir descrédito aos pesquisadores e à pesquisa sobre o ensino de História e os livros didáticos no contexto da avaliação. Trata-se de avançar os questionamentos e registrar os significados e os desdobramentos do lugar da universidade no processo de avaliação das obras, com base no disposto no Decreto 9.099, de 18 de julho de 2017. Questiona-se: o que se quer excluir e por quê? O que se quer incluir e por quê?

Os autores nacionais convidados participaram dos três últimos processos em diferentes funções e tratam de temas variados que se entrecruzam com o  eixo proposto, o livro didático de História no âmbito do PNLD, a partir de recortes investigativos que possibilitam compreender as diferentes facetas de um Programa complexo e plural. Os autores estrangeiros apresentam contribuições sobre o livro didático em seus países, o que ampara uma compreensão mais alargada sobre o tema.

O artigo que inaugura o Dossiê é intitulado “Sob nova direção: o PNLD e seus desafios frente aos contextos político-educativos emergentes”, de Flávia Eloisa Caimi. A pesquisadora expõe os resultados de uma pesquisa de natureza bibliográfica e documental na qual analisa os caminhos recentes do PNLD, especialmente no que diz respeito às alterações feitas nessa importante política pública, no momento em que o país vive um contexto político-educativo marcado por fortes disputas em torno do papel do Estado na promoção da redistribuição de bens públicos, da cidadania e da justiça social.

A contribuição seguinte é trazida pelos pesquisadores Danielle Krislaine Pereira, Luis Henrique Mioto e Marisa Noda e recebe o título “Dialogando com os indígenas sobre a lacuna da fala indígena nos Livros Didáticos”. Os autores buscam responder à seguinte questão: como avançar na direção de um ensino / aprendizagem mais significativo sobre as sociedades indígenas? Analisam alguns livros didáticos que abordam a temática e apresentam as falas dos indígenas dos estados do Paraná e Santa Catarina. Na conclusão destacam a importância de um ensino que valorize o contato e convivência com os indígenas, para que os conhecimentos equivocados e os preconceitos deem lugar a um conhecimento mais real sobre as diferentes etnias e sociedades indígenas do Brasil.

É de Márcia Elisa Teté Ramos, Marlene Rosa Cainelli e Sandra Regina Ferreira de Oliveira a autoria do artigo “As sociedades indígenas nos livros didáticos de História: entre avanços, lacunas e desafios”. As autoras se debruçam sobre a avaliação realizada no PNLD 2017 para analisar dois aspectos relacionados à temática indígena, que dizem respeito ao tratamento dos conteúdos e às orientações destinadas aos professores. Essa abordagem é dimensionada numa temporalidade mais alargada, remontando a análises da década de 1970 sobre a temática indígena em livros didáticos de História. As conclusões apontam para a fragilidade no tratamento dessa temática, persistindo um cenário de restrições e silenciamentos, não obstante a existência da Lei 11.645 / 2008.

Helenice Rocha assina o texto “Desafios presentes nos livros didáticos de História: narrar o que ainda está acontecendo”, em que expõe uma pesquisa de natureza exploratória num corpus constituído de 15 livros didáticos de História aprovados no PNLD 2011. Elegendo como foco temático a “nova ordem mundial”, o esforço investigativo da autora se direciona para a produção de uma narrativa síntese, destacando recorrências, singularidades conceituais e inter-relações entre as noções apresentadas nas narrativas principais dos livros.

“História e memória em movimento: escravatura, educação e (anti)racismo em Portugal” é o título do artigo das pesquisadoras Marta Araujo, da Universidade de Coimbra, e Anabela Rodrigues, do Grupo de Teatro do Oprimido de Lisboa e Laboratório AmiAfro. Nesse estudo, as autoras investigam o ensino da história da escravatura em Portugal, mostrando aspectos da despolitização desse processo histórico e a forma como é trivializada a sua relação com o racismo contemporâneo. Para contrapor tal cenário, trazem à luz algumas iniciativas de educação informal dos movimentos sociais, cujo propósito é manter viva a memória histórica das populações racializadas.

De Buenos Aires vem a contribuição de Marisa Massone, com o artigo “Mutaciones de los materiales y las prácticas de lectura en la enseñanza de la Historia hoy”. A autora analisa o papel dos livros didáticos e materiais escolares na escola secundária, apontando para uma profunda transformação dos livros, não obstante a sua predominância nos contextos escolares. Os estudos indicam a coexistência dos livros com uma diversidade de outros materiais, como documentários, páginas web e wikipedia, situação que acaba por conferir aos professores o papel de mediadores entre livros e telas.

Por fim, contamos com a instigante entrevista concedida pela doutora Júnia Sales Pereira, professora aposentada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) da área de Ensino de História. Sua atuação no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) destacou-se em diferentes frentes de trabalho: foi Coordenadora Pedagógica do PNBE Temático (2013-2014) e Coordenadora Geral de Materiais Didáticos (COGEAM) do Ministério da Educação (2014-2015). Conduzidos pelo seu criterioso e qualificado olhar, adentramos os meandros do PNLD, compreendemos algumas de suas mais importantes diretrizes e reconhecemos as conquistas e fragilidades que compõem essa importante política pública.

Na condição de organizadoras deste Dossiê, esperamos que os textos ora publicados sejam proveitosos para os leitores, impulsionando fecundas reflexões e exitosas práticas. A todos / as, uma excelente leitura!

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BRASIL. Recomendações para uma política pública de livros didáticos. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Fundamental, 2001.

BRASIL. Presidência da República. Decreto nº 7.084, de 27 de janeiro de 2010. Disponível em: http: / / www.planalto.gov.br / ccivil_03 / _Ato2007-2010 / 2010 / Decreto / D7084.htm. Acesso em: 18 maio 2018.

BRASIL. Presidência da República. Decreto nº 9.099, de 18 de julho de 2017. Disponível em: http: / / www.planalto.gov.br / ccivil_03 / _ato2015-2018 / 2017 / decreto / D9099.htm. Acesso em: 22 jul. 2018.

Notas

  1. Área de Estudos Sociais.
  2. Séries Iniciais – nomenclatura utilizada na época para 1ª a 4ª séries do Ensino Fundamental.
  3. Área de Estudos Sociais.
  4. Séries Finais – nomenclatura utilizada na época para 5ª a 8ª séries do Ensino Fundamental.
  5. Nomenclatura utilizada no processo: Assessor de Coordenação.
  6. Os livros são de Estudos Sociais, mas são compostas equipes de História e de Geografia para o processo de avaliação.
  7. Nomenclatura utilizada no processo: Assessora de Área.
  8. Efetiva a extinção dos Estudos Sociais. Livros de História.
  9. Período de transição após a promulgação da Lei 11.274, de 6 de fevereiro de 2006, que institui o Ensino Fundamental de 9 anos e muda a nomenclatura “séries” para “anos” iniciais.
  10. A nomenclatura utilizada para a avalição dos livros didáticos do Ensino Médio cujo resultado foi publicado no Guia de 2008 é Programa Nacional do Livro para o Ensino Médio (PNLEM).
  11. Disponível em: http: / / www.fnde.gov.br / programas / livro-didatico / livro-didatico-dados- -estatisticos. Acesso em: 16 nov. 2016.
  12. Disponível em: https: / / www.fnde.gov.br / programas / programas-do-livro / livro-didatico / dados-estatisticos. Acesso em: 1 fev. 2019.
  13. Disponível em: https: / / www.fnde.gov.br / programas / programas-do-livro / livro-didatico / dados-estatisticos. Acesso em: 1 fev. 2019.

Sandra Regina Ferreira de Oliveira – 1 Doutora em Educação (Unicamp). Pós-doutora pela Flacso / Argentina.  Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Estadual de Londrina (UEL), Londrina, PR, Brasil.  E-mail: sandraoliveira.uel@gmail.com.

Flávia Eloisa Caimi -2 Doutora em Educação (UFRGS). Pós-doutora pela Flacso / Argentina. Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Passo Fundo (UPF), Passo Fundo, RS, Brasil. E-mail: caimi.flavia@gmail.com.

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[DR]

 

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