Pistas falsas: uma ficção antropológica | Néstor García Cancline
Nestor Garcia Canclini | Imagem: Jornal da USP, 2020
Todo o planeta, uma década no futuro – este é o ambiente do novo livro do antropólogo argentino Néstor García Canclini. “Pistas Falsas: Uma Ficção Antropológica” (Itaú Cultural/Iluminuras, 2020, 106 páginas na versão digital) é um trabalho ficcional do autor empossado em 2020 na Cátedra Olavo Setúbal de Arte, Cultura e Ciência do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. Está dividido ao todo em 20 capítulos, sendo estes divisíveis em dois grupos. No primeiro grupo, de quinze capítulos, a narrativa é apresentada em terceira pessoa onisciente, cujo enfoque é na descrição de mundo, e os diálogos, centrados nas relações acadêmicas e pessoais dos principais personagens. O segundo grupo reúne cinco diários de campo em primeira pessoa, “escritos” pelo protagonista: um arqueólogo chinês não-nomeado, cujo conflito inicial se dá quando, intrigado pelas condições sociais e culturais da América Latina, começa uma pesquisa antropológica urbana ao se mudar para Buenos Aires.
Por mais que o subtítulo o frise, este trabalho traz em segundo plano seu aspecto ficcional. Aqui, o foco principal de Canclini está em dois aspectos principais: a construção de mundo; e o consequente levantamento de debates acadêmicos já presentes em sua obra anterior. Boa parte desses conteúdos são inseridos como insights do protagonista e dos demais personagens em diálogos cotidianos. A trama se desenvolve sobretudo no universo acadêmico, onde inclusive se dá o par de relacionamento do protagonista com a socióloga Elena, desenvolvido ao longo da história.
Tomando-se inicialmente o primeiro aspecto para análise, é plausível a colocação do trabalho como um texto distópico, ao elencar em seus capítulos “os danos prováveis caso determinadas tendências do presente vençam” (HILÁRIO, 2013, p. 206). Esta característica está referenciada na frase do compositor Michael Nyman, de que “Goya viu Hitler antes que Hitler visse Goya”, colocada logo na abertura do livro (CANCLINI, 2020, p. 9). A metáfora do pintor espanhol e sua obra atravessa outros capítulos como “A China Não Conhece a Épica” e “Monotonia do Mal”, justamente pela capacidade do artista de compreensão da crueza dos conflitos sociais de modo não-dicotômico ou moralista. Essa reflexão se mostra coerente quando o principal alvo critico dessa distopia é, tal como na obra teórica de Canclini, o processo de globalização neoliberal e as suas formas idiossincráticas de socialização decorrentes.
Fugindo também das oposições simplistas, não há no livro um país ou um lugar analisado em contraste a um outro, uma outra realidade, seguindo o que Canclini (1997, p. 17) já comentava nos anos 1990, de que “o que se produz no mundo todo está aqui e é difícil de saber o que é o próprio”. Por mais que haja uma presença compreensível da América Latina na narrativa – em especial Argentina e México, os dois países onde o autor mais atuou profissionalmente – e de suas tensões e especificidades “glocalizadas” (neologismo usado originalmente em conversas de negócios mas retomado por Canclini (1997, p. 85) a fim de demonstrar o amálgama entre global e local), a sina distópica é compartilhada nas viagens do protagonista por diversos países. Por meio dessa escolha, é como se fosse extirpada totalmente a dimensão espacial do “não-lugar” da tradição do texto utópico enquanto um espaço da diferença, do distante e do outro a ser discutido ou descoberto – fenômeno substituído paulatinamente desde o século XVIII pelo enfoque temporal à medida em que “os espaços […] haviam sido ultrapassados pela experiência” (KOSELLECK, 2014, p. 124).
Seguem-se então as características desse mundo não-conceituado: poluição e catástrofes climáticas frequentes, fluxos migratórios para além da legalidade, guerras via cibernética e armas biológicas, esgotamento institucional de governos e partidos combinado com a ascensão da extrema-direita, em um momento de “descidadanização transnacional” (CANCLINI, 2019, p. 36, tradução nossa). É sintomático que o protagonista da história seja um arqueólogo cujo trabalho anterior à sua viagem a Buenos Aires sintomaticamente era fazer escavações de relatórios de empresas fraudulentas. Nesse cenário, no caso da América Latina retratada, o que pode acontecer é paradoxalmente o surgimento de “países sem futuro” (CANCLINI, 2020, p. 11), em função de seu papel na divisão internacional de trabalho como fornecedores de matéria-prima e espaço de dependência do capital externo.
Com o arqueólogo chinês já inserido no cenário latino-americano, em cada capítulo, o autor vai abrindo diálogos, ampliando sua trajetória acadêmica. O espaço urbano das metrópoles globalizadas entra em cena, seja pela releitura da figura do flaneur da crônica literária urbana, como em “Aproximar-se”, ou em debates de congresso, como em “Cidades Densas”. Chama atenção a conversão da política de urbanismo em uma política da administração da (i)mobilidade, algo já discutido em 1997 pelo autor, ao descrever uma “disseminação policêntrica na vida urbana, […] onde o tempo empregado para locomover-se por lugares desconhecidos da cidade reduz o tempo disponível para habitar a própria [residência]” (CANCLINI, 1997, p. 27).
A metadiscussão da autonomia do campo artístico-literário também se faz presente em “Visita Não Guiada”, no encontro entre o protagonista e o escritor fictício, Alan Bellat. O trabalho dos escritores é apresentado como submetido às vicissitudes de um mercado cada vez mais algoritmizado (“as decisões [editoriais] são tomadas com outros subentendidos, que também me custa decifrar” (CANCLINI, 2020, p. 23) ) e fragmentado em seu potencial de entretenimento, aproveitado principalmente pela indústria turística em rotas urbanas. Também como extensão do mercado, no livro, qualquer potencial atividade de pesquisa que vá de encontro ao status quo e aos interesses administrativos e de reprodução do modelo socioeconômico é escanteada ou ameaçada. E dessa inércia, onde “o papel dos intelectuais se esgotou […] [e] universitários agora se formam para trabalhar em corporações” (CANCLINI, 2020, p. 74), que surge a recusa do protagonista, aproximadamente no meio do livro, que transmuta a situação de um escapismo à América Latina em um momento de reação – “não quero me dedicar a aperfeiçoar pautas matemáticas nem pistas para suspeitar. Me atrai a penumbra que envolve minhas decisões” (CANCLINI, 2020, p. 59).
De fato, longe de reafirmar um apologismo da inércia social, é notável que o livro aponta, ainda que brevemente, para saídas. Algumas são vindas justamente do improviso não como reprodutor da ordem, mas como performance coletiva, a exemplo do final de “Dissidências no Supermercado”. Outra possibilidade de saída está descrita justamente nas relações informais e paralegais, como no caso da pirataria (CANCLINI, 2020, p. 40) e as tentativas de autogestão em bairros (CANCLINI, 2020, p. 83). Mas de todas as passagens, a mais curiosa surge ao final de “Cidades Densas”, onde retomando a descrição de países sem futuro na América Latina, o protagonista verifica no “espaço lixo” da Cidade do México as pichações simbolicamente assinadas por “Sures” (plural de Sul) e papéis com reivindicações políticas, questionadas pelo personagem que se pergunta se seriam as “Ruínas com futuro?”. Ruptura que, ao final do livro, não se concretiza, encerrando a narrativa no desenlace entre Elena e o protagonista por meio das mensagens feitas pelas mesmas redes de e-mails e sociotécnicas na qual toda a história está enredada.
“Pistas Falsas” é uma forma ficcionalizada de transmitir o pensamento de Canclini em um universo distópico surgido a partir das atuais tendências geopolíticas. Se, enquanto enredo, o livro é relativamente curto, e traz pouco de saídas para a distopia ou de soluções para a miríade de conflitos globalizantes em seu desenvolvimento, é de todo modo bastante recomendado quanto à proposição de discussões a respeito dos efeitos do futuro das relações e tensões sociais, sobretudo no nosso continente. Importante para pensar sobre os efeitos na vida urbana, no campo cultural e na gestão de dados a partir das tendências atuais de socialização para que, de preferência, o mundo de daqui a dez anos seja um pouco diferente do que está descrito em suas 106 páginas.
Referências
CANCLINI, Néstor García. Pistas falsas: uma ficção antropológica. São Paulo: Itaú Cultural: iluminuras, 2020. 106 p. (Os Livros do Observatório). E-Book. ISBN: 978-85-7321-626-4. Disponível em: https://www.amazon.com.br/Pistas-Falsas-uma-fic%C3%A7%C3%A3oantropol%C3%B3gica-ebook/dp/B08HNJ1MKY. Acesso em: 26 fev. 2021.
CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997. 268 p. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/613573/mod_resource/content/1/CANCLINI_1997 _Consumidores_e_Cidadaos.pdf. Acesso em: 05 fev. 2021.
CANCLINI, Néstor García. Ciudadanos reemplazados por algoritmos. Alemanha: Editora do Centro Maria Sibylla Merian de Estudios Latinoamericanos Avanzados en Humanidades y Ciencias Sociales, 2019. 177 p. Disponível em: http://www.calas.lat/sites/default/files/garcia_canclini.ciudadanos_reemplazados_por_algoritmos.pdf. Acesso em: 05 fev. 2021.
HILÁRIO, Leomir Cardoso. Teoria crítica e literatura: a distopia como ferramenta de análise radical da modernidade. Florianópolis: Anuário de Literatura, [S. l.], v. 18, n. 2, p. 201-215, 2013.
KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre história. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014.
Resenhistas
Giovanni de Sousa Vellozo – Mestrando em Música na Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. Bolsista CAPES/DS. E-mail: giovannivellozo1999@gmail.com orcid.org/0000-0002-0729-1854
Márcia Ramos de Oliveira – Doutora em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Professora dos programas de Pós-Graduação em História e de Pós-Graduação em Música da Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. E-mail: marciaroliveira50@gmail.com orcid.org/0000-0003-3800-8561
Referências desta Resenha
CANCLINI, Néstor García. Pistas falsas: uma ficção antropológica. São Paulo: Itaú Cultural; iluminuras, 2020. 106 p. (Os Livros do Observatório). E-Book. ISBN: 978-85-7321-626-4. Disponível em: https://www.amazon.com.br/Pistas-Falsas-uma-fic%C3%A7%C3%A3o-antropol%C3%B3gicaebook/dp/B08HNJ1MKY Acesso em: 26 fev. 2021. Resenha de: VELLOZO, Giovanni de Sousa; OLIVEIRA, Márcia Ramos de. PerCursos. Florianópolis, v. 22, n. 50, p. 352 – 357, set./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]