O que é o diálogo, na compreensão de nove dos mais importantes filósofos modernos europeus? Quais são as implicações dessa compreensão do diálogo para o campo da Educação? É desse duplo questionamento que Alexandre Anselmo Guilherme e W. John Morgan partem para, ao longo de Philosophy, Dialogue, and Education, discutir as ideias de Martin Buber, Mikhail Bakhtin, Lev Vygotsky, Hannah Arendt, Emmanuel Levinas, Maurice Merleau-Ponty, Simone Weil, Michael Oakeshott e Jürgen Habermas.
A intersecção entre o diálogo e o campo educacional se faz presente na trajetória dos autores, ambos expoentes da Filosofia da Educação. W. John Morgan é professor emérito da School of Education [Faculdade de Educação] da University of Nottingham, onde presidiu a Cátedra UNESCO de Economia Política da Educação. Ele também é professor honorário da School of Social Sciences [Faculdade de Ciência Sociais] e do Wales Institute of Social and Economic Research, Data, and Methods [Instituto Wales de Pesquisa, Dados e Métodos Sociais e Econômicos] na Cardiff University, e bolsista emérito do Leverhulme Trust, realizando estudos sobre economia política comparativa da educação (especialmente Rússia e China), sociedade civil e antropologia do conhecimento, bem como educação para a paz. Alexandre Anselmo Guilherme é professor adjunto da Escola de Humanidades, Departamento de Educação, e coordenador do Grupo de Pesquisa Educação e Violência – GruPEV da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil, atuando principalmente nos temas educação e violência, educação e diálogo, imigrantes e refugiados, e Psicologia da Educação.
Guilherme e Morgan indicam a relevância dos questionamentos que embasam Philosophy, Dialogue, and Education: o diálogo é comumente entendido como conversação, intercâmbio de perguntas e respostas entre dois ou mais sujeitos, e, simultaneamente, tem sido objeto privilegiado nas pesquisas em Filosofia da Educação. Todavia, a maioria das investigações nessa área costuma concentrar-se em apenas verificar a ocorrência de intercâmbio comunicativo, resultando em “modos simplistas e reducionistas de compreender o diálogo, os quais não consideram as relações envolvidas no diálogo” (GUILHERME; MORGAN, 2018, p.3)1. Em oposição ao reducionismo rejeitado pelos autores, é destacada a “gama de complexidades, dinâmicas e efeitos resultantes e causados pelo diálogo, que a simples percepção de um processo de perguntas e respostas não captura com êxito” (GUILHERME; MORGAN, 2018, p.4)2.
A escolha dos filósofos abordados enfatiza o caráter polissêmico, multifacetado e complexo do diálogo. Philosophy, Dialogue, and Education reflete sobre as complexidades inerentes ao diálogo, situando as perspectivas sociopolíticas dos pensadores na tradição europeia da filosofia dialógica. Cada filósofo é tratado num capítulo específico, cujo título sintetiza o conceito de diálogo desenvolvido. Após uma breve apresentação, seguida dos principais eventos da vida e carreira, o leitor é conduzido a um panorama consistente e detalhado sobre como o diálogo é conceituado e relacionado à educação.
No primeiro capítulo, Martin Buber: dialogue as the inclusion of the other [Martin Buber: diálogo como a inclusão do outro], o diálogo é referido como uma relação simétrica, inclusiva do outro, despida de preconceitos e expectativas, na qual simplesmente se aceita o outro como ele é. A relação dialógica assume a forma ‘Eu-Tu’ e está, assim, em contraste com as relações ‘Eu-Isso’, baseadas na objetificação do outro e na ausência de diálogo. ‘Eu-Tu’ e ‘Eu-Isso’ são as ‘palavras básicas’ indicativas da qualidade da experiência contida na relação que elas descrevem. À leitura filosófica da obra de Buber (cf. Buber, 2007 e 2001, entre outros) é acrescida uma apreciação teológica, fundada em suas raízes judaicas hassídicas. Essa apreciação ilustra a atenção às conexões entre o pensamento, as experiências, o pertencimento e a subjetividade dos filósofos observados, elementares em Philosophy, Dialogue, and Education. Em Buber, o hassidismo é o mote para ressaltar a convergência de todas as relações genuínas para o eterno, a partir da qual os seres humanos se relacionam com Deus. No campo da Filosofia da Educação, a teoria de Buber é enfocada para defender a importância das relações vivas, horizontais e inclusivas entre professores e alunos, fundadas em diálogo genuíno, de forma a impactar positivamente a motivação e a capacidade de colaboração.
A interpretação de Guilherme e Morgan sobre as ideias de Buber, no Capítulo Um, articula-se ao Capítulo Cinco, Emmanuel Levinas – dialogue as an ethical demand of the other [Emmanuel Levinas: diálogo como uma exigência ética do outro] Para Levinas (cf. Levinas, 1988a; 1988b; 2005, entre outros), em contraposição a Buber, a noção ética de diálogo compreende uma relação assimétrica e preconcebida, estabelecida para satisfazer as demandas do outro. O encontro com o outro, nominado por Levinas como “rosto”, implica uma exigência ética, instando o sujeito, de cima para baixo, a responder ao outro. Todavia, essa assimetria não deve ser depreendida como uma hierarquia das relações humanas, uma vez que é recíproca: o sujeito é instado a responder ao mesmo tempo em que demanda uma resposta ética do outro. A assimetria bilateral do encontro com o “rosto” caracteriza-se, ainda, pela presença de uma “terceira parte”, na medida em que toda a humanidade encara o sujeito através dos olhos do outro. Assim, enquanto para Buber o diálogo se dá desde o reconhecimento do outro como um par, por conta da igualdade com o sujeito, para Levinas, o diálogo existe porque o sujeito reconhece a alteridade absoluta do outro. A influência de Levinas para a Educação também se ancora na alteridade, no reconhecimento ético do encontro com um outro que é diferente do sujeito, causando-lhe inquietude, questionamento e inovação.
O outro também é central no Capítulo Seis, Maurice Merleau-Ponty – dialogue as being present to the other [Maurice Merleau-Ponty – diálogo como estar presente para o outro]. O capítulo discute a compreensão existencialista e fenomenológica de Merleau-Ponty (cf. Merleau-Ponty, 1996, 2006, entre outros), para quem o diálogo configura um ‘estar presente’ para o outro. Ainda que guarde algumas afinidades com o pensamento de Buber e de Levinas, Merleau-Ponty apoia-se em premissas distintas. O diálogo necessita do encontro com um outro corporificado, presente numa relação em que o sujeito também está presente. No diálogo, as demandas e intenções desse outro tornam-se compreensíveis para o sujeito, como se este o “habitasse”. Por essa perspectiva, subjetividade e objetividade se encontram no corpo. Também por meio dessa “teoria da incorporação” o fenômeno do aprendizado é explicado como um hábito adquirido pelo corpo, e a aquisição de um hábito corresponde à apreensão de um significado. Trata-se de um processo que envolve os movimentos espontâneos e intencionais em interconexão com as experiências que solidificam os hábitos.
No segundo e no terceiro capítulo, Guilherme e Morgan tratam de dois pensadores russos influenciados pelo marxismo. Mikhail Bakhtin é referido ao longo do Capítulo Dois, Mikhail Bakhtin – the dialogic imagination [Mikhail Bakhtin – a imaginação dialógica]. Os autores aludem à noção de “imaginação dialógica”3 para desvendar uma filosofia na qual se notam inspirações em Kant, marcada pela insistência na relação, necessária e reciprocamente enriquecedora, entre o pensamento e a ação, e em Nietzsche, visível no conceito de discurso que espelha a ideia de diálogo. O capítulo leva em conta as ambiguidades percebidas em Bakhtin, especialmente sobre a arquitetura do mundo real, a estética como ação ou processo, a ética da política e, finalmente, a ética da religião. Essas ambiguidades suscitam uma reflexão crítica, na qual o filósofo do ato (cf. Bakhtin, 2010), da dialogia (cf. Volóchinov, 2017; Bakhtin, 2008; 2016, entre outros) e do plurilinguismo, vindica “o diálogo e a participação polifônica de vozes diferentes no intercâmbio de ideias por meio da linguagem e da literatura” (GUILHERME; MORGAN, 2018, p. 24)4 ao mesmo tempo em que propõe Bakhtin como um pensador ético. A “imaginação dialógica” de Bakhtin sublinha que a linguagem só adquire significado no diálogo, obrigatoriamente no contexto social e cultural do qual faz parte. O entendimento do self é construído nesse diapasão, num diálogo conformado pelas mútuas e contínuas interpretações do outro. Essa perspectiva contribui grandemente para a Filosofia e para a Educação, uma vez que Bakhtin incentiva os sujeitos ao protagonismo na busca pelo conhecimento, não aceitando as coisas como dadas.
Isso pode ser cotejado à compreensão de Lev Vygotsky, objeto do Capítulo Três, Lev S. Vygotsky – dialogue as mediation and inner speech [Lev Vygotsky – diálogo como mediação e discurso interior]. Como mediação (cf. Vygostsky, 1999 1998, entre outros), o diálogo diz respeito à relação entre indivíduo e sociedade, intermediada por objetos, sinais e linguagem, ferramentas proporcionadas pela cultura. Também diz respeito à interação de cunho mais psicológico do indivíduo consigo mesmo, crucial para o desenvolvimento cognitivo humano, que Guilherme e Morgan afirmam ser “uma alternativa poderosa tanto ao behaviorismo pavloviano como para a ênfase piagetiana à maturação biológica cognitiva” (GUILHERME; MORGAN, 2018, p.39)5. O impacto do pensamento de Vygotsky para a Educação é captado desde as interpretações que privilegiam a análise social, até as que buscam entender o surgimento da consciência, relegando as relações sociais ao pano de fundo.
O prisma político do diálogo é examinado no Capítulo Quatro, Hannah Arendt – dialogue as a public space [Hannah Arendt – diálogo como espaço público]. Guilherme e Morgan acentuam a defesa de Arendt da expressão autêntica da democracia, possível quando os cidadãos se reúnem num espaço público de deliberação e decisão acerca dos interesses coletivos (cf. Arendt, 2007; 2012, entre outros). A separação entre as dimensões do “labor”, do “trabalho” e da “ação” precede a exigência do espaço público, contexto no qual as pessoas defrontam-se umas com as outras, na qualidade de membros de uma comunidade, e desvelam seus pontos de vista em discursos e ações, concordâncias e discordâncias. Essa relação com os outros é pré-condicionada por outro tipo de diálogo, fundante da capacidade de pensar, interno, através do qual o indivíduo confronta a si próprio. Nesse marco, a educação objetiva propiciar um ambiente seguro às crianças, preparando-as para participarem da esfera pública. Entretanto, Guilherme e Morgan cogitam que escolas e universidades não venham conectando o público ao privado, tal qual divisado por Arendt. Isso é tributado a obstáculos enfrentados, como os processos de mercantilização, que transformam os cidadãos em consumidores, e o espaço público em mercado.
Igualmente, no Capítulo Sete, Simone Weil – dialogue as an instrument of power [Simone Weil – diálogo como instrumento de poder], o espaço público tem notada relevância. O diálogo é pensado por Weil em relações de poder dimensionadas, no espaço público, pela linguagem e pelas palavras (cf. Weil, 1991; 2001a; 2001b, entre outros). O dinamismo da realidade é a fonte dos conflitos potenciais, porquanto os sujeitos leem o mundo utilizando uma linguagem imperfeita, não obstante expressiva de atitudes e práticas. O diálogo configura uma relação de poder que se presta à crueldade, mas também à justiça e à bondade. Esse instrumento é crucial para a Educação, assim como a atenção (a vontade de receber) e o silêncio (a reflexão sem recebimentos do mundo externo), pois o processo de conhecimento só pode ser atingido num percurso crítico que envolve desejo de saber, comprometimento, esforço e amadurecimento. Assim, é imperativo que a Educação propicie ao indivíduo o discernimento das ideias, o poder da escrita e do discurso, e seu uso não para a conquista e aniquilação do outro, mas para a justiça, particularmente para a justiça social.
O posicionamento de Weil pode ser comparado ao de Michael Oaekshott, sobre o qual Guilherme e Morgan discorrem no Capítulo Oito, Michael Oakeshott – dialogue as conversation [Michael Oakeshott – diálogo como conversação]. O diálogo é, aqui, visto como uma forma de conversa, imprescindível para o desenvolvimento da civilização (cf. Oakeshott, 1989, entre outros). Os valores civilizados estão radicados na capacidade das pessoas, pela conversa, adentrarem o diálogo, o que é fomentado por uma educação liberal. É indispensável que a experiência humana seja vivida, compreendida e refletida na forma de uma conversa do sujeito com seus pares, seres humanos. As vozes que tomam parte dessa conversa são as diferentes formas da experiência, de ver o mundo, históricas e práticas. Oakeshott considera a conversa como um diálogo aberto e polifônico, um intercâmbio entre as diversas funções e condições em que a humanidade se desenvolve – e aí reside sua importância para a Educação. O indivíduo aprende a ser humano enquanto participa dessa conversa, assimilando os múltiplos significados e propósitos que também a integram.
O nono e último capítulo, Jürgen Habermas – dialogue as communicative rationality [Jürgen Habermas – diálogo como racionalidade comunicativa] dedica-se ao conceito de diálogo como racionalidade comunicativa, depreendido da extensa obra do filósofo alemão (cf. Habermas, 1984; 1987, entre outros). Guilherme e Morgan sublinham a crítica habermasiana ao cientificismo e às decorrentes abordagens positivistas, burocráticas e autoritárias predominantes nos estudos sobre as questões da esfera pública, o que resulta na “marginalização do diálogo público e do debate” (GUILHERME; MORGAN, 2018, p.141)6. O déficit democrático consequente é enfrentado, segundo Habermas, por duas formas distintas e interdependentes de ação: (i) instrumental, mensurada quantitativamente e percebida no trabalho e na construção material; (ii) comunicativa, aferida qualitativamente e percebida por meio da interação e do diálogo sociais. A racionalidade comunicativa é a chave para a ação, e o ato da comunicação, em si, já inicia um diálogo entre pares, parceiros abertos às possibilidades de acordo e ação social. A contribuição de Habermas para a Educação é defendida no que Guilherme e Morgan detectam como alinhamento à Pedagogia Crítica, segundo a qual o despertar de consciência dos sujeitos, dialeticamente, leva à ação social democrática e emancipatória. A responsabilidade dos educadores é criar condições para que essa ação ocorra, circunstanciando o ensino e o aprendizado como atos políticos e, no mesmo sentido, a não neutralidade do conhecimento.
Philosophy, Dialogue, and Education é uma obra densa, na qual os autores promovem uma reflexão teoricamente consistente e sofisticada, sem, contudo, sacrificar a leitura e a inteligibilidade. As concepções de diálogo são discutidas de forma articulada entre os pensadores, concatenadas aos aportes de outros teóricos e de comentadores, o que fornece um horizonte interpretativo rico e fundamentado.
Nesse contexto complexo, Guilherme e Morgan trabalham o diálogo permeado por relações de poder, pela história e pela cultura, por valores normativos e pela necessidade de um espaço comum. Os potenciais e os dilemas do diálogo, especialmente na Educação, são temas de renovado interesse, ainda maior quando os recentes eventos e as dinâmicas sociais colocam em xeque a capacidade de dialogar. Como apontam (2018, p.4), “o diálogo não é simples de obter; pelo contrário, depende da disposição e da situação e é frequentemente difícil de iniciar, ainda mais de sustentar”7. Cultivar essa disposição é, portanto, o desafio ético do tempo presente, ao qual a Filosofia da Educação não se furta.
1Traduzido livremente do original: “simplistic and reductionist ways of understanding dialogue which do not consider the relations involved in the dialogue”.
2Traduzido livremente do original: “range of complexities, dynamics, and effects implied and caused by dialogue that the simple notice of a process of questioning and answering does not capture successfully”.
3A expressão é claramente uma referência à coletânea de ensaios de Mikhail Bakhtin publicada em inglês com o título The Dialogic Imagination (BAKHTIN, 1981). Dela constam os ensaios (i) Epic and Novel: toward a Methodology for the Study of the Novel, traduzida em português como Epos e o romance (sobre a metodologia do estudo do romance) (1993, p.397-428) ou O romance como gênero literário (2019, p.65-111); (ii) From the Prehistory of Novelistic Discourse – em português, Da pré-história do discurso romanesco (1993, p.363-396) ou Sobre a pré-história do discurso romanesco (2019, p.11-63); (iii) Forms of Time and of the Chronotope in the Novel: Notes toward a Historical Poetics – em português Formas de tempo e de cronotopo no romance (Ensaios de poética histórica) (1993, p.211-362) ou As formas do tempo e do cronotopo no romance (2018, p.11-237); (iv) Discourse in the Novel – O discurso no romance (1993, p.71-210; 2015, p.19-242).
4Traduzido livremente do original: “dialogue and the polyphonic participation of different voices in the exchange of ideas through language and literature”.
5Traduzido livremente do original “provided a powerful alternative to both Pavlovian behaviourism and the Piagetian focus on cognitive biological maturation”.
6Traduzido livremente do original “marginalization of public dialogue and debate”.
7Traduzido livremente do original “dialogue is not simple to achieve; rather, it is dependent on disposition and on situation and is often difficult to initiate, let alone sustain”.
Referências
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