Categories: Todas as categorias

Phenomenology of Illness – CAREL (FU)

CAREL, Havi. Phenomenology of Illness. Oxford: Oxford University Press, 2016. Resenha de: LOPES, Marcelo Vieira.  Fenomenologia da enfermidade. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.20, n.1, p.111-112, jan./abr., 2019.

A enfermidade certamente desempenha um papel substancial na existência humana. É-nos difícil imaginar uma vida totalmente desprovida de enfermidade e de suas consequências. De forma surpreendente, a filosofia contemporânea desconsiderou a importância de uma análise rigorosa destas experiências. Existiria algo assim como um método capaz de auxiliar na compreensão do significado da enfermidade? Esta é a tarefa proposta por Havi Carel neste excelente Phenomenology of Illness, de 2016.

Havi Carel é professora na Universidade de Bristol e no seu currículo constam títulos como Illness (2008, 2013) e Life and Death in Freud and Heidegger (2006). Para além da experiência profissional na área, Carel sofre de uma doença pulmonar rara que, veremos, não é uma informação irrelevante no contexto e método adotado nesta obra. Estão presentes aí os elementos metodológicos para desenvolver uma fenomenologia da enfermidade, divididos em nove capítulos.

O capítulo 1 fornece a justificativa do método fenomenológico como ferramenta de análise da enfermidade. A enfermidade (illness) será entendida como a experiência em primeira pessoa do processo de adoecimento e traz consigo uma transformação da experiência corporificada (p. 15). Tal fenômeno se apresenta através das rupturas nos hábitos, expectativas e capacidades de uma pessoa desestabilizada em sua corporificação normal.

O capítulo 2 fornece a análise de cinco temas inter-relacionados a partir das características fenomenológicas do corpo. O primeiro investiga uma série de perdas que estruturam a experiência da enfermidade (p. 41). A distinção fenomenológica entre Körper e Leib fornece o aspecto corporal correlato à distinção entre doença e enfermidade. O terceiro passo analisa os níveis objetivo, subjetivo e intersubjetivo da experiência corporal, a partir da obra de Sartre. O quarto passo envolve a análise da ruptura da transparência do corpo em função da dor e desconforto na enfermidade. Por último, Carel analisa a enfermidade a partir da analogia com o utensílio avariado, desde a perspectiva heideggeriana. Essa analogia mostra-se falha, uma vez que, diferentemente do utensílio quebrado, o corpo enfermo não pode ser substituído.

O capítulo 3 identifica as perdas implicadas no declínio corporal decorrente da enfermidade. São apontadas as limitações, dificuldades e a mudança de perspectiva do enfermo. A noção heideggeriana de “poder-ser” (Seinkönnen) desempenha um papel importante. Se a experiência da enfermidade fornece situações de dependência, insuficiência e incapacitação, segue-se a necessidade de uma reconsideração de um “poder-ser” indiscriminado (p. 76). Carel sugere uma ampliação dessa noção de modo a incluir capacidades radicalmente diferentes, bem como a consideração de um não-poder-ser, isto é, o reconhecimento de uma incapacidade intrínseca à existência humana.

O capítulo 4 examina uma experiência nuclear da enfermidade, a chamada dúvida corporal, que indica o rompimento da certeza tácita do funcionamento normal do corpo (p. 86). A dúvida corporal implica uma modificação radical da experiência, ao pôr em questão capacidades básicas inerentes ao funcionamento do próprio corpo. Internamente a est a ruptura surgem modificações e perdas de continuidade, transparência e confiança no próprio corpo.

O capítulo 5 é, certamente, o mais impressionante de todo o livro. Mesmo se tratando de uma obra técnica, é difícil não se comover com a descrição pessoal da falta de ar (breathlessness). Carel sofre de lymphangioleiomyomatosis, uma limitação pulmonar rara, que lhe permite extrair os elementos para uma análise estrita em primeira pessoa. As descrições do sentimento de sufocamento, incapacidade de respirar e o medo de um colapso dimensionam o significado desta experiência. Ao mesmo tempo, são elencadas as consequências experienciais da enfermidade: a retração de mundo acompanhada da perda de liberdade e capacidade de escolha e controle. É possível encontrar uma mudança estrutural na experiência de um “eu posso” para um “eu não posso mais” (p. 111). As implicações dessa mudança modal na estrutura da existência implicam uma série de reações psicológicas como desespero, ansiedade e desesperança. A falta de ar, diferentemente de um mero sintoma, fornece assim o horizonte constante que molda por completo a experiência do paciente com problemas respiratórios (p. 128).

O capítulo 6 investiga a possibilidade do bem-estar na condição enferma. Existem, afinal, aspectos positivos desta condição? Não obstante o mal-estar corporal, a enfermidade fornece experiências que podem, porventura, promover edificação e crescimento pessoal. Uma das condições para o bem-estar consiste em uma capacidade de resiliência vinculada ao momento presente (p. 140). Por outro lado, a condição enferma implica uma preocupação constante com o futuro daquele que padece, constituindo um fator estressor, na medida em que produz angústia sobre o tratamento, a progressão da doença e, em última instância, a morte.

A morte é o tema do capítulo 7. Se a enfermidade é entendida como um tipo de incapacidade, a morte, então, é o fechamento das possibilidades do enfermo. Carel aborda o conceito de morte em Heidegger com vistas a uma abordagem relacional. É necessário entendê-la não mais como uma experiência solitária, mas que pode vir a ser compartilhada, visando uma melhoria na compreensão da experiência da enfermidade e da própria mortalidade constitutiva da experiência humana.

O capítulo 8 trata de uma questão relativa à avaliação dos relatos de enfermidade em primeira pessoa. Relatos sobre a própria experiência tendem a ser mal compreendidos, ignorados ou rejeitados em contextos de tratamento. Esse fenômeno constitui o que Miranda Fricker chamou de “injustiça epistêmica” e é referente à desconsideração do falante em sua capacidade de conhecimento sobre seu próprio est ado experiencial. Como resposta ao problema, Carel apresenta a chamada caixa de ferramentas fenomenológica, que consiste em: 1. Suspender a crença na realidade objetiva da doença, desvelando como a enfermidade aparece para a pessoa enferma; 2. Tematizar a enfermidade tornando explícitos alguns de seus aspectos particulares; 3. Examinar como est es aspectos modificam o ser no mundo da pessoa enferma (p. 197). O objetivo é promover a melhoria na capacidade de expressão de experiências pessoais únicas, em vez de uma adaptação forçada a expectativas médicas e culturais.

No capítulo final a atenção volta-se para o outro polo da relação entre filosofia e enfermidade. Como a enfermidade pode vir a iluminar a prática filosófica? Na medida em que promove uma reflexão sobre o significado de uma vida digna, o componente filosófico da enfermidade est aria, ao menos em princípio, assegurado. Seu apelo filosófico, porém, é direto e não-teórico. Em outras palavras, a enfermidade pode ser integral à prática filosófica, seja influenciando seus métodos, seja modificando a própria concepção de filosofia e/ou aumentando a urgência de determinados tópicos. Neste último e excepcional capítulo, a enfermidade surge como uma espécie de método filosófico compulsório. Método est e que é capaz de iluminar a normalidade através de sua contrapartida patológica (p. 226). O argumento final provém da comparação da filosofia atual com as práticas antigas do filosofar, dotadas de um apelo transformativo relativo ao sofrimento intrínseco à vida humana. É necessário, segundo Carel, que retomemos em parte essa tradição para uma melhor compreensão do caráter transformador intrínseco à enfermidade.

Trata-se de uma obra extremamente frutífera em termos de análise e que preenche uma lacuna considerável nos estudos sobre enfermidade, seja em seu aspecto teórico ou prático. A obra é altamente recomendável para aqueles que buscam uma compreensão da enfermidade em seus aspectos experienciais. Da mesma forma, aqueles interessados no aspecto transformativo e existencial que a filosofia pode ainda oferecer certamente encontrarão neste Phenomenology of Illness uma grande obra.

Marcelo Vieira Lopes – Universidade Federal de Santa Maria. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Santa Maria, RS, Brasil. E-mail: marcelovieiralopes16@gmail.com

Acessar publicação original4

[DR]

 

Itamar Freitas

Recent Posts

História, Natureza e Espaço. Rio de Janeiro, v.9, n.1, 2020.

Décima sexta edição. Esta edição foi publicada em 2023 visando o ajuste de publicações em…

2 meses ago

História, Natureza e Espaço. Rio de Janeiro, v.9, n.2, 2020.

Décima sétima edição. Esta edição foi publicada em 2023 visando o ajuste de publicações em…

2 meses ago

História, Natureza e Espaço. Rio de Janeiro, v.12, n.03, 2023.

Vigésima segunda edição. N.03. 2023 Edição 2023.3 Publicado: 2023-12-19 Artigos Científicos Notas sobre o curso de…

2 meses ago

História da Historiografia. Ouro Preto, v.16, n. 42, 2023.

Publicado: 2024-06-19 Artigo original A rota dos nórdicos à USPnotas sobre O comércio varegue e o…

2 meses ago

Sínteses e identidades da UFS

Quem conta a história da UFS, de certa forma, recria a instituição. Seus professores e…

2 meses ago

História & Ensino. Londrina, v.29, n.1, 2023.

Publicado: 2023-06-30 Edição completa Edição Completa PDF Expediente Expediente 000-006 PDF Editorial História & Ensino 007-009…

2 meses ago

This website uses cookies.