DIDI-HUBERMAN, Georges. Peuples exposés, peuples figurants. Paris: Les Éditions de Minuit, 2012. Resenha de: EDUARDO, Jorge. Alea, Rio de Janeiro, v.22 n.1, jan./apr., 2020.
Um dos percursos possíveis para entendermos a presença de Aby Warburg nas operações críticas de Georges Didi-Huberman é seu estudo intitulado L’image survivante. Histoire de l’art et temps de fantômes selon Aby Warburg,1 de 2002. Podemos marcar a importância desse estudo para a exposição Atlas, ¿cómo llevar el mundo a cuestas?, montada inicialmente no Museu Reina Sofía, em Madrid, entre 26 de novembro de 2010 e 28 de março de 2011. Nessa exposição, o Atlas Mnemosyne, de Warburg, é um lugar, mais precisamente uma “mesa de orientação”,*1 onde a relação topográfica entre “tableau” (quadro) e “table” (mesa) marca a diferença entre aquilo que já está previamente fixo, designado pelo quadro, e uma possibilidade heurística de um trabalho em via de fazer-se, apontada pela mesa.
Mesmo sendo um topos importante para o pensamento de Georges Didi-Huberman ao longo de outros livros, a orientação de Warburg ficou ainda mais precisa na exposição Histoires de fantômes pour grandes personnes, exibida no Le Fresnoy entre 5 de outubro e 30 de dezembro de 2012. Nessa exposição, Georges Didi-Huberman faz um recorte do Atlas Mnemosyne, especificamente a prancha 42. O movimento do filósofo e historiador da arte francês atinge uma precisão, seguramente. Dessa precisão, observam-se ainda dois aspectos em ambas as exposições: como expor as fontes, que é também como pôr a história em cena, e ainda como apresentar o mecanismo museológico da montagem. Isso fica mais evidente no ensaio fotográfico de Arno Gisinger intitulado Atlas, suite e disposto na instalação Mnémosyne 42, concebida por Didi-Huberman, que faz parte de Histoires de fantômes pour grandes personnes. Sobre os dois primeiros aspectos, o texto de apresentação introduz uma discussão em torno das “fontes” e da “história”:
Mnémosyne 42 é uma prancha de atlas desmesurada (mais ou menos mil metros quadrados) e animada. Ela está “posta” sobre o chão da grande proa do Fresnoy e pode ser observada do corredor como o mar pode ser observado da popa de um navio. Seu tema é idêntico, mas os exemplos escolhidos foram o caminho que vai dos exemplos clássicos caros a Warburg até o cinema moderno (Eisenstein ou Dreyer, Pasolini ou Glauber Rocha) e contemporâneo (Paradjanov ou Jean-Luc Godard, Harun Farocki ou Zhao Liang), incluindo também alguns documentos tirados da atualidade política mais recente.*2
A medida é a desmesura. Nesses termos, ao abordar a escala do espaço expositivo, Didi-Huberman exibe um tema que lhe é caro e que se oferece como um fio condutor entre as imagens por ele expostas em Mnénosyne 42: a questão do excesso, do pathos, do sofrimento. Mas cada um desses momentos traz consigo suas nuances, que serão discutidas ao longo da leitura de Peuples exposés, peuples figurants, quarto volume da série intitulada O olho da história (L’œil de l’histoire). Essa série a qual pertence Peuples exposés, peuples figurants também compreende os livros Quand les images prennent position (2009), Remontages du temps subi (2010) e Atlas ou le gai savoir inquiet (2011).
Em Peuples exposés, peuples figurants, de 2012, Georges Didi-Huberman toma como démarche o valor de exposição dos povos. Uma vez colocada a questão da utilização de palavras isoladas como “homem” e “povo”, surge uma reflexão com a referência a Hannah Arendt: trata-se de os homens, os povos. Além de uma história já manifestada nas mudanças econômicas, nas exigências sociais e nas maquinações políticas, existe uma história secreta nas próprias disposições interiores de um povo, como no caso do povo alemão evocado por Siegfried Kracauer, em De Caligari a Hitler.*3
Existe, no entanto, uma dinâmica que envolve o desaparecimento dos povos e sua manifestação sob as formas de vida expostas no cinema, seja por Eisenstein, seja por Charles Chaplin, historicamente discutidas como apostas estéticas distintas. Na leitura de Georges Didi-Huberman, os povos ganham as telas não apenas para ser um motivo nos filmes de ambos os cineastas citados, mas porque eles escolheram a autoexposição como o gesto revolucionário das manifestações ao longo do século XIX. (Ibidem: 30-31.) Isso nos leva a dizer que esse foi um lugar “conquistado”. Dessas manifestações, o autor escolhe um ponto crucial: trata-se das fotografias de Philippe Bazin, cujo conjunto de retratos possui um movimento elíptico da humanidade entre velhos e recém-nascidos. Se todo um aspecto do ciclo vital e biológico fica exposto, o fotógrafo, que é médico de formação e cuja prática profissional o conduziu a trabalhar o paradoxo da distância e da proximidade na fotografia, chama esse movimento de “animalidade”. Georges Didi-Huberman, ao tomar os retratos feitos por Bazin, toma essa palavra em meio ao conjunto de imagens para afirmar que existe um gesto que permanece em potência: “o que Bazin chama de ‘animalidade’ talvez seja esta humanidade concentrada na espécie do minimum vital no qual cada intensidade se bate contra a amorfia, cada gesto com sua própria impossibilidade de realização”. (Ibidem: 46.) Esse movimento acontece de forma sutil, quer dizer, é dos povos expostos que o filósofo e historiador da arte passa para os rostos, isto é, para os retratos feitos por Bazin, que ele chama ainda de “uma comunidade de rostos”.*4
Em uma espécie de arqueologia do popular, Peuples exposés, peuples figurants pode ser lido como uma investigação sobre o que é a espécie humana sob suas manifestações de comunidade, de pobreza contraposta mesmo às dimensões cívicas de um retrato de grupo ou do culto à personalidade do retrato, na qual é preciso recorrer a poemas, a gravuras que fazem dos povos formas de expressão que são, enfim, uma política de sua própria exposição. Nesse sentido, as mudanças entre diversos retratos de grupos “ameaçadores” exibem um encadeamento que vai da paranoia medieval das bruxas e feiticeiras, passando pelos contaminados pela peste até chegar atualmente a esses crimes escondidos ou anônimos na própria multidão, chamados de “terrorismo”.*5 Se isso de fato acontece com os grupos, acontece também com a exposição dos povos no que também já foi chamado de “arte degenerada”, ante os próprios totalitarismos da raça. Evidentemente, a cultura possui seus equívocos, como já escreveu Georges Bataille. No entanto, isso faz da tarefa de expor os povos algo ainda mais delicado; trata-se, ainda, de uma busca incessante de uma comunidade. Expor os povos é uma busca interminável da comunidade em que a partilha é um dom, isto é, uma dádiva, no sentido dado por Marcel Mauss até que uma partilha dos olhares e das vozes passa por uma alteração notada por Didi-Huberman como uma alteração do sentido e do aspecto que se desencadeia em uma desidentificação. Assim, a partir de Jean-Luc Nancy, Georges Didi-Huberman argumenta que “o dom do outro é, por essa razão, que faz com que a comunidade não se instaure por uma soma de ‘eus’, mas por uma partilha do ‘nós'”.*6
Em Peuples exposés, peuples figurants, existe a exposição de um mecanismo sutil que é como o espaço da imagem, antes predominado pelo culto da personalidade e pelo retrato cívico de grupo, passa a ser tomado pela presença dos povos com as revoluções e, mais precisamente, com a pobreza urbana, como a da Inglaterra do século XVII, nas pinturas e gravuras de Marcellus de Laroon. Mas será, enfim, Goya aquele que melhor expressará essa pobreza. Seus desenhos, gravuras e pinturas estão voltados para uma catalogação de gestos feita pelo pintor: desde o modo como as crianças brincam com os cães, passando pelos enterros, festas de casamento, pelos párias nos hospitais, pelos jogos de cartas, pelos risos até chegar aos fuzilamentos de pobres, enfim, esse “espaço de clamor” também é “sua grande cólera libertária”. (Ibidem: 120.) Em meio a essa passagem, tal estado de “desgraça” visto nas imagens de Goya, por exemplo, pode ser visto como uma “deformação patológica” naturalizada mais tarde, no fim do século XIX, por Jean Martin Charcot e Paul Richer, época inclusive em que a histeria surge como o marco de uma enfermidade, libertando o mundo de toda uma imagerie de possessões e de bruxarias.2
Na primeira metade do século XX, a exposição dos povos teria ainda toda uma topografia cara a Eugène Atget, próxima de uma erotização dos trajetos urbanos, como o faz André Breton com Nadja, (Ibidem: 130.) e com esse efeito o “documentário” se aproxima do “estilo”, que, ao contrário de propostas exclusivamente formais, ambos não se separam. Assim, é nesta lógica que as fotografias dos abatedouros do Parque da Villette feitas por Eli Lotar estão muito próximas não apenas do artigo “Abattoir“, de Georges Bataille, para a revista Documents, em 1929, como também podem ser vistas como a própria encarnação da imagem da carniça evocada nos versos de Charles Baudelaire.
Se Didi-Huberman se valeu de formas de sofrimento ou, para sermos mais coerentes com o vocabulário do filósofo, das “fórmulas de pathos” (Pathosformeln), de Aby Warburg, para a composição de sua prancha desmesurada no Le Fresnoy, em Peuples exposés, peuples figurants, após as fotografias de Bazin, é o trabalho de Pier Paolo Pasolini que ganha relevo. Prosseguindo com sua leitura do cineasta feita em Survivances des lucioles (2009),3 a parte “Poèmes des peuples” (“Poemas dos povos”) retoma a figuração de La sortie des usines Lumière, de 1895, em que desde as origens do cinema os atores estão na própria condição de povo, mais precisamente como os trabalhadores da fábrica onde os próprios patrões, os irmãos Lumière, se encarregam de pô-los em cena. Sobre esse filme, o cineasta alemão Harun Farocki (cuja obra é analisada no segundo volume de L’œil de l’histoire, Remontages du temps subi) desenvolveu um filme-ensaio intitulado Arbeiter verlassen die Fabrik, de 1995, expondo politicamente todo o mecanismo emocional dos trabalhadores ao final de um dia de expediente.
Afinal, o que são os figurantes? E ainda de modo mais conciso: quem são os figurantes? Sobre esse estudo que marca a passagem dos povos em cena à sua simples figuração, isto é, o movimento de fundo, lemos que “o cinema não expõe os povos, ao que parece, senão pelo estatuto ambíguo de ‘figurantes’. Figurantes: palavra banal, palavra para ‘homens sem qualidade’ de uma cena, de uma indústria, de uma gestão do espetáculo dos ‘recursos humanos'”.*7 São eles, os figurantes, que constituem um movimento de fundo para a ênfase nos protagonistas, os heróis que seriam os atores da história. Os figurantes situam-se como uma massa humana informe, em movimento, emprestando seus rostos, seus gestos, enfim, seus corpos. O desafio, ao perguntar quem são os figurantes, é se aproximar daqueles que não são efetivamente os atores, observar seus gestos e ouvir suas palavras. O desafio posto no livro é uma repentina mudança de foco, onde um olhar estrangeiro como o do espectador pode discordar do movimento das lentas da câmera para ganhar autonomia no quadro, na cena, sendo esse um primeiro passo para aproximar-se dos não atores. Sendo assim, as formas sociais de exposição dos povos mudam assim como a estética dessa apresentação: se antes a “documentação” confrontava-se com o “estilo”, é com Pasolini que a exposição dos povos desafia todo o projeto de relegá-los ao pano de fundo.
De fato, a partir da leitura de Peuples exposés, peuples figurants, Pasolini possui um movimento dialético, pois ele expõe os povos ao mesmo tempo em que se expõe aos povos, onde o desejo e o perigo estão misturados, fato que realmente interferiu na sua vida: “expor os povos supõe expor-se à alteridade, quer dizer, uma afronta de si mesmo – enquanto se é poeta ou cineasta – em um ‘gueto’ no qual não se será protegido de modo algum”.*8 Assim, é no viés de uma exposição de si mesmo aos “povos” que se baseia toda a experiência na obra de Pasolini, que pode ser resumida em uma “beleza da resistência”, da sobrevida e da sobrevivência.*9 Pasolini assumia o risco do criador não apenas no plano experimental, mas no fato que ele se incluía na exposição dos povos, sendo ainda um cineasta que resistia dentro de fora da linguagem, afrontando o real, digamos, com um cinema de poesia, valendo-se no nível de catalogação dos gestos de Goya, com clamor e glória libertária. Não à toa ele tenha sintetizado esse risco no título de um artigo que diz que “fazer cinema é escrever sobre um papel que queima”. Isso seria ainda um outro modo de expor o que Gilles Deleuze escreveu em “Imanência, uma vida…”: “minha ferida existia antes de mim” ou próximo ainda do que Maurice Blanchot, a partir de Kafka, fala da “terceira pessoa”, o “ele” que destitui o sujeito.*10 Assim, o ato de expor os povos é também o risco de se expor ao perigo, gesto que está, inclusive, no étimo da palavra “experiência” e que está no limite do que Bataille escreveu em A experiência interior: “é preciso viver a experiência, ela não é facilmente acessível, e mesmo, considerada de fora pela inteligência, seria preciso ver aí uma soma de operações distintas, algumas intelectuais, outras estéticas, outras enfim morais, e todo o problema a retomar”.*11
Essa forma distinta de exposição dos povos encontra uma força de expressão, além de Pasolini, em filmes e obras de Chantal Aakerman, Béla Tarr, Glauber Rocha e ainda Wang Bing, a quem Georges Didi-Huberman dedica o epílogo do livro ao filme L’homme sans nom (O homem sem nome). E, nessa dinâmica entre o aparecer e o desaparecer, a exposição dos povos segue de forma incessante, praticamente dialética: “assim segue a exposição incessante dos povos, entre a ameaça de desaparição e a necessidade vital de aparecer, apesar de tudo”.*12
*1 (DIDI-HUBERMAN, Georges. Atlas, ¿cómo llevar el mundo a cuestas? Madrid: Reina Sofía, 2010: 187. [ Links ])
*2 (Impresso da exposição Histoires de fantômes pour grandes personnes, concebida por Georges Didi-Huberman e Arno Gisinger para o Le Fresnoy – Studio national des arts contemporains – de 5 outubro a 30 de dezembro de 2012 –, Tourcoing, França.)
*3 (DIDI-HUBERMAN, Georges. Peuples exposés, peuples figurants. Paris: Les Éditions de Minuit, 2012: 26. [ Links ])
*4 (Ibidem: 51.)
*5 (Ibidem: 67.)
*6 (Ibidem: 102.)
*7 (Ibidem: 149.)
*8 (Ibidem: 198.)
*9 (Ibidem: 211.)
*10 (Ibidem: 211.)
*11 (BATAILLE, Georges. A experiência interior. Trad. Celso Libânio, Magali Montagné, Antonio Ceschin. São Paulo: Ática, 1992: 16. [ Links ])
*12 (DIDI-HUBERMAN, Georges. Peuples exposés, peuples figurants, op. cit.: 231.
1 Editado recentemente em português, História da arte e tempo de fantasmas segundo Aby Warburg. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.
2 Quanto a esse aspecto, ver Invention de l’hystérie, de Georges Didi-Huberman, reeditado em 2012 pela Macula.
3 A edição brasileira Sobrevivência dos vagalumes (trad. de Vera Casa Nova e Márcia Arbex) foi publicada em 2011 pela Editora da UFMG.
Eduardo Jorge é mestre em Teoria Literária pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e doutorando em Literatura Comparada pela UFMG e pela École Normale Supérieure – ENS.
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