A ampliação de diálogos entre diversas áreas de conhecimento e a diluição de fronteiras epistemológicas têm sido promissoras para assumir crianças e jovens como seres plenos, sujeitos de direitos e de cultura, assim como para a compreensão de base científica que deles se pode fazer. Do ponto de vista epistemológico, teórico-conceitual e de opções metodológicas, a pesquisa com crianças e jovens interroga em diferentes nuances a complexidade inerente à vida humana, com base na escuta de suas vozes, seus modos de ser, de (con)viver e de agir, em sociedades cada vez mais marcadas por aceleradas viragens econômicas, políticas, culturais, digitais.
Entende-se que os desafios são sempre múltiplos. Nesse sentido, há que se superar preconceitos sobre a produção do conhecimento quando a pesquisa se alinha por paradigmas e práticas que legitimam as vozes e reflexões de jovens e crianças na pesquisa e/ou na profissão que é exercida com elas. É nisso que acreditamos, ao admitirmos que os resultados dessas reflexões podem e têm o poder de ecoar nas políticas públicas que se voltam para essas realidades, tão atuais, tomando o ponto de vista educacional como base para as demais: econômicas, políticas, culturais, digitais. Para os problemas humanos, as ciências humanas e sociais têm um papel preponderante na oferta de novas pro(res)postas. Daí, o seu estatuto reivindicar, simultaneamente, preocupações com mudanças estruturais e práticas suscetíveis de promover a ética do bem-estar, do cuidado e da qualidade de vida para o maior número de pessoas. Para tanto, há que teorizar, igualmente, rupturas epistemológicas no que concerne a visões que põem em jogo relações de poder, de saber, de dever e de querer, com sentido.
A Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica (RBPAB), no âmbito de sua linha editorial, comprometida com o avanço do conhecimento e o debate promovido por grupos e redes de pesquisa nacionais e internacionais, lança, neste número, o dossiê Narrativas e pesquisas com crianças e jovens, reunindo artigos que privilegiam pesquisas que têm como centralidade a voz de crianças, de jovens e de quem os acompanha: professores, familiares, cuidadores em situações que vão necessariamente além do ambiente escolar.
Considerando a abertura da temática, os artigos aqui apresentados decorrem de pesquisas de reconhecida qualidade, realizadas por investigadores de universidades brasileiras, de norte ao sul do país, do litoral e do sertão, de universidades da França, Canadá, Portugal e da Fundação europeia Aprender para o bem-estar. Em seus estudos, os diversos autores abordam questões da ética em pesquisa, do bem-estar, de saúde, do cuidado, de vulnerabilidade e de justiça social, interrogam a medicalização, a inclusão/exclusão e, nos seus textos, discorrem sobre múltiplas aprendizagens tanto no campo da pesquisa, quanto naquele da formação humana, profissional e especializada, adensando o conhecimento científico acerca dos modos como o ser humano – criança, jovens e adultos – reflete sobre a experiência vivida e como interpreta o mundo na experiência narrada.
Nesse sentido, a legitimidade de suas vozes e de suas narrativas como fonte de investigação evidencia os desafios que se impõem para se compreenderem e tornarem pública suas visões de mundo e seus contributos para o conhecimento científico. A ordem dos artigos obedeceu a alguns critérios que consideramos importantes para reagrupar as diversas contribuições, sem, no entanto, desejar guiar a leitura.
O dossiê se inicia com o artigo Quando as crianças falam de sua escola e (nos)ensinam de autoria de Martine Lani-Bayle. A autora é pioneira na pesquisa com narrativas de crianças. Em seu texto, apresenta uma breve retrospectiva de seu percurso, iniciado nos anos 1970, como psicóloga clínica junto a crianças em condição de vulnerabilidade múltipla, com quem desenvolveu desde então procedimentos de pesquisa-formação e que a autora apresenta em seu livro A Criança e sua história (2018)1. Esse percurso se prolonga em ciências da educação com ênfase no alinhamento das histórias de vida em formação, com extensões no Brasil. Lani-Bayle parte do pressuposto de que a narrativa é o que nos constitui como humanos, uma vez que sem ela nossa reflexividade não avançaria, nossa aprendizagem mal se faria ou não aconteceria. Então, por que não levá-la em conta desde tenra idade e até mesmo cultivá-la, especialmente, na escola? É nesse sentido que a pesquisa em educação vai ao encontro dessa capacidade narrativo-reflexiva que nos acompanha em todas as idades da vida. Ao longo do texto, a autora, com base em sua larga experiência, discute sobre o que as crianças são capazes de fazer e o que elas esperam de suas próprias capacidades narrativas, fazendo ecoar em nós, o que podemos esperar delas em educação, formação e pesquisa, de modo a vincular saberes da experiência vivida e saberes acadêmicos.
Nessa direção, Natália Fernandes e Luciana França Souza discutem no texto Da afonia à voz das crianças nas pesquisas: uma compreensão crítica do conceito de voz a relevância da pesquisa com crianças como um campo que permanece em desenvolvimento e que tem contribuído para enfrentar sua invisibilidade e a consolidação da ideia de que as crianças são sujeitos legítimos do conhecimento – authoritative knowers. As autoras mobilizam questionamentos sobre o conceito de “voz” no campo das complexidades que atravessam a pesquisa com crianças, trazendo para o centro do debate a relação adulto-criança como uma dimensão estruturante das opções metodológicas e análises interpretativas decorrentes dessas escolhas.
Um dos eixos importantes do Dossiê concerne ao bem-estar, ao cuidado e à qualidade de vida de crianças e jovens como questões relevantes para a pesquisa (auto)biográfica e seus impactos sociais em educação, na formação e nas políticas públicas. Nesse sentido, Luís Manuel Pinto e Linda O’Toole apresentam, em seu artigo Arqueologia Pessoal: descobrir a sua diversidade interior através de artefactos da infâncias, uma reflexão sobre o desenvolvimento da Arqueologia Pessoal, enquanto exercício proposto a pais e profissionais da infância, com base no trabalho desenvolvido pela Fundação Aprender para o bem-estar2 , cujas ações fundamentam-se na prioridade política em defesa de crianças e jovens, inspiradas nas resoluções adotadas pelos principais organismos internacionais: Organização Mundial da Saúde (OMS), Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), Convenção internacional sobre os direitos da criança (UNCRC). O artigo inclui diretrizes para se explorar a Arqueologia Pessoal através de fotografias, objetos, desenhos, narrativas pessoais para dar sentido a padrões de atitudes que perduram ao longo da vida. A reflexão, fruto da colaboração entre os autores, valoriza a autoexploração biográfica e a importância da compreensão da diversidade interior para o bem-estar e uma participação mais harmoniosa de crianças e jovens com eles próprios, com a família e com a comunidade no mundo da vida.
São muitos os sintomas significativos que denunciam a ausência do bem-estar na escola, entre eles destacam-se os diagnósticos cada vez mais detalhados sobre diversos tipos de transtorno que conduzem à medicalização de um número cada vez maior de crianças que enfrentam dificuldades escolares. Essa é a inquietação de Marie-Claude Bernard, Alice Vanlint, Hélène Makdissi em seu artigo Narrar sua vulnerabilidade escolar: concepção de uma abordagem metodológica. Trata-se de uma pesquisa que visa questionar fundamentos teóricos – sociológicos, pedagógicos, médicos, psicológicos – em função dos quais são conceitualizadas as dificuldades escolares, com vistas a propor meios para se agir em conjunto. As autoras adotam uma abordagem compreensiva de inspiração etnográfica, visando compreender, para além dos discursos já consagrados, outros discursos sobre esse tipo de vulnerabilidade escolar. O foco do artigo é a apresentação de três protocolos de entrevista clínico-dialógica adaptados à recolha de narrativas de cada um dos três atores, objetivando desvelar seus construtos com relação ao objeto de estudo, qual seja, seus modos de elaborarem o discurso de vulnerabilidade: os da criança sobre suas próprias dificuldades escolares, os de seus pais e os do(a) professor(a) diante da criança em dificuldade.
Mas afinal, “como a escola pode oferecer condições de bem-estar ou mesmo tornar-se um lugar de realização e de felicidade?”. É com esse questionamento que Anne Dizerbo e Béatrice Mabilon-Bonfils abrem o artigo intitulado Que diálogo pode favorecer o bem-estar e o desenvolvimento dos alunos? A reflexão decorre da cooperação entre as duas autoras num projeto de pesquisa-intervenção por elas desenvolvido com o apoio do Laboratório Bonheurs 3 .Se no texto precedente, Bernard, Vanlint e Makdissi buscam, no Canadá, contrapor discursos sobre a vulnerabilidade escolar no que concerne às aprendizagens, Dizerbo e Bonfils, na França, considerando a vulnerabilidade por um outro viés, recorrem a um site científico participativo do Laboratório Bonheurs, para colocar face to face, remotamente, 15 alunos do ensino médio, de 15 anos de idade, e pesquisadores em torno da seguinte questão: “será a escola um lugar de seleção social?”. Além dessas trocas digitais, as autoras agregam como instrumentos de pesquisa escritos argumentativos dos alunos e entrevistas biográficas. Trata-se de compreender os efeitos a curto e a longo prazo dos diálogos sobre o bem-estar dos alunos e sobre a elaboração de um ponto de vista singular favorável ao desenvolvimento de um poder-agir sobre seu percurso.
As noções de bem-estar e qualidade de vida são também fundantes para a concepção do Laboratório de Qualidade de Vida (LAQVi), enquanto ambiente acolhedor para o diálogo entre alunos do ensino médio integrado, de 15 a 19 anos de idade, e a pesquisadora-formadora, com vistas à elaboração do Projeto de vida, recomendado pela Base Nacional Curricular Comum (BNCC). Essa é a temática discutida por Maria da Conceição Passeggi e Luciana Medeiros da Cunha, no artigo Projetar-se no amanhã: condição biográfica e projeto de vida no novo ensino médio. As reflexões visam discutir as contribuições dos princípios epistemológicos, teórico-conceituais e de método da pesquisa (auto)biográfica e sua articulação com dispositivos e procedimentos utilizados na práxis pedagógica, na perspectiva da pesquisa-açãoformação. As análises evidenciam resultados com ênfase nas mudanças das representações de si, de escolhas, opções e tomadas de decisão, produzidas e aprofundadas na elaboração de três versões do projeto de vida, em grupos reflexivos de mediação biográfica. Para as autoras, o projeto de vida se justifica quando representa uma abertura criada em espaços formais para fundar uma mirada educacional de caráter crítico-reflexivo e ético, com vistas à autorreflexão, autoria e emancipação do jovem em um momento de virada biográfica no seu percurso estudantil.
A noção de cuidado integral, centrado em crianças com doenças crônicas que experienciam situações de vulnerabilidade biopsicossocial, é a temática de reflexão de Camila Aloisio Alves, em seu artigo Educação terapêutica de pacientes e abordagem narrativa: interseções necessárias para novas práticas no cuidado ao adoecimento crônico infantil. A autora tece um diálogo reflexivo e crítico entre Éducation Thérapeutique des Patients (ETP) em português, Educação Terapêutica dos Pacientes, desenvolvida com adultos, na França, e as abordagens narrativas, como fruto de seu trabalho com ações de formação e pesquisa no cenário francês. O objetivo é destacar a relevância das narrativas na compreensão de experiências e aprendizagens realizadas com e por crianças hospitalizadas e suas famílias, numa concepção emancipatória e humanizada. Trata-se, assim, de ampliar a compreensão da ETP, voltada, desta vez, para o cuidado integral de crianças hospitalizadas sob um enfoque educacional, psíquico e social do adoecimento crônico na infância. A reflexão vai no sentido de valorizar e incluir, em ações de saúde mais humanizadas, os conhecimentos e saberes da criança como elementos pertinentes à construção do cuidado integral e de seu bem-estar.
Os estudos desenvolvidos com narrativas de crianças com doenças crônicas é também o enfoque adotado por Luciane De Conti, Morgana Nunes e Carolina Gutierrez, no artigo Enlaces entre narração, corpo e adoecimento: a narrativa como dispositivo de elaboração do sofrimento por crianças com câncer. O objetivo do artigo é delimitar teoricamente articulações entre narrativa e adoecimento, priorizando efeitos subjetivos provocados na vida da criança. As autoras adotam perspectivas de pesquisas em psicanálise e em psicologia que têm a narrativa como dispositivo de intervenção, visando configurar espaços de narrativização, que possibilitem fazer sentido aos efeitos decorrentes de situações traumatizantes como o adoecimento. As análises apontam para a importância de a criança compreender o que acontece com o seu corpo e construir, narrativamente e de maneira lúdica, uma versão da experiência do adoecimento por ela vivenciado para dar sentido a um novo corpo que se apresenta para ela atravessado pela doença.
O enfoque na articulação entre vulnerabilidade e narrativas de crianças é o que conduz a reflexão de Milene Gabriela Winck e Daniela Barros da Silva Freire Andrade, em seu artigo Abuso sexual na infância: potencial da narrativa na vivência de criança. A pesquisa conduzida em contexto hospitalar objetiva investigar a construção de sentidos sobre o abuso sexual e o potencial mediador da narrativa, enquanto atividade-guia capaz de suscitar processos terapêuticos durante a hospitalização e atuar na iminência de processos de significação. A reflexão ancora-se na perspectiva históricocultural em articulação com a teoria das representações sociais e estudos da narrativa. Do ponto de vista metodológico, os procedimentos inspiram-se em estudos microgenéticos e compreendem a realização de encontros psicoterapêuticos individuais e em grupo, priorizando um contexto lúdico e encorajador para a produção de narrativas. Os dados empíricos foram analisados compreensivamente com base na definição de episódios e de acordo com seu conteúdo semântico, recorrências e carga afetiva empreendida nos processos comunicacionais. A análises revelam que narrativas preexistentes no ambiente hospitalar são amplamente socializadas no acolhimento da criança, que, por sua vez, as internaliza e as recria, sugerindo que essa socialização e internalização podem atuar na elaboração das vivências mais íntimas da criança hospitalizada e suscitar processos de metaforização espontânea.
A hospitalização, como momento biográfico, enfrentado pela criança é também abordado por Hildacy Soares da França Montanha e Marta Regina Brostolin, no artigo intitulado A classe hospitalar na voz de crianças a partir de suas vivências educacionais. As autoras, ancorando-se na sociologia da infância, focalizam o modo como cinco crianças, entre cinco e doze anos de idade, vivenciam experiências educacionais na classe hospitalar. Para a recolha das fontes, escolheram a entrevista semiestruturada e o desenho comentado. As análises evidenciam que as experiências vividas e narradas pelas crianças são relevantes para a compreensão de significados que elas atribuem às atividades pedagógicas no contexto hospitalar. A classe hospitalar emerge, em suas vozes, como um elemento vital para mantê-las conectadas com o universo escolar que deixaram ao serem hospitalizadas. Os resultados apontam para a sensibilidade e a afetividade docente na classe hospitalar como aspectos significativos para o enfretamento da hospitalização.
É indiscutível que a imagem ocidental da criança contemporânea vem se contrapondo cada vez mais àquela de infans, que por muitos séculos acreditamos ter sido determinante para o imaginário social com amplas repercussões na pesquisa científica. É nesse sentido que Teresa Jacinto Sarmento e Milena Oliveira, tematizam o quanto a figuração da criança contemporânea como um ser ativo, competente, com agência própria se constitui um grande desafio para as concepções e as práticas de educadoras de infância. No texto, Investigar com as crianças: das narrativas à construção de conhecimento sobre si e sobre o outro, as autoras consideram que as narrativas produzidas constantemente pelas crianças podem, por um lado, propiciar a compreensão dessa nova figuração da criança e, de forma ainda mais significativa, o seu desenvolvimento pessoal, assim como o de suas professoras. Nesse sentido, discutem a relevância das investigações com crianças sob três aspectos: a) o reconhecimento do direito da criança de ser ouvida, respeitando-se seus modos próprios de participação; b) a planificação da ação educativa, adotando-se a perspectiva de trabalho com projetos; c) a investigação no cotidiano das práticas docentes como forma de desenvolvimento da capacidade investigativa.
A agência e a atividade da criança contemporânea são também foco da pesquisa e reflexão de Ecleide Cunico Furlanetto e Karina Alves Biasoli, no texto Ser criança? Ótima pergunta! A pesquisa foi realizada com 14 crianças, entre três e doze anos de idade, mediante entrevistas narrativas em encontros virtuais, durante o isolamento social imposto pela pandemia da Covid-19. Como procedimentos de recolha das fontes, solicitaram ainda que as crianças elaborassem mensagens de áudio, vídeo e textos. As análises das fontes mostraram como resultados que ser criança implica para elas: a) o caráter intrínseco do ato de brincar na constituição de suas subjetividades; b) que é no espaço da escola que elas se percebem mais fortemente como crianças; c) no entanto, as relações de negociação que estabelecem com os adultos nem sempre se faz, para elas, de forma dialógica. De modo que, ser criança para as participantes é, antes de tudo, entrar em conflito com os adultos nos processos de negociação, particularmente, quando se trata de seus próprios espaços e seus modos de brincar.
A articulação entre memória, consciência de si e desenvolvimento humano, que constitui um dos pressupostos fundantes da pesquisa (auto)biográfica, é abordada por André Augusto Diniz Lira e Renata Carlos de Oliveira Gonçalves, no texto Memória, consciência, self: contribuições para a pesquisa (auto)biográfica com crianças, no qual os autores, privilegiando abordagens da psicologia do desenvolvimento e da neurociência, estabelecem um diálogo com a pesquisa (auto)biográfica com crianças em educação. Os autores revisitam a tradição vigotskiana, destacando a proposição de drama como categoria fundamental para o desenvolvimento das funções psicológicas superiores e os estudos de Jerome Bruner para a discussão sobre narrativas e construção do self. Incluem ainda os estudos de Alison Gopnik sobre a teoria da mente, e os de Katherine Nelson, concernentes ao self em desenvolvimento, à narrativa, à memória e à consciência autobiográfica, enquanto instâncias interdependentes. Do ponto de vista da neurociência, focalizam os estudos de Oliver Sacks e de António Damásio sobre a consciência humana e suas relações com o self. Concluem ressaltando as contribuições desses estudos desenvolvimentais para a pesquisa (auto)biográfica com crianças.
Se a articulação entre memória, consciência de si e desenvolvimento humano permite ampliar os horizontes da pesquisa (auto)biográfica com criança, como sugerem André Lira e Renata Gonçalves, no artigo precedente, seria possível conceber uma prática pedagógica voltada para a educação da memória, que permitisse às crianças desenvolver a consciência de si e de suas aprendizagens ao se tornarem autoras? Esse é o desafio proposto por Luanna Priscila da Silva Gomes, Patrícia Lúcia Galvão da Costa e Cláudia Roberto Soares de Macêdo Nazário, do Núcleo de Educação da Infância (NEI) e Colégio de Aplicação (CAP) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), a alunos do 5º ano do ensino fundamental, no artigo Memorial escolar: uma produção significativa. As autoras analisam a prática pedagógica do memorial escolar como uma possibilidade de escrita reflexiva das crianças sobre as experiências de sua vida escolar, do 1º ao 5º ano do ensino fundamental, vividas na instituição. A investigação foi realizada com base na leitura de dois livros de memórias escolares, produzidos pelas crianças do NEI, em 2018 e 2019. As análises apontam a significativa importância da prática do memorial escolar como escrita reflexiva para as crianças autoras. Em seus memoriais, as crianças se observam enquanto protagonistas de sua vida escolar e definem de um modo simples e peculiar a escola e suas práticas como espaço privilegiado do exercício de seus direitos. Nesse sentido, a reflexão da criança, sobre os cinco primeiros anos de sua vida escolar, possibilita aos professores ampliar sua reflexão sobre suas próprias práticas, de modo que o memorial escolar se revela como prática reflexiva significativa para a educação da memória, o desenvolvimento pessoal e a consciência de si e de suas ações no mundo, tanto para as crianças-narradoras quanto para seus professores-leitores.
Uma das questões cruciais para a pesquisa com crianças consiste em elaborar instrumentos de pesquisa potencialmente relevantes para a compreensão de seus modos de ser e de viver a infância. Essa inquietação faz parte da temática abordada por Maria Assunção Folque e Catarina Vaz-Velho, no artigo O aprender e o bem-estar como conceitos complexos construídos por crianças pequenas. Situando-se na perspectiva histórico-sócio-cultural e com base em duas pesquisas de cariz etnográfico e por elas realizadas, as autoras buscam evidenciar processos dialógicos de coconstrução de significados por crianças de três a seis anos de idade na interação com as pesquisadoras. O objetivo do texto é interrogar condições que potencializam essa coconstrução do sentido, quando se trata de conceitos tão complexos e abstratos quanto os de “aprender” e de “bem -estar” com eventuais implicações para a vida da criança. As análises permitiram identificar os seguintes aspectos: a) a compreensão pelas crianças dos objetivos e sentido da investigação; b) o valor do seu contributo; c) a importância de instrumentos e linguagens em que se sentiam competentes; d) a interação no grupo e o diálogo facilitador entre crianças e investigador na exploração dos significados. Na sua reflexão ao longo do texto, tomam a centralidade a problematização e a compreensão do como crianças pequenas constroem significados de conceitos abstratos, complexos e multidimensionais em processos participados.
A perspectiva metodológica é retomada por Rejane Brandão Siqueira e Rosiane Brandão Siqueira Alves, no artigo Oficinas: estratégia metodológica para a pesquisa dialógica com crianças. As autoras apresentam apontamentos sobre a realização de oficinas com crianças de cinco anos de idade, numa Escola Municipal de Educação Infantil (Emei), como parte de uma pesquisa institucional, realizada em seis instituições escolares. O objetivo é melhor conhecer e compreender as concepções de “cuidar” e de “ser cuidado” por parte de profissionais, das crianças e de seus responsáveis. Nesse recorte, são descritos os dispositivos metodológicos. E, com base em estudos bakhtinianos, a linguagem é considerada como centro do processo investigativo. A concepção de “cuidado” ancora-se na filosofia do diálogo proposto por Martin Buber, cujo olhar aponta para percepção, o reconhecimento e compreensão do outro.
Ainda na perspectiva de uma mirada metodológica, a potencialidade da escuta sensível, como base para a recolha de fontes na pesquisa (auto)biográfica, constitui um grade desafio, sobretudo, quando se trata da abordagem de movimentos de luta social, protagonizados por jovens universitários. Essa é a temática desenvolvida por Rafael Arenhaldt, Alexsandro dos Santos Machado, Irene Reis dos Santos e Erika Cristina Lima da Silva Santiago, quando destacam, no artigo Narrativas autobiográficas de lutas pela educação: pedagogias emergentes de uma ocupação, as potencialidades de uma escuta sensível, aberta, a(fe)tiva, ética e aprendente na recolha e análises de escritas autobiográficas de jovens universitários no cenário de ocupação de uma universidade federal. Do ponto de vista teórico-conceitual, recorrem às noções bergsonianas de “duração” e “memória”, articulando-as com as de “hermenêutica da experiência”, “autobiografização” e “heterobiografização” para refletirem sobre pedagogias emergentes que se depreendem das experiências tecidas e entretecidas pelos estudantes em suas escritas. Nelas, destacamse as pedagogias da indignação, da outreidade e da cidadania, confirmando suas potencialidades para a instituição de novos modos de ser, de fazer e de ressignificar o coletivo em experiências de luta pela educação.
Retomando a noção de luta, mas numa perspectiva histórica, Zeila de Brito Fabri Demartini discute a discriminação nas marcas de sujeição imposta a povos da África, trazidos como escravos ao Brasil colônia, em seu texto Educação de crianças e jovens negros e brancos durante o colonialismo: práticas pedagógicas discriminatórias e racistas. A autora destaca pontos cruciais, evidenciando como ainda permanecem traços do processo de colonização numa estrutura criada para separar crianças e jovens brancos, de jovens indígenas e negros, e hierarquizar suas condições: a do negro e indígenas como “sujeitos inferiores”; a de brancos como “raça superior”. Essas condições são especialmente observáveis no campo educacional em seu sentido amplo. Com base nas análises de material produzido pela metrópole e pela colônia essas marcas permanecem em territórios europeus, americanos e africanos quando se trata de questões vinculadas ao racismo.
Na sequência de textos que focalizam os jovens, Mateus Souza dos Santos e Lúcia Isabel da Conceição Silva, no texto Eventos estressores na adolescência e juventude: narrativas de estudantes de Belém (PA), analisam as implicações desenvolvimentais de eventos estressores e de fatores de proteção na perspectiva de adolescentes e jovens. A pesquisa foi realizada com 32 alunos, entre 14 e 18 anos de idade, cursando o 1º ano do ensino médio, numa escola pública de Belém. Como procedimento de recolha e análise das narrativas dos participantes, foram utilizados o Grupo de Diálogo (GD) e a análise de conteúdo, respectivamente. Os resultados permitiram identificar a grande predominância de eventos estressores e a quase ausência de eventos protetores. Os jovens ressaltaram sete eventos estressores em suas vidas: terem sido vítimas de assaltos; viver a morte de familiares; a ausência de diálogo na família; a separação de seus pais; as discussões com amigos; as avaliações escolares; o assédio sexual na internet. Quanto aos fatores de proteção, destacam unicamente as relações de amizade, que apareceram para eles como mecanismos que atenuam os efeitos de riscos sofridos em situações estressantes. Os resultados revelam, assim, uma dinâmica complexa entre eventos estressores, vividos em diversos contextos – família, escola, comunidade, internet – contra a quase ausência de proteção nessa etapa de vida. Razão pela qual é imprescindível um olhar mais cuidadoso das instituições socializadoras: família, escola, comunidade em geral.
As relações entre adultos e crianças, enquanto momentos socializadores, podem ser consideradas como eventos clássicos na literatura. No entanto, como saber se essas relações ainda se estabelecem nos moldes tradicionais ou se elas se alteraram na contemporaneidade? Essa é a indagação de Gabriela Barreto da Silva Scramingnon, no seu texto Relações entre adultos e crianças: o que dizem as narrativas das crianças? A autora, com base em sua pesquisa de doutorado, problematiza as condições em que essas relações se estabelecem na contemporaneidade, mediante a escuta de crianças entre seis a dez anos de idade, em entrevistas coletivas, e na observação. A autora traz para o debate as contribuições da antropologia filosófica de Walter Benjamin, discute as contribuições dos estudos da infância como campo interdisciplinar para pensar as infâncias e a criança nas ciências humanas e sociais. As análises evidenciam que as crianças, enquanto narradoras privilegiadas, oferecem pistas significativas sobre os modos como os adultos constroem o mundo para elas. De modo que abrem possibilidades de reflexão sobre o sentido de ser criança pelo seu próprio olhar. Para elas, ser criança se alicerça nas seguintes condições e expectativas: esperar pelos adultos; ser por eles ouvidas; necessitam que os adultos acreditem no que elas dizem; que eles tenham tempo para elas, paciência e calma para tratá-las bem.
As mensagens desse último artigo que fecha o Dossiê perpassam a quase totalidade dos artigos nele reunidos. Convém destacar a diversidade de temáticas que ensejam os estudos e pesquisas que tomam como objeto de investigação cientifica as narrativas elaboradas por crianças e jovens, no diálogo com pesquisadores, professores, pares e outros adultos. Elas desvelam horizontes ainda não suficientemente estudados. Por essa razão, os estudos aqui reunidos são promessas inovadoras, de grande impacto social e em múltiplas dimensões – sócias, afetivas, cognitivas, ética etc. –, pois permitem uma melhor compreensão de crianças e jovens, enquanto sujeitos de direitos e agentes sociais, reclamando a atenção da academia e demais estruturas sociais e políticas.
As reflexões dos pesquisadores que partilham resultados de suas investigações nos deixam como legado seus acertos e desafios. Esperamos que este número da RBPAB venha a fazer parte daqueles que elegemos como muito bons para nossas aprendizagens, para a pesquisa e para a vida com jovens e com crianças, a quem destinamos nossos esforços, acreditando nas instituições sociais para que se tornem cada vez mais acolhedoras, promovendo o bem-estar, a equidade e a qualidade de vida, numa perspectiva ética e em comunidade, para o bem de todos, na casa comum. Esses saberes coconstruídos deixam carrilar necessidades de humanização de processos de investigar e de exercer a profissão e são, sem dúvidas, o que havemos de deixar como herança de uma nova ordem a ser continuamente renovada.
Natal, Évora, primavera-outono de 2020.
Notas
1 LANI-BAYLE, Martine. A criança e sua história. Trad. Maria da Conceição Passeggi e Sandra Maia-Vasconcelos. Natal-Edufrn, 2018.
2 A Fundação Aprender para o bem-estar, Learning for Well-being Four, (https://www.learningforwellbeing.org/ ), que integra desde 2009 o Consórcio Europeu de Fundações Aprender para o Bem-Estar.
3 A tradução para o português de Bonheurs é “Felicidades”. A sigla remete a: bien-être, organisations, numérique, habitabilité, education, universalité, relation, savoirs (EA 7517 de CY). Em português: bem-estar, organizações, digital, habilidade, educação, universalidade, relações, saberes. O Laboratoire Bonheurs é dirigido pela segunda autora Beatrice Bonfils, professora da Université de Cergy-Pontoise, na França.
Organizadores
Maria da Conceição Passeggi -Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) Universidade Cidade de São Paulo (Unicid).
Conceição Leal da Costa – Universidade de Évora (UE) Centro de Investigação em Educação e Psicologia (CIEP).
Referências desta apresentação
PASSEGGI, Maria da Conceição; COSTA, Conceição Leal da. Apresentação. Revista Brasileira de Pesquisa (Auto) Biográfica. Salvador, v. 05, n. 15, p. 945-953, set./dez. 2020. Acessar publicação original [DR]
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