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Peregrinos e peregrinação na Idade Média | Susani França, Renata Nascimento e Marcelo Lima

As peregrinações na Idade Média tiveram, enquanto fenômeno religioso, diversas dimensões, ou seja, políticas, econômicas e também sociais. E assim, enquanto fenômeno histórico e produto, portanto, das práticas e experiências humanas, as peregrinações no Ocidente medieval não foram, no entanto, homogêneas.

A concepção medieval de que o cristão era, por excelência, um homo viator, estava correlacionada à crença no destino após a morte. Enquanto uma viagem terrena aos santos sepulcros localizados no Ocidente, como os de Roma e de Compostela e, no Oriente Próximo, em Jerusalém, a Terra Prometida, as peregrinações eram percebidas também como uma passagem entre este mundo e aquele imaginado pelos fieis, o mundo celeste. O historiador Jacques Le Goff (1989) argumentou em um de seus livros que todas as pessoas na Idade Média eram peregrinos, seja no sentido mais factual de realização de uma viagem ou peregrinos potenciais. A noção de homo viator refere-se, assim, à cosmovisão que os medievais compartilhavam a respeito da vida neste mundo enquanto um ritual, algo provisório, em contraste com aquele destino eterno associado ao Além.

A busca pelo eterno e pelas benesses espirituais esteve, portanto, nas bases das peregrinações. Individuais ou coletivas, os propósitos das viagens aos santos sepulcros comportou uma dimensão salutar: a de poder tocar as relíquias. O conceito compreende a noção de materialização do sagrado e, nessa acepção, prevalece a ideia de resto, não em um sentido pejorativo, mas a ideia de preservação de objetos cultuais que evocam e faz evocar a presença dos santos e santas. O contato com os vestígios do sagrado poderia, portanto, curar e proteger, visto que atuavam como um elo entre o mundo terreno e o supra-humano. Eis um dos motivos pelos quais as relíquias exerciam a função de amuletos. Em princípios da Idade Média, o ato de recorrer a esses objetos não foi aceito de imediato pela Igreja. A cultura clerical considerava a veneração popular aos objetos sagrados como uma forma de superstição, daí porque o culto aos amuletos deveria ser combatido. Não obstante, sendo uma prática ligada à mentalidade e à cultura popular, a supressão dessa forma de veneração foi inexequível.”.

Por abordar as sensibilidades, as percepções de mundo e as vivências dos peregrinos, a obra em análise é uma coletânea de textos que surge em um momento de valorização e reconhecimento da religiosidade, das práticas culturais e sociais no medievo. É preciso ressaltar, por outro lado, que essa temática nem sempre esteve no cerne do debate historiográfico sobre as categorias sociais da Idade Média.

O citado estudo de Jacques Le Goff pode ser um indicador dessa constatação. Dentre os objetivos do historiador francês estava discutir os perfis, em suma, as dez categorias humanas que viveram e atuaram no Ocidente cristão. No entanto, os peregrinos, assim como os cruzados, não integraram o mosaico de perfis estudados. A tese do homo viator, enquanto uma mentalidade comum estava no cerne dessa escolha (LE GOFF, 1989). Assim, as especificidades das peregrinações ficaram relegadas a um segundo plano.

Os estudos dos três autores não se limitam, por outro lado, a essa constatação. Por estabelecer um profícuo diálogo com a historiografia clássica e com as pesquisas mais recentes, além de estar alicerçada na análise de uma vasta documentação oriunda da Antiguidade Tardia e da Idade Média, a obra é certamente uma referência para os interessados nas peregrinações por um duplo motivo. Em primeiro lugar, porque não negligencia as correlações com as realidades sociais e políticas, que de diferentes formas permearam o universo dos peregrinos (as). A outra dimensão estar associada à forma coletiva que a obra foi construída. Assim e com um êxito soberbo, o resultado das pesquisas, é preciso dizer, demonstra as potencialidades do diálogo interuniversitário.

Susani Silveira Lemos França (UNESP-Franca) é a autora do primeiro capítulo. Ela é doutora em Cultura Portuguesa pela Universidade de Lisboa (1998) e em suas pesquisas mais recentes tem se interessado pela a escrita da história na Idade Média, bem como pelas viagens medievais empreendidas pelos portugueses abordando, nesta temática, os padrões de percepção e observação de mundos alheios pelos historiadores e viajantes lusos.

O segundo capítulo foi escrito pela Dra. Renata Cristina de Sousa Nascimento (UFG, UEG e PUC Goiás). Doutora em História pela Universidade Federal do Paraná (2005) realizou estágio de pós- doutorado na Universidade do Porto (2015-2016). As suas pesquisas abordam as funções das relíquias no imaginário cristão e as vivências dos peregrinos no período da Antiguidade Tardia e durante a Idade Média.

Marcelo Pereira Lima (UFBA) assina o terceiro capítulo. Ele é doutor em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (2010) e realizou o pós-doutorado na Universidade de Salamanca (2015). As suas pesquisas estão voltadas para a história das instituições medievais com foco na História da Igreja e do Papado, o que o qualifica a desenvolver pesquisas também na área da História do Direito Medieval e, por extensão, da Realeza Medieval.

As peregrinações aos sepulcros das personagens históricas associadas às narrativas bíblicas não se iniciaram na Antiguidade Tardia. Já no ano de 160 d.C, Militão de Sardes, bispo de Sardes, cidade que ficava próximo à Esmirra realizou uma peregrinação à Terra Santa. Contudo, foi a partir do fim das perseguições aos cristãos, à época de Constantino, no século IV, que as peregrinações ganharam impulso. Somado a este acontecimento, devemos acrescentar a construção de basílicas no Oriente enquanto parte do processo de identificação dos lugares associados à memória sagrada.

Visitar os lugares sagrados, como os de Jerusalém, de Belém e do Monte Sinai era uma forma de testemunhar as criações de Deus, de comprovar a materialidade da Verdade (COELHO, 2011). Assim, os cristãos que viajavam rumo à Terra Santa na Antiguidade Tardia tinham como propósitos confirmar as narrativas que estavam registradas nas Sagradas Escrituras, dando materialidade à memória. Peregrinar era, portanto, presenciar in loco a história da Salvação. As práticas peregrinatórias que se desenvolveram durante o período medieval levaram essas marcas, embora novos elementos passaram a fazer parte do desejo de ver e tocar os santos sepulcros.

Nos capítulos I (Peregrinos e centros de peregrinação) e II (Nos passos de Cristo e de seus apóstolos – Relatos de viagem e peregrinações), as autoras abordam as peregrinações aos diversos lugares sagrados do Oriente e do Ocidente. Pela afinidade temática, há estreitas relações entre os dois capítulos. Podem ser tidos, assim, como complementares, embora a compreensão de um não exija necessariamente a leitura do outro.

O primeiro trata sobre as finalidades das peregrinações e os perfis dos peregrinos. Durante a Alta Idade Média e, sobretudo a partir do século XI, o caráter testamentário e neotestamentário que caracterizaram as primeiras viagens cristãs à Terra Santa fundiram-se aos novos interesses dos peregrinos. Os riscos aos quais os transeuntes estavam expostos, fossem nas viagens marítimas, como as que estavam sujeitos os ingleses que partiam dos portos de Londres, de Plymonth e de Bristol através do Mar Espanhol, ou fossem os perigos das viagens terrestres, como assaltos e sequestros, além das condições às vezes precárias das estradas, foram aspectos que condicionaram mudanças na concepção de peregrinação. A penitência, a busca por milagres e a crença na capacidade miraculosa dos locais sagrados constituíram parte do conjunto de elementos que permeavam o imaginário dos peregrinos.

No segundo, Renata Cristina de Sousa Nascimento convidada o leitor a acompanhar as vivências e as experiências dos peregrinos e a compreender o imaginário medieval sobre os lugares santos. Além do conceito de memória teorizado por Maurice Halbwachs (HALBWACHS, 1990) que foi coerentemente trabalhado pela autora, a concepção de relíquia é central nessa abordagem. Sinais concretos da presença do divino, as relíquias, como as que Santa Helena trouxe da Palestina, foram incorporadas à Basílica de Santa Cruz, em Roma. Nos reinos cristãos do Ocidente medieval, esses objetos se tornaram também parte da legitimação e proteção, além de trazer prestigio político ao reino. Única cidade no Ocidente que, até a criação do culto jacobeu no século IX, preservou as relíquias de um dos apóstolos de Jesus, além de objetos cultuais que foram trazidos do Oriente desde a Antiguidade Tardia, Roma permaneceu como um dos grandes centros de peregrinação durante toda a Idade Média.

Na busca pelas relíquias, como as que estiveram associadas à figura do Apóstolo Tiago o Maior em Compostela, na Galiza, ou para alcançar os espaços sagrados de Roma e Jerusalém, os peregrinos tiveram que conviver com questões que não era apenas de dimensão religiosa. As peregrinações jacobeias remontam ao processo de identificação, no reinado de Afonso III das Astúrias do local onde o Apóstolo Tiago teria sido sepultado. Desde a Antiguidade Tardia prevaleceu, na região que hoje conhecemos como Espanha, a convicção de que o apóstolo teria ali se estabelecido até o momento de sua morte. A construção da igreja primitiva em Compostela, em fins do século IX, no local que teria ocorrido o seu sepultamento, evidencia a tentativa de membros da Igreja e também das instituições seculares em afirmarem-se como legítimos herdeiros das relíquias e do culto jacobeu.

O capítulo III, Muito mais do que um modo de “orar com os pés” – As peregrinações jacobeias medievais em textos legislativos e normativos, centra-se em aspectos de natureza diversos que permeavam o universo das peregrinações e, por isso, difere-se dos dois primeiros. Marcelo Pereira Lima apresenta um estudo instigante sobre os interesses, eclesiásticos e seculares, que permeavam as definições dos locais de peregrinação e também sobre a condição jurídica dos peregrinos. Consciente da existência de importantes obras sobre essa temática, o autor não se restringe a definir o sentido das peregrinações como sendo apenas de natureza religioso (PARGA, 1948). Em uma perspectiva da História do Direito, a definição da persona dos peregrinos evidencia o interesse político e também econômico que conduziu, a partir de fins do século IX, o desenvolvimento do culto jacobeu.

Entre os séculos IX e XIII as doações registradas na legislação monárquica, sob a forma de concessão de terras e do direito de cunhagem de moedas, por exemplo, foi comum no reino castellano-leonês. Eram também, por outro lado, à semelhança dos três concílios latrenses realizados respectivamente em 1123, 1139 e 1179, atos jurídicos em que estavam imbricados aspectos relacionados ao controle das peregrinações e, por extensão, à tentativa de definição por setores hegemônicos da sociedade do que era ser um peregrino.

Os estudos reunidos na coletânea Peregrinos e peregrinação na Idade Média se tornam, pelas discussões historiográficas encaminhadas e pela rica documentação consultada, uma obra indispensável aos pesquisadores que se dedicam à história da Igreja e da religiosidade medieval. Trata-se de pesquisas comprometidas com o rigor na produção do conhecimento histórico e, portanto, científico. Aos leitores não especializados, que atraídos por motivações pessoais, interessados em entender as ligações entre as peregrinações contemporâneas, comum no Brasil e na Europa, por exemplo; ou simplesmente atraídos por um sentimento de curiosidade, o presente livro aqui supracitado é um relicário de saberes recheado pela subjetividade e rigor de pesquisadores comprometidos com a produção e divulgação do conhecimento.

Referências

LE GOFF, Jacques. O homem medieval. 1. ed. Trad. Maria Jorge Vitar de Figueiredo. Lisboa: Presënça, 1989. p. 09-23.

FRANCO JÚNIOR, Hilário. Peregrinos, monges e guerreiros: feudo-clericalismo e religiosidade em Castela medieval. São Paulo: Hcitec, 1990. p. 56-7.

COELHO, Maria Filomena. Viagem e peregrinação na Antiguidade Tardia: narrativa do conhecido. Projeto História, São Paulo, v. 42, p. 353-369, jan./jun. 2011. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/7994/5870. Acesso em: 06 set. 2018.

HALBWACHS, M. A Memória coletiva. Trad. de Laurent Léon Schaffter. São Paulo, Vértice/ Revista dos Tribunais, 1990.

PARGA, Luis V. et al. Las peregrinaciones a Santiago de Compostela. Consejo Superior De Investigaciones Científicas. Escuela De Estudios Medievales. Madrid, 1948.


Resenhista

Raimundo Carvalho Moura Filho – Mestrando em História e bolsista CAPES no PPGH/UFG. É medievalista com foco na santidade eremítica na Inglaterra, da Alta Idade Média aos séculos XI e XII. E-mail: raimundo.hist.cesi@gmail.com


Referências desta Resenha

FRANÇA, Susani; NASCIMENTO, Renata; LIMA, Marcelo. Peregrinos e peregrinação na Idade Média. Petrópolis/RJ: Vozes, 2017. Resenha de: MOURA FILHO, Raimundo Carvalho. Entre relíquias e peregrinações: ser e estar peregrino na Idade Média. Revista Mosaico. Goiânia, v. 12, p. 394-397, 2019. DOI 10.18224/mos.v12i1.7488. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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